Artigo
Quando os donos do poder mobilizam as forças armadas para atacar os mais vulneráveis, uma situação de terrorismo de Estado está em curso. É o que acontece hoje no Brasil
A crise da questão indígena nas últimas semanas ganhou ares dramáticos. Conflitos antigos estão pipocando por todas as partes do Brasil, do Sul à Amazônia. Seja onde se constrói Belo Monte, seja na futura usina São Luiz do Tapajós, seja em fazendas no Mato Grosso e no Mato Grosso do Sul, no Paraná, no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, no Pará, na Bahia, ou madeireiros em Rondônia e no sul do Amazonas.
De repente todo o campo ganhou ares de fronteira, de velho oeste.
Protestos de indígenas são seguidos por pistolagem, e a polícia agindo para “dispersar” convulsões sociais – agora os ruralistas também estão pedindo o exército.
E as tristes mortes de Oziel Terena e Adenilson Kirixi Munduruku, com pífia resposta das autoridades que produziram essas mortes, a Polícia Federal, são apenas a parte mais exposta e visível desse grave problema que o governo tem mostrado não apenas incapacidade de resolver, mas uma capacidade de insuflar ainda mais, como têm sido as declarações dos ministros Gleisi Hoffman (Casa Civil) e José Eduardo Cardozo (Justiça), atacando a Funai e defendendo a PF, e o silêncio público da presidenta Dilma Rousseff.
Uma das razões pelas quais os conflitos se agravaram não é porque eles não existiam, mas porque agora os indígenas, e os aliados dos povos indígenas, decidiram responder e se manifestar. Contra eles, capitaneados pela bancada ruralista no Congresso e no governo federal, a violência explodiu. Tanto no campo, com mortes e repressão física, quanto na imprensa, com ataques racistas pela mídia e a inversão da lógica de quem é vítima. As vítimas se tornam os agressores. “Índios invadem fazendas”, aparece no noticiário. Mas não são as fazendas que invadiram estes mesmos territórios indígenas em conflitos?
No caso da Terra Indígena Buriti, onde ocorreu o conflito entre fazendeiros e Polícia Federal contra os indígenas, a resposta é clara, e está judicializada em dois tipos de ação. Em uma das ações na Justiça, os fazendeiros, entre eles do ex-deputado estadual do PSDB Ricardo Bacha (que se considera “ambulante” na sua ficha), discute a portaria declaratória. Nela, o desembargador Luiz Stefanini, que votou contra os índios, teve suspeição alegada pela Funai, e negada pelo próprio tribunal.
A razão é que sua mulher é credora da Funai em outro conflito com indígenas Terena no estado, e seu sogro era uma liderança da associação de classe dos fazendeiros, a Famasul. A suspeição foi negada com a alegação de que “ainda que o falecido sogro do excepto tenha sido filiado à aludida federação, nem por isso seria caso de acolher-se a exceção, simplesmente porque da premissa estabelecida pela excipiente não resulta a conclusão exposta” (sic), e que a Funai é que deve a esposa do desembargador, logo: “Ora, qual seria o interesse do juiz em julgar a causa em detrimento de sua devedora? Absolutamente nenhum!”, decidiu o desembargador Nelton dos Santos.
Agressão desmedida da PF
A outra ação decorrente desse mesmo conflito é a reintegração de posse que visa tirar os indígenas das áreas reocupadas dentro do limite declarado, com base no argumento de que a decisão do Tribunal Federal diz que não é terra indígena — e que por isso, os indígenas não podem ficar lá. Acontece que, no momento que a decisão liminar que determinou a expulsão dos índios foi expedida, ocasionando a morte de Oziel, o que prevalecia era a área declarada pelo Ministro da Justiça em 2009 como Terra Indígena Buriti, com 17.200 hectares. A agressão desmedida da Polícia Federal apenas reforça o argumento de que as vítimas desse processo de expropriação, os índios, se tornaram vítimas da justiça e do governo. E os agressores viram falsas vítimas, passando a controlar o acesso às instituições em seu benefício.
No caso das demarcações, o governo tem agido em movimentos coordenados pela elite rural anti-indígena, como foi a ida da ministra Gleisi Hoffmann ao Congresso. Nos últimos dias, os piores momentos da ditadura estão sendo lembrados, tanto por declarações do governo, capitaneadas pela ministra da Casa Civil — que vê a Embrapa, especializada em pesquisa agropecuária, como o órgão mais apto a pesquisas antropológicas – quanto por cartas de intelectuais e movimentos sociais denunciando essa violência.
Exemplo dessas manifestações é uma carta, assinada entre outros pelo jurista Dalmo Dallari, endereçada à presidenta Dilma Rousseff sobre a “desqualificação da Funai”:
“A decisão da Casa Civil da Presidência da República apresentada aos representantes do agronegócio e parlamentares do Mato Grosso do Sul, em reunião na semana passada em Brasília, de que a Embrapa, Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Ministério do Desenvolvimento Agrário, ‘avaliarão e darão contribuições’ aos estudos antropológicos realizados pela FUNAI, repete a ação do último governo militar ao instituir o famigerado ‘grupão’ do MIRAD, capitaneado pelo general Venturini, para ‘disciplinar’ a FUNAI e ‘avaliar’ as demandas indígenas. Quando os donos do poder mobilizam as forças armadas para atacar os mais vulneráveis, uma situação de terrorismo de Estado está em curso. É o que acontece hoje no Brasil com relação aos índios.
Utilizar as forças de repressão para atacar indígenas foi medida utilizada no passado, durante a ditadura, contra os ava-canoeiro, em Goiás, os waimiri-atroari, no Amazonas, os panara, no Mato Grosso, ou mesmo os kaingang, em São Paulo, logo antes do surgimento do Serviço de Proteção aos Índios, em 1910. Alguns desses crimes apareceram no relatório Figueiredo, que ficou desaparecido por 45 anos. Mas o relatório é anterior aos piores tempos da ditadura. E precisaria ser escrito um novo relatório sobre o que está acontecendo, hoje, em diferentes os cantos do país.
Se os ruralistas dão entrevistas, escrevem artigos, e aparecem por todos os lados sempre disponíveis, os índios ainda não têm chance de se expressar. A eles têm restado as redes sociais, pelas quais podem manifestar suas indignações. Expor, por exemplo, a crueldade de uma jornalista da TV Globo que invadiu um funeral para entregar uma intimação judicial a índios terenas durante o enterro de Oziel Terena. O que mais tem circulado nas redes sociais são manifestos que não encontram eco na mesma mídia que ataca os índios – mas que encontra meios de se fazer circular e provocar o debate.
As críticas se dirigem aos ruralistas, e junto deles, Gleisi e Dilma: “Como essa senhora consegue dormir sabendo que a parte mais desprotegida do povo brasileiro, os povos indígenas, está sendo assassinada a bala pela Polícia Federal em suas aldeias, as crianças indígenas são assassinadas por jagunços do agronegócio em suas terras invadidas por supostos fazendeiros?” perguntou no facebook o indigenista da Funai, Cláudio Romero, que trabalha há quase quatro décadas na fundação.
Kátia Abreu e Dilma
Durante o julgamento do caso da Raposa Serra do Sol, havia sido exposto que o juiz Carlos Alberto Menezes Direito poderia ter servido ao lobby de fazendeiros do sul do país para decidir contrariamente aos indígenas em Roraima. Para garantir a demarcação no Norte, Direito tentou legislar para impedir que os direitos de outros fossem garantidos. Tentou escolher na cara de quem a porta da Justiça iria se fechar.
Passou a soar uníssono entre ruralistas, governo e imprensa que as “regras não são claras” na Funai, como se todos fossem comentaristas de futebol tentando encontrar um “a regra é clara”.
Alegavam que a Funai não conseguia fazer uma “intermediação” com fazendeiros, e mais uma série de argumentos retóricos reproduzindo uma falsa vitimização da casa grande, cada vez mais poderosa com o avanço tecnológico na agricultura e a sede por commodities da China, e criminalizando quem está no pelourinho.
A desconstrução dos direitos indígenas segue a destruição dos direitos do meio ambiente, com o fim do Código Florestal e a sua substituição por um “novo” codex, a regular menos as florestas e mais as lavouras produtoras de commodities em grande escala.
O governo, em alguns momentos, tenta se colocar como “refém” dos poderosos ruralistas. Esse segmento, que construiu uma aliança com a bancada evangélica, saiu da “oposição” e veio para a “base aliada”, sobretudo durante a campanha de Dilma.
E para ter uma chamada “governabilidade”, o governo se aliou a esses setores. Até “ideologicamente”, como tem repetido a senadora Kátia Abreu ao dizer que suas idéias são as mesmas de Dilma.
Essa aliança, além de tragédia no campo, tem também acirrado disputas internas no governo, entre esta ala reacionária e os setores mais progressistas, como os que defendem os indígenas e quilombolas, na Funai e INCRA, e o meio ambiente no Ibama.
Quando Dilma convocou uma reunião para decidir o futuro dos índios em meio à atual crise, não convidou representantes dos povos indígenas, e nem mesmo a Funai.
Dilma teria declarado querer que o índio tenha “autonomia econômica”, algo que ressoa declarações da época da ditadura, como quando os militares tentaram impor aos xavantes o cultivo de arroz, que se revelou um desastre econômico e social, ou impôs aos kayapó a extração predatória de madeira. Nas declarações que sucederam a reunião, não se falou de algo mais fundamental: a garantia dos direitos dos povos indígenas. Nem sequer apareceram termos como “etnodesenvolvimento” nas falas.
Esse movimento anti-indígena cada vez mais ganha áreas de uma “guerra justa”.
Os índios são selvagenizados, desculturalizados, desterritorializados, desumanizados. Devem abrir caminho para a soja, a cana, o boi, e a energia hidrelétrica, sem opor resistência.Caso contrário, toda violência contra eles é justificada e respaldada pelo Estado. Contra o índio, é tolerado partir para cima. Como nas “guerras justas” nos tempos a colonização utilizadas como justificativa para a escravização dos índios – escravização que ainda é o provável destino dos índios nas lavouras de cana no Mato Grosso do Sul, como acontecia no Brasil colônia.
Fonte: Carta Capital
Por Felipe Milanez