As cores da toalha de mesa não saltam mais aos olhos. Fica difícil distinguir aos quais dos sete cachorros e três gatos pertencem os vultos que passam entre as pernas. Já não dá para ler as frases "Jesus, eu te amo" e "Deus é o meu protetor" riscadas nas paredes.
Cai a noite sobre uma casa de taipa no meio do canavial. Maria Francisca de Lima, ou Maria Cabocla, como é conhecida na região, pega uma caixa de fósforo e acende três candeeiros. O odor do óleo diesel queimando invade o ambiente. Aos 55 anos, Maria Cabocla nunca soube o que é ter energia elétrica em casa.
Ela não mora em um lugar isolado, onde a luz penosamente chega. A casa fica no Engenho Camurim, no município de São Lourenço da Mata, que integra a região metropolitana do Recife, a 9,8 km da capital e conhecido por ter sediado os jogos da Copa do Mundo de 2014. No meio do mar de cana da Usina Petribu, a agricultora trava uma luta de décadas para conseguir luz em casa, vivendo ainda sob a ameaça de um dia ser expulsa.
Maria Cabocla fala rápido. É boa de memória, lembra datas e nomes com precisão. Diz que seu avô já morava naquele engenho; seu pai, também. Ela é nascida e criada ali. Desde sempre, sua família e vizinhos viveram na penumbra da plantação, sem energia elétrica, em situação vulnerável por habitar uma área rural sem a garantia da escritura na gaveta. Aos 13 anos, Maria foi viver a poucos metros de distância com o marido Severino José de Lima, com quem é casada até hoje e tem três filhas.
Em frente à casa de taipa, ela ergueu uma menor de alvenaria. Logo na fachada, há um espaço vazio na parede à espera de um medidor de energia que nunca chegou. Não há nada conectado às tomadas espalhadas pelo imóvel. Os interruptores são meros botões sem funções. A sala tem dois rádios com tocador de CD que ela não pode ligar para ouvir, mas guarda um estojo com vários CDs com repertório passando por Roberto Carlos, Amado Batista e Zeca Pagodinho.
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No quarto, uma das telhas é transparente para a luz do sol passar. Em vez de geladeira, a cozinha tem uma caixa térmica. As filhas trazem gelo e Maria Cabocla coloca as garrafas de água dentro. É quando, por um dia, ela e o marido conseguem beber água gelada. A carne precisa ser comprada, cozida no fogão a lenha e consumida no mesmo dia. O fogão a gás está encostado, por causa do preço do botijão.
"A gente tem que comprar a quantidade certa que vai comer. Às vezes sobra e estraga", lamenta.
Em cima do armário, há três recipientes de álcool. Na mesa, velas de diferentes tamanhos. Por mês, Maria diz gastar R$ 40 só de vela. Também na mesa há mais dois rádios que funcionam a pilha. Ela mostra que um dos aparelhos tem um pen drive conectado, que a filha encheu de música. "Amor, você não sabe o quanto eu estou sofrendo/ Amor, na sua ausência a solidão me apavora", canta Bartô Galeno no radinho.
Nos dias quentes, como são muitos dos dias em São Lourenço da Mata, Maria Cabocla não tem um ventilador para se refrescar e afastar os mosquitos. "A gente dorme tudo descoberto. O riacho é pertinho e tem vez que a gente vai tomar banho nove, dez horas da noite", explica.
A agricultora tira de uma sacola uma lanterna. E mais outra, e mais outra. Dez ao todo. São com essas lanternas que ela sai à noite para tomar banho e pescar. Conta que ela e o marido não enxergam bem por causa do candeeiro, o que parece plausível, pois estão sempre em contato com a fumaça do óleo diesel e fazendo o esforço de observar um mundo precariamente iluminado.
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Elisângela Maria, a filha mais velha, costuma acompanhar a mãe na pescaria noturna. Ela mora na mesma cidade e visita a genitora semanalmente. Traz as lanternas com as baterias carregadas.
A filha também é responsável por carregar o celular de Maria Francisca, um aparelho modesto, desses de botão. O modelo oferece aquilo que Maria Cabocla mais precisa: uma bateria que dura de seis a oito dias.
Maria Cabocla tem contato com um mundo de luzes só quando visita a filha na cidade. Vai e volta a pé. "Só conheço mesmo o programa de Silvio Santos, porque tem muito tempo, né? Sei daquele Faustão, mas o resto do povo da televisão eu não conheço."
Elisângela não consegue imaginar a mãe morando em outro lugar. Diz que, se ela saísse dali, a família toda teria de pedir comida na rua. Ela se refere ao abundante sítio ao redor da casa sem luz. Maria Cabocla e o marido Severino plantam feijão, fava, macaxeira, maracujá, jaca, coco, limão e milho.
Já sugeriram que ela fizesse uma ligação clandestina, ao que se recusou prontamente. "Não quero gambiarra. Quero a minha energia", diz.
Severino fala bem menos que a esposa. Tem sequelas motoras em decorrência de uma crise hipertensiva que sofreu em setembro de 2017.
O casal diz que o episódio está relacionado à frustração. Na época, a Celpe (Companhia Energética de Pernambuco) ensaiou conectar a casa com a rede elétrica, enquanto o processo cobrando a energia tramitava. Vigilantes da usina, contudo, impediram os funcionários da Celpe de fazer a instalação.
Quando lembra da época da crise hipertensiva, ele interrompe a fala. Fica um silêncio preenchido apenas pelo canto das cigarras. Severino parece chorar. Não dá para saber ao certo. Não é possível enxergar as expressões em seu rosto. Está tudo escuro.
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Houve uma fagulha de esperança quando em 2018 a Justiça, em decisão de 1º grau, assinou a sentença que determinava a instalação da energia elétrica. Mas a usina recorreu, a Celpe passou a argumentar que não pode instalar energia sem a autorização do proprietário da terra, e o tribunal negou o direito de energia ao casal.
Por telefone, o gerente jurídico da Petribu, Luís Guerra, explica que a usina não permite a instalação da energia porque o cabeamento e a distância necessárias, cerca de um quilômetro de fios e postes, atrapalhariam o plantio e a colheita da cana. A usina tem uma extensão de pelo menos 22 mil hectares de terra. Maria Cabocla ocupa cerca de um hectare, a cerca de 10 minutos de carro da entrada da usina. Lá dentro, não há postes de luz.
"Deus quando fez o mundo, fez para todos, não fez só para usineiro, não", afirma Severino. " A raiva deles é porque a gente não fez o gosto que eles queriam, abandonar o que era da gente."
Faz sentido: o aval da energia elétrica abre brecha para que o casal ganhe a posse da terra, também pleiteada na Justiça. Severino diz que a Petribu chegou a oferecer R$ 850 para eles saírem dali, para irem morar perto do cemitério da cidade. Centenas de famílias que viviam no Engenho Camurim toparam se mudar. Outras — pelo menos 10, incluindo o pai de Maria Cabocla — foram expulsas. Eles não saíram.
Apesar do impasse, uma campanha foi criada em junho para instalar equipamentos de energia solar no sítio de Maria Francisca. O objetivo é arrecadar R$ 12 mil para custear a montagem.
O advogado da Petribu diz que não sabia da "vaquinha" online, mas que ela não agrava a questão judicial. "Vai ser feito um investimento de colocar os equipamentos no local para, a qualquer momento, ela sair por causa da reintegração de posse. Talvez com esse valor arrecadado seja mais fácil adquirir uma outra propriedade já com energia elétrica", argumenta Guerra.
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Desde 1999, Maria pleiteia na Justiça o usucapião, que é a aquisição da propriedade pela posse prolongada.
Com a ajuda da Comissão Pastoral da Terra, foi obtida uma sentença favorável em primeira instância. Mas a usina entrou com recurso e conseguiu reformar a decisão de 1º grau. A justificativa da empresa foi de que Maria e Severino só moravam no local por causa da relação de trabalho que mantiveram no engenho. Segundo a advogada à frente do caso, Mariana Vidal, o vínculo trabalhista temporário só foi estabelecido porque os dois já estavam ali, próximos ao trabalho na lavoura canavieira, e não o contrário.
Diante da decisão, a Pastoral entrou com uma ação rescisória, com o intuito de tentar desconstituir uma ação judicial que já transitou em julgado.
A Petribu também ajuizou uma ação de reintegração de posse para que a família saia do local. No entendimento da Petribu, a família pode ter de deixar o sítio a qualquer momento.
Mesmo com as incertezas jurídicas, Severino e Francisca sonham com o dia que vão reunir a família e oferecer suco gelado, tirar os CDs do estojo e ligar um ventilador para dormir nos dias mais quentes. "Todo mundo quando vem aqui diz 'Maria, esse lugar que tu mora é o céu. A única coisa que falta é energia'", lamenta a agricultora.
Por nota, a Celpe confirmou que chegou a iniciar a construção da rede no local em 2017, mas os proprietários não permitiram a continuidade. "Desde a solicitação da moradora, a Celpe tem buscado, sem sucesso, entendimentos junto à usina para obter permissão de acesso à área particular e instalação da rede de distribuição de energia."
A prefeitura de São Lourenço da Mata, na atual gestão, disse não ter conhecimento do fato. "Agora, diante do exposto, a Secretaria de Desenvolvimento Social, Trabalho, Mulher e Promoção à Cidadania vai encaminhar uma equipe do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) de Matriz da Luz até a localidade."
O Ministério Público de Pernambuco (MPPE) foi procurado, mas não respondeu aos questionamentos até a publicação desta reportagem.
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