Celebrado no último 29 de maio, o Dia Mundial da Energia tem chamado a atenção para o debate em torno dos impactos provocados por grandes empreendimentos energéticos no Brasil. Um deles é a instalação de uma central nuclear no Sertão de Pernambuco que, apesar de ainda não ter saído do papel, já provoca riscos às vidas de centenas de famílias da região.
O anúncio da retomada do Programa Nuclear Brasileiro e o lançamento do Plano Nacional de Energia (PNE 2050) do Ministério de Minas e Energia (MME), em 2020, acenderam um alerta para o Estado de Pernambuco. Isso porque, além de prever a ampliação da produção de energia nuclear no Brasil, há estudos preliminares que apontam a cidade de Itacuruba, às margens do rio São Francisco, como uma das áreas apropriadas para a instalação de seis reatores nucleares.
O tema vem movimentando a Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) desde 2019, quando foi protocolada a proposta de Emenda à Constituição do Estado que dá nova redação ao artigo 216, objetivando a abertura do território pernambucano para empreendimentos energéticos nucleares. A PEC 09/2019, de autoria do deputado estadual Alberto Feitosa (PSC), encontra-se na Secretaria Geral da Mesa Diretora da Alepe e até o momento não foi submetida à votação. As comunidades camponesas e tradicionais que vivem na região alertam para os impactos irreversíveis do empreendimento caso seja construído e afirmam estarem apartadas das discussões em torno do assunto.
Impactos ao Rio São Francisco e às populações locais - Consultado pela CPT, um professor e pesquisador brasileiro de física nuclear - que preferiu não se identificar com receio de represálias - explica que a proposta de instalação da Usina próximo ao Rio São Francisco se dá pela necessidade do acesso à água para refrigerar seus equipamentos. Para isso, é necessário considerar as condições ambientais do rio, especialmente a sua vazão. Ocorre que, segundo avaliação do especialista, o Velho Chico já possui o fluxo de água bastante prejudicado em razão da sua transposição, e que instalar o empreendimento nuclear no local, além de não ser seguro, “seria inviável do ponto de vista técnico”.
O mesmo diz o pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), João Suassuna. Em entrevista concedida à Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), em março de 2021, Suassuna alertou: “do jeito que a situação do rio está hoje, com essa questão da gestão hídrica precária, que foi adotada no rio São Francisco, eu não assinaria embaixo um projeto deste, pois não há segurança hídrica na localidade.” A instalação dos reatores nucleares em Itacuruba demandaria uma vazão segura de 250m³ por segundo, apenas na região de funcionamento da usina.
Para a antropóloga e professora da UFPE e UPE, Vânia Fialho, é preciso compreender e dar visibilidade aos riscos e impactos ambientais e sociais provocados por esse tipo de empreendimento. “Temos impactos negativos antes da construção do empreendimento, durante a sua implementação e após a sua conclusão, e eles são de várias vertentes: ambientais, sociais, estruturais, psicológicos e econômicos”. Ela explica alguns.
Antes mesmo da instalação do empreendimento, segundo a pesquisadora, as famílias da região já começam a sentir alguns impactos, traduzidos pela sensação de insegurança e de medo diante do que poderá ocorrer com a chegada da usina nuclear e diante da ausência de consultas públicas e de espaços para que se pronunciem. Após a conclusão da obra, explica Fialho, há os riscos de impactos diretos causados por acidentes ou vazamentos, que poderão trazer consequências incomensuráveis. “Dizemos ‘incomensuráveis’ não por retórica, mas porque a própria ciência ainda não consegue mensurar as consequências da radioatividade na vida humana e no meio ambiente ao longo do tempo. Estamos falando de rejeitos e contaminações que ainda não sabemos quanto tempo podem durar”, pondera.
Ainda de acordo com a antropóloga, os impactos poderão atingir “não só a vida das populações locais, mas também toda a população do Sertão e do Nordeste, pois estamos falando de um empreendimento a ser construído à beira do rio São Francisco”, considerado o rio da integração nacional.
Além desses impactos, a pesquisadora elenca outras consequências comuns a grandes obras de infraestrutura que desestruturam a região: perda de territórios tradicionalmente ocupados; trabalho altamente especializado após o fim das obras que não absolverá a demanda de emprego da população local; o aumento repentino do número de pessoas circulando na região; aumento do abuso e da exploração sexual, entre outros.
Povos e comunidades tradicionais sem vez e sem voz - De acordo com o boletim sobre conflitos sociais e desenvolvimento sustentável no Brasil Central[1], coordenado pela antropóloga, “embora o governo federal tenha apontado a existência de estudos sobre a área, estes não foram divulgados e nem a população local, a ser diretamente atingida pela construção da usina, foi consultada e cientificada. Destacamos ainda que na localidade existem 3 povos indígenas e 3 comunidades quilombolas”. Além das 6 comunidades tradicionais no município de Itacuruba, estima-se que mais de uma dezena de comunidades quilombolas e indígenas, localizadas em municípios vizinhos, estejam também sob risco caso o empreendimento seja instalado.
Sandriane Lourenço, indígena do povo Pankará Serrote dos Campos, em Itacuruba, comenta que não há espaços para que a população local exponha seus posicionamentos sobre a instalação da usina nuclear. “Temos um sentimento de angústia, de medo e de revolta porque não há respeito pela vontade do povo que é dono daquelas terras. Não há espaço para a gente dizer o porquê somos contra e o quanto temos o sentimento de pertencimento ao nosso território sagrado”.
Ângela Maria, do quilombo Pau de Leite, em Mirandiba, também concorda. “É uma situação revoltante. Ao longo da história dos sertões, vimos a expropriação das terras e dos territórios do povo do campo, vimos a expropriação de nossos direitos, de nossa cultura, da nossa raiz, da nossa ancestralidade. Há quanto tempo os povos negro e indígena estão sendo expropriados? As comunidades estão se sentindo revoltadas. Nos últimos anos, fizemos denúncias, marchas e mobilizações e não nos escutam. É mais uma negação da nossa existência, da nossa voz, de nosso direito de falar e de ser ouvido”, lamenta.
O alerta feito pelos povos e comunidades tradicionais do Sertão de Pernambuco também tem outra razão. Apesar da existência da Constituição Federal e da assinatura em diversos acordos e tratados internacionais sobre meio ambiente e direitos humanos, na prática, o Brasil não executa políticas eficazes de proteção ou de reparação a vítimas de violações de direitos. Por isso, a quilombola Valdeci Ana, da comunidade Poço dos Cavalos, em Itacuruba, considera que a luta da população deve ser feita para prevenir os impactos e impedir a chegada do empreendimento.
Outra quilombola nascida na região, Maria José de Souza Silva, da comunidade Feijão, em Mirandiba, destaca: “nosso sentimento é de que somos invisibilizados e de que não temos importância nenhuma para o Estado Brasileiro. O que importa é o dinheiro. Não sabem o quanto as populações locais, indígenas e quilombolas vão sofrer com os impactos causados pela usina. Isso é uma forma de extermínio do povo tradicional que lutou tanto para preservar a região”. Ao ser perguntada como seria a vida ao lado de um empreendimento desse tipo, Mazé, como é conhecida, responde: “Não consigo imaginar ou pensar como será a vida ao lado de uma usina nuclear. Ter uma usina nuclear próxima da sua casa, próxima de um rio que é fonte de vida e de alimento para milhares de família da região? É inacreditável. O povo do Sertão já sofre com a ausência de direitos, de políticas públicas, de assistência médica. Qual a segurança que vamos ter para beber um copo com água, para respirar? É um genocídio o que estão fazendo com o povo da região”, conclui.
[1] http://novacartografiasocial.com.br/download/01-resistimos-para-existir-dizemos-nao-a-usina-nuclear-no-sao-francisco/