Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Fundado na base dos engenhos, que acentuavam a concentração de terras e eram responsáveis pela escravização dos povos do continente africano e expulsão de povos indígenas das suas terras, em 2020, Pernambuco ainda é cenário de conflitos nas áreas rurais. De acordo com o caderno Conflitos no Campo Brasil 2019, lançado no fim de abril pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), o estado tem hoje 43.268 pessoas envolvidas em 67 conflitos que se estendem desde o município de Lagoa Grande, no sertão, até Tamandaré, no litoral do estado. No Brasil, os números assustam: em 2010, na primeira edição do estudo, 351.935 pessoas estavam em situação de conflito por terra. Hoje, esse número é de 578.968 pessoas distribuídas em todo o território nacional lutando pelo direito à terra e água.


Na apresentação do documento divulgado, a CPT aponta um dos principais responsáveis para o aumento da violência e diminuição de políticas, pontuando que 2019 foi um “ano de ascensão da violência e do ódio contra os pobres, os negros, as comunidades e o povo do campo, protagonizados por figuras públicas, dentre elas, principalmente, o Presidente da República”. Giovani Leão atua em Pernambuco pela CPT desde 2005 e reafirma a posição do documento “na visão desse governo, o desenvolvimento encontra algumas barreiras, e uma delas são as comunidades rurais. O Presidente privilegia o agronegócio e as grandes empresas e a fala dele criminaliza as comunidades. Essa atitude dele favorece o aumento da violência porque faz com que os grandes empresários tentem tirar as terras desses agricultores para implementar esse desenvolvimento” explica.


Junto a essa escalada da violência, o pano de fundo desses conflitos é um cenário de ataque às políticas de reforma agrária. As ocupações, uma das formas de pressionar o poder público para desapropriar terras improdutivas, caiu de 143 ocupações em 2018 para 43 em 2019. Geovanni explica que a queda nesses números é também um reflexo da intensificação dos conflitos em outras áreas “a gente entende que os números diminuíram porque os conflitos estão se dando mais nas áreas de posseiros, nas comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas. Isso não se traduz em novas ocupações, porque são famílias que já moram nesses locais há muito tempo. Então a luta é para permanecer no território onde elas já vivem, não é uma nova ocupação”. 


Com isso, resta aos povos tradicionais, indígenas, quilombolas, posseiros e sem terra o direito a se manifestar contra as arbitrariedades do Estado. Junto a essa diminuição do número de ocupações, que são uma forma de cobrança mais direta, a saída encontrada para denunciar a violação de direitos no campo foram as manifestações, que apresentam um crescimento expressivo, pulando de 538 em 2018 para 1301 em 2019. Deste total, 80 manifestações aconteceram em Pernambuco. As manifestações são uma saída pensada pelas organizações do campo para cobrar a regularização das terras, sem necessariamente se confrontar diretamente com a grande propriedade rural. 


Hidronegócio


Hoje, o modelo agropecuário das empresas que atuam no Brasil utiliza 70% de toda a disponibilidade hídrica do Brasil sem pagar pela água bruta que consomem. Esse dado é essencial para entender o crescimento da violência no campo motivada por conflitos pela água, já que sem ela, é impossível produzir e beneficiar matérias primas. 2019 foi um ano de acirramento de conflitos pela água por causa de dois crimes ambientais que repercutiram internacionalmente: o rompimento da barragem de rejeitos tóxicos da mineradora Vale, em Brumadinho, no mês de fevereiro e o derramamento de óleo no mar, que impactou grande parte do litoral brasileiro. 


O dado mais antigo da CPT é de 2002, quando foram registrados, no Brasil, oito conflitos pela água. Em 2018, o número é de 276 e com os acontecimentos de 2019, salta para 489, com 69.793 famílias impactadas. Pernambuco é o quinto estado do país com maior número o número de famílias envolvidas em conflitos pela água, ficando atrás apenas da Bahia, Santa Catarina, Minas Gerais e Roraima. 


No litoral, os conflitos contra as comunidades pesqueiras tem uma relação com crimes ambientais como o derramamento de óleo; no sertão, a luta pela água contrasta com a abundância dos perímetro irrigados que são voltados à produção para a exportação e na zona da mata, onde Giovanni atua, o embate se dá principalmente por causa da criação de gado na região “o conflito pela terra é uma dos principais motivadores do conflito pela água. As empresas para retirar as famílias daquele território fazem com que elas percam o acesso à produção, tirando delas o acesso à água, que é o que permite a plantação de alimentos, a criação de animais e a manutenção das atividades domésticas. Aqui na Zona da Mata, as empresas querem que a água seja destinada apenas para a criação de gado e não para as famílias”, explica. 

Desafios


Diante de um cenário difícil, a CPT aponta que 2019 é um “marco histórico, por discorrer sobre um ano peculiar, forjado em têmpera diferente, de brutal tenacidade” devido ao aumento dos conflitos numa conjuntura de cerco da democracia. Para as organizações do campo, o Estado é um dos maiores motivadores de conflito, como aponta o caderno, quando a falta de iniciativa se torna uma “omissão que é deliberada, uma omissão que se faz ação e abriu espaço ao assédio sobre os assentamentos, com reconcentração de lotes, grilagem, violência, roubo de madeira, desmatamento e queimadas”. 


Dessa forma, a diminuição dos número e uma solução para o problema no campo precisa passar pelas instituições, para que sejam efetivadas como políticas públicas, assegurando os direitos da comunidade, como pontua Giovani “é fazer com que o Estado tome a frente nessa luta das comunidades. Essas usinas e empresas devem milhões ao Governo Federal, de impostos, de ações de trabalhistas… Se isso fosse cobrado, daria para desapropriar as terras em conflito, com uma ação simples do governo, mas isso não acontece. Nossa dificuldade é fazer com que os governos atuem nas áreas para resolver esse conflito, porque mesmo com a assessoria dada pelas organizações o Estado tem um papel. Enquanto isso, elas vão reagindo da forma como conseguem a essa violência toda”.

Brasil de Fato

Edição: Monyse Ravena

 

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