A luta travada na Justiça diz respeito ao episódio do dia 1º de janeiro de 2023, quando indígenas do povo Karaxuwanassu retomaram uma área que está abandonada há anos pelo município pernambucano – agora chamada por eles de Terra Indígena (TI) Marataro Kaetés.
Daniel Ribeiro, advogado e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Regional Nordeste, explica o que ocorreu para que o processo fosse suspenso pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco.
“Após algumas negativas do juiz de primeiro grau, que não considerou várias legislações jurídicas, a Defensoria Pública do Estado de Pernambuco, através do seu Núcleo de Moradia, continuou o assessoramento jurídico do povo e interpôs um agravo de instrumento contra uma segunda decisão do juiz de primeiro grau. Assim, levou o processo para a segunda instância, para o Tribunal de Justiça [de Pernambuco], tirando das mãos do juiz de primeiro grau”, explicou o advogado.
“Prontamente, o desembargador/relator decidiu a favor do povo Karaxuwanassu, no sentido de suspender o mandado de reintegração de posse, ou seja, suspendeu o despejo dos indígenas. O desembargador percebeu que o juiz de primeiro grau descumpriu com algumas normativas, como as do ministro Luis Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal [STF], em sede da ADPF [Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental] 828”.
“O desembargador percebeu que o juiz de primeiro grau descumpriu com algumas normativas”
“Em 31 de outubro de 2022, Barroso decidiu que despejos e reintegrações de posse precisam cumprir uma série de requisitos, justamente para atenuar e dar mais segurança às famílias que estão em situação de insegurança de moradia. Assim, os tribunais de todo o país precisam se adequar. E o Tribunal de Justiça de Pernambuco começou essa adequação, quando em dezembro de 2022 publicou a Resolução 482, que exatamente cria a Comissão de Conflitos Fundiários. O decreto que criou a comissão busca justamente dar segurança a essas famílias e fazer com que os despejos não ocorram de qualquer maneira”, finaliza Daniel.
Relembre
Em matéria divulgada na última semana, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) mostrou que, no dia 9 de janeiro de 2023, o Tribunal de Justiça de Pernambuco expediu um mandado de reintegração de posse contra os Karaxuwanassu a fim de cumprir com a decisão que deferiu o pedido da Prefeitura de Igarassu no dia 5 de janeiro deste ano.
No documento, a Justiça determinou o “cumprimento imediato” do mandado de reintegração – com prazo de cinco dias para a efetivação – por meio do auxílio da Guarda Municipal de Igarassu. Além disso, reforçaram que, se fosse necessário, a ação de despejo deveria contar com o suporte da Polícia Militar (PM) de Pernambuco.
Resistência
A fim de evitar o despejo dos indígenas da área, lideranças e apoiadores da causa – como integrantes do Conselho Indigenista Missionário – Regional Nordeste – realizaram uma reunião com a Prefeitura de Igarassu no dia 6 de janeiro. Juntos, entraram em um acordo para não dar andamento ao caso até que sejam realizadas audiências com o Ministério dos Povos Indígenas e com o Governo de Pernambuco. Na semana passada, lideranças e apoiadores conseguiram realizar uma reunião com Joênia Wapichana, presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Além disso, a Defensoria Pública da União (DPU) e o Ministério Público Federal (MPF) já foram acionados pelo Cimi Regional Nordeste para que também acompanhem o caso. A DPU, inclusive, já realizou uma visita técnica na área. Na ocasião, houve um diálogo com a cacica Valquíria, liderança Karaxuwanassu, que falou sobre as condições de seu povo.
“A Cacica [Valquíria] afirmou que o povo indígena [Karaxuwanassu] em contexto urbano vinha sofrendo com as péssimas condições de vida na região metropolitana do Recife. Sofreram, especialmente com a pandemia e com as dificuldades de vacinação e foram, ademais, duramente atingidos pelas fortes chuvas de 2022”, pontua a DPU em documento produzido após a visita técnica na TI Marataro Kaetés.
“A Cacica [Valquíria] afirmou que o povo indígena [Karaxuwanassu] em contexto urbano vinha sofrendo com as péssimas condições de vida na região metropolitana do Recife”
“Assim, após uma consulta espiritual, decidiram que era necessária a reunião dos indígenas em contexto urbano para a formação de uma comunidade em local que pudesse constituir uma reserva indígena. Quando chegaram no local, ele estava efetivamente abandonado. Havia mato por todos os lados. Eles limparam as casas e se instalaram, inicialmente, naquela que funcionava como recepção”, completa.
A Funai e o Ministério dos Povos Indígenas também já receberam um documento elaborado pelo povo e apoiadores, que solicitaram ajuda para garantir a área retomada, já que não possuem território para cultivar os seus próprios alimentos e manter práticas sociais, culturais e religiosas.
Karaxuwanassu: relação com Igarassu
Atualmente, o povo Karaxuwanassu é composto por mais de 200 pessoas – sendo aproximadamente 90 crianças –, distribuídas em mais de 60 famílias. De acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a área onde atualmente está localizado o município de Igarassu era habitada pelo povo indígena Kaetés.
Mas, em razão da colonização portuguesa, esse povo foi expulso e dizimado de suas terras. O povo Karaxuwanassu é formado por indígenas de diferentes povos de Pernambuco, do Brasil e até mesmo de outros países da América Latina: Bolívia, Peru e Venezuela.
“Somos todos vítimas do processo de colonização responsável pelas violências sofridas em nossos corpos e territórios, sendo obrigados a migrar para as periferias dos centros urbanos [morros e diferentes comunidades]”, afirmam os Karaxuwanassu em um dossiê do povo, que foi protocolado na Funai, pela assessoria jurídica do Cimi, na tarde dessa terça-feira (10).
“Somos todos vítimas do processo de colonização responsável pelas violências sofridas em nossos corpos e territórios”
Ainda de acordo com o documento, o qual foi elaborado pelas lideranças indígenas e apoiadores, “a forma colonial de narrar e conceber a vida dos povos indígenas nos idos do século XV foi incorporada e praticada até os dias atuais”. Os indígenas também denunciam que, em razão da migração forçada para as cidades, enfrentam discriminação, desemprego e ainda são excluídos das políticas públicas.