Na década de 80, surgiu no Brasil a necessidade de substituir a importação de petróleo, que causava impactos sobre a balança comercial do país, pelo álcool da cana-de-açúcar. Criou-se então o Pro-álcool, com a finalidade de incentivar a produção da cana-de açúcar. Esse programa governamental, na ânsia de obter maior produção, gerou alguns movimentos que alteraram a rotina do setor do agronegócio. Em um desses movimentos, a usina Trapiche, em Pernambuco, foi parar nas mãos de um usineiro de Alagoas. A usina localizava-se nas próximo ao estuário do Rio Sirinhaém, cercado de cana por todos os lados.
Em muitos relatos técnicos não constam as histórias das muitas Marias e Josés que viviam nas Ilhas do estuário do Rio Sirinhaém. Como, por exemplo, a de Maria de Nazareth, que nasceu nas Ilhas de em Sirinhaém. Nesta mesma história também não entraram o pai, a mãe, os avós e bisavós dela, embora vivessem no mesmo cenário de expansão do Pró-alcool.
Moravam em duas pequenas ilhas do Estuário do Rio Sirinhaém, de onde retiravam o sustento com a agricultura e a pesca. Além de Maria de Nazareth, outras cinco Marias e nove Josés, de uma mesma família, inspiraram um tom místico, de religiosidade ou predestinação. Maria Nazareno, Maria José, Maria da Conceição, Maria Isabel e Maria das Graças, esta última, quando adulta, mudou seu nome para Maria das Dores. E os irmãos: que eram José Maria, José Francisco, José Pedro e mais outros seis Josés.
Maria de Nazareth e seus catorze irmãos, assim como todos os meninos e meninas das ilhas, corriam entre os manguezais e depois se banhavam no rio, cuja água, de tão pura, refletia o azul do céu. De atiradeira, de rede ou anzol, os peixes subiam para o barco, e as crianças viam e aprendiam. Aprenderam a plantar o milho, o feijão e outras espécies. Aprenderam, também, a cultivar boas relações com as centenas de famílias que viviam nas ilhas.
Nazareth também aprendeu a conviver harmoniosamente com o mangue. Conhecia bem o de botão, o branco, o preto, o dos bem-te-vis, dos carcarás e garças. Com outras crianças, brincava de se atolar na lama até o peito, e depois se jogava no mar que considerava seu, porque tudo na ilha era assim, do povo. Terra da União.
A história oficial não conta, mas foi nestas ilhas que Nazareth construiu sua família. Tudo o que aprendeu, com os pais e avós, passou para os filhos. Mas para a sua tristeza, a ilha deixou de ser do povo. As crianças já não brincavam nas margens lamacentas, já não corriam pelos mangues, praticamente não se via mais as crianças. As ilhas agora eram da cana-de-açúcar, e as famílias foram apartadas do que eram delas.
Maria de Nazareth e Maria das Dores formam duas das famílias que resistiram às perseguições desde 1998, com intimidações, ameaças e queima de casas. Maria de Nazareth e Maria das Dores persistiram na resistência e passaram a ser as únicas famílias a viverem nas Ilhas, quando todos já haviam sido expulsos sem alternativas de permanecerem em seus territórios. Os filhos destas mulheres, que desde cedo aprenderam a viver dos manguezais, já não podiam mais encontrar o mesmo mangue em que suas mães brincaram e aprenderam a viver e a pescar.
No ano de 2010, outro ato covarde da Usina Trapiche: expulsão destas duas únicas famílias que viviam nas ilhas de Sirinhaém. As duas Marias foram obrigadas a viver na periferia de Sirinhaém. Mas Maria de Nazareth tem fé. Essa guerreira volta ao mangue cotidianamente para tirar seu sustento. De baixo de uma barraca de palha, que ela mesma construiu próximo ao mangue para aguardar os intervalos das marés, Maria de Nazareth lembra do tempo de seus pais e do tempo de criança que a Usina não devolverá. Volta às ilhas todos os dias, não só para tirar seu sustento, mas por acreditar que um dia aquela terra e aquela história voltará a ser do povo.
Nas três vezes que a Usina destruiu a sua barraca de pesca no ano de 2013, ela a reconstruiu, alimentando o sonho que a violência não consegue sepultar. Em uma das vezes, queimaram sua barraca, jogaram sua comida no lixo, levaram os instrumentos de pesca, queimaram sua identidade. Mas, os sonhos são etéreos, são diáfanos, não se pesam como se pesam as coisas materiais, e por isso mesmo nada ou ninguém é capaz de destruí-los. Um dia, Maria de Nazareth, ela ou a sua sombra estará ali, sentada, debaixo de uma barraca, escutando o barulho das marés.
Marluce Mello é da Comissão Pastoral da Terra - Regional Nordeste II