Por mais que a proporção de empregadores que utilizam trabalho escravo seja pequena diante do universo de produtores rurais, por que há parlamentares contrários à criação de instrumentos de combate a esse crime?
Por Leonardo Sakamoto*
O trabalho escravo contemporâneo utilizado em empreendimentos agropecuários e extrativistas no Brasil não possui uma estrutura mafiosa em grande escala, que garanta o abastecimento de mão-de-obra, ao contrário do que ocorre com o tráfico de seres humanos para exploração sexual forçada. A experiência das entidades da sociedade civil que atuam no combate ao trabalho escravo mostra que não há uma organização criminosa com recursos financeiros e estratégias visando ao tráfico de escravos para o campo. O que existem são ações, na maior parte das vezes pulverizadas e sem coordenação, sob responsabilidade dos próprios fazendeiros, seus gerentes, prepostos, "gatos" e pequenos grupos de aliciadores.
Da mesma forma, não há uma organização comercial ou um grupo político reunindo proprietários rurais que tenham utilizado trabalho escravo, até pela natureza criminosa dessa prática.Camisa de garimpeiro contratado para limpar pasto libertado pelo governo durante fiscalização (Fotos: Leonardo Sakamoto) |
Os fazendeiros que incorrem no crime, assim como os outros empresários, associam-se aos sindicados rurais de seus municípios, que por sua vez integram as federações estaduais - em âmbito nacional reunidas na Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA). Além disso, também fazem parte de organizações de atividades econômicas.
Considerando que esse tipo de mão-de-obra é usada para garantir competitividade ao produtor, a sua adoção representa, na prática, concorrência desleal com relação àqueles que operam dentro de formas contratuais de trabalho. Contudo, muitas entidades têm defendido o associado envolvido no crime, ignorando uma ação comercial lógica, que seria retirá-lo do grupo ou suspendê-lo enquanto apresentasse pendências, para evitar uma contaminação da imagem da entidade e do setor e, conseqüentemente, perdas econômicas. Mas, em verdade, o que é preservado com essa defesa não é um interesse comercial particular, mas algo mais profundo: a classe social dos proprietários rurais.
O trabalho escravo não é resquício do processo de expansão agrícola, mas um de seus instrumentos. Fazendo uma analogia, o trabalho escravo contemporâneo não é uma doença, mas sim uma febre, o sintoma de um problema maior que se manifesta nas situações de "franja" do sistema. Portanto, a sua erradicação não virá apenas com medidas civilizatórias como a libertação de trabalhadores, equivalentes a um remédio antitérmico - necessário, mas paliativo. É necessário um tratamento maior, que inclua mudança na própria estrutura do modelo de desenvolvimento.
Apesar de serem poucos os empreendimentos que usam trabalho escravo, são muitos os que empregam sem os direitos garantidos por lei ou que superexploram a força de trabalho, gerando lucros ou facilitando a competição.
Por isso, da mesma forma que o combate à escravidão contemporânea tem sido ponta-de-lança para a melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores rurais (ele pressionou pela ampliação da estrutura de inspeção do trabalho e de punição de infratores, o que é util a toda a sociedade, por exemplo) a defesa dos empresários que utilizam esse expediente tem servido de bandeira para a manutenção do status quo no campo.
PEC do Trabalho Escravo
Um caso emblemático é o da proposta de emenda constitucional número 438/2001 que prevê o confisco de terras em que trabalho escravo contemporâneo for encontrado. Ela pretende ser um acréscimo ao artigo da Constituição que já contempla o confisco de áreas em que são encontradas lavouras de psicotrópicos. O projeto está tramitando no Congresso Nacional desde 1995, quando a primeira versão do texto foi apresentada pelo deputado Paulo Rocha (PT-PA). Aprovada pelo Senado em 2003, ela passou em primeiro turno na Câmara dos Deputados e aguarda a segunda votação. Porém, não há previsão para que isso aconteça devido à pressão de representantes do setor agropecuário no Congresso, a chamada "bancada ruralista". Anteriormente à votação no plenário, ao passar pelas comissões na Câmara, a proposta recebeu severos ataques, tendo à frente os então deputados Ronaldo Caiado (DEM-GO) e Kátia Abreu (DEM-TO).
Por mais que a proporção de empregadores que utilizam trabalho escravo contemporâneo seja pequena diante do universo de produtores rurais, esses representantes políticos são contrários à proposta. Pois, para eles, o que está em jogo é a propriedade da terra, considerada inviolável por parte dos seus representados - os proprietários rurais. A sua manutenção e concentração é condição fundamental para possibilitar o negócio agropecuário, pois, além de ser capital, é o locus onde se produz riqueza através do trabalho. A "PEC do Trabalho Escravo" é, pelo ponto de vista de membros da classe ruralista, um risco à sua própria existência e, portanto, lutar contra a sua aprovação representa mais do que manter a exploração de formas não-contratuais de trabalho.
Fila para poder fazer a carteira de trabalho. Nessa libertação, quase ninguém possuía o documento |
Só assim, no campo simbólico, é que se pode compreender a importância do trâmite dessa proposta por ambos os lados da questão. Sabemos que a aplicação da lei - como todas aquelas que dizem respeito aos direitos de trabalhadores - encontraria várias dificuldades nos tribunais, não sendo, portanto, o "golpe final" nos escravagistas, ao contrário do que desejam as entidades que atuam no combate a esse crime. A referência para essa previsão é o que já acontece com o confisco de terras em que forem encontradas plantações de psicotrópicos.
Do início do governo de Lula, em janeiro de 2003, a abril de 2007, 18 propriedades nessas condições - todas elas no Nordeste e com uma área total aproximada de 5.200 hectares - foram destinadas a assentamentos. Repare que o número é pequeno se considerada a quantidade plantações encontradas e destruídas: de acordo com a Coordenação Geral de Polícia de Repressão aos Entorpecentes (CGPRE), da Polícia Federal, apenas em 2004, 36 plantações de maconha foram destrúidas em todo o país.
A análise do comportamento das entidades de classe aponta para a mesma direção.
Apesar de a CNA (Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária) repudiar oficialmente a utilização desse tipo de mão-de-obra, as suas intervenções públicas nesse campo têm se dado no sentido de deslegitimar situações encontradas pela fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego nas propriedades rurais. Ou seja, a instituição, que faz parte da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, não nega a necessidade de que a escravidão contemporânea seja erradicada, defendendo isso inclusive em suas publicações, mas afirma que os agricultores e pecuaristas não utilizam esse expediente. Um paradoxo.
Um exemplo dessa atuação contraditória é o fato de representantes da entidade terem viajado para Confresa, Mato Grosso, após um grupo móvel de fiscalização encontrar 1003 trabalhadores em situação análoga à de escravo na Destilaria Gameleira/Araguaia ,em junho de 2005. O seu objetivo foi o de ajudar na defesa dos interesses econômicos da usina, que necessitava da permanência da força de trabalho para que a colheita da cana-de-açúcar fosse concluída. Contudo, devido às condições a que estavam sujeitos, nenhum trabalhador quis continuar na Gameleira.
Representação política
Além das entidades e associações a que estão ligados, os proprietários rurais que utilizaram trabalho escravo contemporâneo possuem expressiva representação política. Já foi citada a ação de deputados no caso da PEC 438/2001, contudo faz-se necessário discutir que relações são essas.
Analisando o cadastro de empregadores que utilizaram trabalho escravo, que ficou conhecido como "lista suja", publicado e atualizado desde 2003 pelo Ministério do Trabalho e Emprego, verifica-se que há casos de empregadores que doaram para campanhas eleitorais. Por exemplo, apenas na campanha de 2002, há pelo menos dois governadores de Estados de expansão agrícola, cinco deputados federais e três deputados estaduais que receberam recursos de proprietários rurais flagrados com trabalho escravo que seriam inseridos na "lista suja".
Não há subsídios para afirmar que todos os eleitos com recursos de empregadores da "lista suja" atuaram efetivamente para o favorecimento dos doadores. Também não há provas de que os empregadores-políticos - sim, há casos de políticos que passaram por esse cadastro por usarem escravos, como os deputados federais Inocêncio Oliveira (PR-PE) e Leonardo Picciani (PMDB-RJ) e o senador João Ribeiro (PR-TO) - de beneficiarem a si próprios em votações da PEC. Para uma análise que comprovasse uma relação de causa e efeito, seria necessário analisar os projetos e o comportamento desses eleitos não apenas no que diz respeito ao trabalho escravo contemporâneo, mas também com relação às questões de trabalho, fundiárias e de destruição do meio ambiente - assuntos intimamente ligados à escravidão.
Cerqueiros perfuram a terra, plantando mourões e passando arame, sob as intempéries amazônicas |
Por exemplo, comparando esses nomes e a lista de votação da proposta de emenda constitucional que prevê o confisco de terras em que trabalho escravo for encontrado, não chegamos a uma conclusão. Muitos deputados seguem a recomendação da bancada de que fazem parte. Além disso, a votação em primeiro turno dessa lei na Câmara, em 2004, ocorreu sob forte comoção pública gerada pelo assassinato de quatro funcionários do Ministério do Trabalho e Emprego que fiscalizavam propriedades rurais na região de Unaí, Estado de Minas Gerais, em 2004. Isso pode ter influenciado na decisão dos deputados. Há parlamentares que eram contrários à aprovação da PEC, mas na votação em plenário, feita por voto aberto, posicionaram-se a favor, provavelmente para não terem sua imagem vinculada à manutenção dessa forma de exploração do trabalho em um momento delicado como aquele. Tanto que, após o primeiro turno na Câmara, não foi possível colocar a matéria para a segunda votação devido à pressão desses mesmos deputados.
O ato da doação é um indício de que o doador comunga das propostas do candidato, deseja que ele o represente politicamente, seja por suas idéias, seja por sua classe social, ou que quer criar um vínculo por meio desse apoio em campanha. O benefício não precisaria vir em assuntos diretamente relacionados ao trabalho escravo, mas em outros temas que dizem respeito à defesa da expansão do capital em determinada região ou ramos de atividade, por exemplo. Portanto, pode-se afirmar que esses empregadores-doadores estão representados politicamente, mas não que esses representantes têm agido, necessariamente, em prol de seus financiadores de campanha na área de trabalho escravo.
A escravidão contemporânea é a exploração mais degradante possível dentro das formas não-contratuais de trabalho. Tendo em vista o seu caráter ilegal, não há quem a defenda abertamente. A forma de justificar os atos de fazendeiros flagrados com esse tipo de mão-de-obra, portanto, é afirmar que o flagrante em questão não foi de trabalho escravo - atitude tomada sistematicamente pela CNA e por parlamentares e detentores de cargos executivos que prestaram apoio a fazendeiros. Com a justificativa de que falta definição para o tema na lei, apesar de toda a legislação em vigor, atuam para barrar qualquer restrição aos proprietários rurais que cometam esse crime.
É claro que não há projetos de leis tramitando no Congresso Nacional com o objetivo de favorecer explicitamente a escravidão, mas há aqueles que contribuiriam indiretamente com ela. Como os que facilitam a terceirização ilegal e a diminuição de direitos trabalhistas e dificultam a atuação da fiscalização (é o caso da Emenda 3, vetada pela Presidência da República e que dificulta a fiscalização do trabalho; e o projeto de lei aprovado a partir da medida provisória 410, proposta pela Presidência da República, e que permite a dispensa da assinatura da Carteira de Trabalho para contratos de até dois meses de trabalhadores rurais - e já usada para cometer fraudes e tentar driblar a libertação de pessoas).
São, enfim, projetos que atuam em prol de um processo de descontratualização do trabalho, o que aumenta a margem de lucro das empresas através da economia desse custo e, portanto, sua capacidade de competição no mercado. Desconsiderando, é claro, o rastro de problemas sociais deixados por essas mudanças. Ao mesmo tempo em que a flexibilização do trabalho segue rápida, o contrário anda em ritmo lento. Há pelo menos outras 11 propostas que contribuiriam com o combate ao trabalho escravo, além da PEC 438, que tramitam com lentidão no Congresso.
Garimpeiros que foram trabalhar em fazenda e se tornaram escravos na região Sul do Pará |
Há casos em que, pelo menos indiretamente, houve "retorno" do eleito ao doador no que diz respeito ao tema do trabalho escravo. O primeiro é o da defesa da PEC 438 pelo deputado federal Ronaldo Caiado (DEM-GO), que recebeu doação de um empregador flagrado com trabalho escravo e depois relacionado na "lista suja". Contudo, pelo histórico de Caiado, não é possível inferir que houve uma relação doação-ação política, uma vez que a negação da PEC do Trabalho Escravo vêm sendo uma bandeira do deputado.
O outro caso é o do governador do Estado do Mato Grosso, Blairo Maggi, que, em 2002, recebeu doação de outro empregador flagrado com trabalho escravo.
Em 04 de maio de 2004, após pressões, o Estado do Mato Grosso aceitou reconhecer a existência de trabalho escravo durante o lançamento da campanha educativa "Cidadania, sim, Trabalho Escravo, não", em Cuiabá. Porém, o evento foi montado para ser uma peça de defesa dos produtores rurais acusados de utilizar esse tipo de mão-de-obra, o que desagradou a organizações internacionais, instituições públicas e entidades da sociedade civil que atuam nessa área e estavam presentes no evento. A campanha mostrou-se apenas uma peça publicitária, não surtindo efeitos, e o Mato Grosso continuou refratário a participar ativamente do sistema de combate à escravidão. Até que, em 08 de fevereiro de 2006, um grupo móvel que fiscalizava denúncias de trabalho escravo contemporâneo foi alvo de um ataque a tiros em uma fazenda no município de Nova Lacerda, Mato Grosso. Junto com os proprietários rurais Amauri de Mendonça e Onuar de Mendonça, faziam parte do ataque policiais militares.
O caso gerou preocupação entre as entidades que compõem a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, que divulgaram uma nota pública de repúdio e, com a presença do ministro do Trabalho e Emprego e do ministro-chefe da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, reuniram-se com o governador Blairo Maggi. O resultado foi a promessa da criação de um Plano Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo. Porém, Blairo reclamou de uma suposta perseguição ao produtor rural, que, segundo ele, é "obrigado a se dobrar a leis pensadas para a área urbana". O caso foi encarado pelo governador como um equívoco. Não há informações sobre punições à Polícia Militar pelo ocorrido. O Plano Estadual, depois de muitas idas e vindas, foi publicado pelo governo do Mato Grosso neste mês. O crédito entra na conta da pressão dos atores sociais que atuam no combate a esse crime por lá.
Como analisado anteriormente, não se pode aplicar necessariamente uma relação de causa e efeito entre as doações de campanha e o comportamento do representante político, que se insere mais em uma lógica da manutenção do status quo de proprietários rurais. Mas o apoio que eles têm garantido, em palácios estaduais, assembléias, prefeituras, câmaras e no Congresso a agricultores e pecuaristas para a expansão a qualquer custo da fronteira agrícola no Estado, defendendo-os de acusações de trabalho escravo e desmatamento ilegal, são suficientes para afirmar que há, pelo menos, uma sintonia política muito fina entre eles. E que a doação se mostrou, em verdade, um bom investimento.
* Coordenador da ONG Repórter Brasil, é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo.
Fonte: Reporter Brasil