Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Maria José da Costa, da Via Campesina, explica que as reivindicações dos movimentos camponeses têm como objetivo a produção de alimentos mais baratos e saudáveis; segundo ela, para implementá-las, governo gastaria bem menos recursos do que o que foi “doado” ao agronegócio na renegociação da dívida.

Representantes de movimentos sociais do campo organizados pela Via Campesina entregaram, na quinta-feira (12), ao governo Lula um documento com as “Propostas Estruturantes a Curto Prazo” para o desenvolvimento social e econômico do campo brasileiro.

Intitulado “Plataforma da Via Campesina”, o documento exige mudanças do atual modelo agrícola.  “O principal interessado nessa questão da crise de alimentos é o agricultor e a agricultora que produz, mas também todos aqueles que querem alimentos de qualidade e a um preço acessível”, afirma Maria José da Costa, da coordenação nacional da Via Campesina, em entrevista ao Brasil de Fato. Para ela, o caminho que solucione os entraves no campo passa pela restruturação das comunidades camponesas, com o respeito à biodiversidade. Na mesma semana em que entregou o documento ao governo, a Via Campesina  organizou manifestações em diversos estados em protesto contra o agronegócio e a atuação de empresas estrangeiras no país – fatores considerados fundamentais no levantamento das causas da recente alta dos preços dos alimentos.

Brasil de Fato - As manifestações da Jornada de Lutas conseguiram chamar a atenção da sociedade e denunciar as transnacionais do agronegócio?
Maria José da Costa - Há alguns fatos que comprovam que essas ações têm chamado, sim, a atenção da sociedade. Um é o próprio número de questionamentos nas mobilizações. O outro é a demanda pelos próprios meios de comunicação das informações em relação às ações.  No Rio Grande do Sul, um número muito grande de pessoas ficaram feridas e também foram presas, com companheiros hospitalizados. A gente está conseguindo fazer com que o debate chegue na sociedade; o principal interessado nessa questão da crise de alimentos é o agricultor e a agricultora que produz, mas também aqueles que compram e que querem alimentos de qualidade e a um preço acessível.

Agora, no que tange as Propostas Estruturantes de Curto Prazo,  como funcionaria um programa que contemplasse a  agroindústria familiar? É verdade que, nos últimos anos, a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) vem agindo de modo mais efetivo na relação com a com produção camponesa?

Não podemos negar que essa foi uma das principais ações desse governo em relação a questão da agricultura camponesa. No entanto, podemos continuar produzindo bastante, mas se nós não tivermos uma linha direta com o consumidor, não somente através do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que é gerido pela Conab, mas por meio de outros programas de aquisição que sejam iniciativas do governo, vamos continuar entregando a nossa produção para as grandes redes de distribuição baseadas na integração e no modelo petroquímico. A Conab precisa de mais estrutura, de mais técnicos e de um volume maior de recursos para que chegue a todos os cantos onde tenha agricultores e a agricultoras produzindo. Infelizmente ela (Conab) ainda cumpre somente um papel de regulador do mercado. Porém, a Conab precisa dar um passo a mais que é, de fato, de estocar alimento, que ela faz, mas faz pouco e também, distribuir alimento. Hoje, precisamos pensar em grandes centros de distribuição, de comercialização dos alimentos, porque os grandes conglomerados de distribuição funcionam como atravessadores e não deixam o alimento chegar barato na mesa dos trabalhadores. Isso é o que está faltando de fato em muitos setores, como a cadeia do leite, a do frango, dos suínos.  Os agricultores terminam entregando sua produção para as transnacionais, e não para os consumidores.

Quanto ao modelo da agroenergia produzida a partir da agricultura camponesa, seria necessário, de fato, uma estatal que direcione, regule e fomente a produção, garantindo uma maior estabilidade para as famílias envolvidas nesse processo?
A estratégia de produção de alimento e energia passa por uma outra lógica, que não é essa, por exemplo, do petróleo. É preciso que de fato haja uma compreensão de como que funciona o campo, os sistemas camponeses. A produção de agroenergia por meio das grandes monoculturas não vai resolver em nada, inclusive porque o que eles chamam de energia limpa é produzida a base de petróleo, com a utilização de insumos petroquímicos. É preciso ter uma subsidiária, que pode ser da Petrobrás, que tenha esse foco da compreensão dos sistemas camponeses de produção.

Hoje, a produção de fertilizantes é monopolizada, enquanto que até meados dos anos 1990, a Petrobrás era responsável pela produção.  Por que os movimentos defendem uma estatal de fertilizantes para baratear esses insumos?

Até 1994, a produção da maior parte dos fertilizantes era, de fato, da Petrobrás. Só que de 1994 para cá, houve a privatização desta atividade. Hoje, nós temos três grandes empresas que monopolizam o ramo de fertilizantes: é a Bunge, a Iara e a Mosaic. Nós temos bastante nitrogênio porque faz parte da cadeia do petróleo. Se considerar o fósforo e o potássio,  nós temos pouquíssimo aqui, no Brasil, e temos que importar de outros países, o que encarece muito o produto e causa dependência. A saída seria termos uma empresa estatal ou reestatizar a produção dos fertilizantes, tanto os minerais como os orgânicos. Nós temos no Brasil essa possibilidade, que existe em poucos lugares.  Nós temos ótimas possibilidades de construir a soberania alimentar e de utilizar os biodigestores, também com essa finalidade: produzir energia e utilizar resíduos da produção alimentar para a adubação. Com a matéria verde que temos em nosso país, é extremamente possível a gente demandar, de forma organizada, uma outra base de fertilizantes para a nossa agricultura.

Na carta também são defendidas três pautas ligadas à agricultura camponesa e a crise alimentar. A necessidade da implementação da tarifa social, o programa nacional de habitação camponesa e da universalização do abastecimento de água. Esses temas não estão diretamente ligados ao desenvolvimento da agricultura camponesa. Qual o grau de importância dessas pautas em relação ao fomento da produção?
No caso da tarifa social, as empresas, muitas delas transnacionais, consomem uma gama enorme da energia e nós, na verdade, é que terminamos pagando boa parte da energia. O que defendemos é que o povo pague, no mínimo, a mesma tarifa que as empresas pagam. Quanto à habitação rural, ter uma casa digna, uma morada digna, é uma necessidade para que até as pessoas não saiam do campo e vá para a cidade. E no caso da água, a sociedade brasileira ainda está um pouco apática em relação ao grande problema que vai se tornar.

Como a transposição do Rio São Francisco se insere nesse contexto?
O São Francisco se insere nisso perfeitamente. Já há muito tempo, o rio está sendo exportado através das frutas que vão para a Europa, para os Estados Unidos, para a Ásia. A água do São Francisco está sendo mandada para fora também através da grande expansão da produção de cana irrigada e da produção de camarão de água doce. Na verdade, ela vai sendo importada através de produtos das transnacionais. O fato é que na região do Semi-Árido existem reservatórios mais que suficientes de água. A própria Agência Nacional das Águas (ANA) é um órgão do governo que mostrou estudos efetivos, sérios, que nós utilizaríamos muito menos recursos para atender muito mais pessoas se adotássemos técnicas mais diversas e dominadas pela população. Para a Ana, esse seria um método mais eficiente de fazer realmente fazer a água chegar a quem, de fato, precisando dela.

Sobre o Programa de Reflorestamento, existe uma inclinação por parte do governo em aceitar as propostas feitas pela Via Campesina, ou até mesmo debater?
Na quinta-feira (12), protocolamos essa proposição no Palácio do Planalto, entregamos ao chefe-de-gabinete do presidente Lula, o doutor Gilberto Carvalho, que nos prometeu  naquele mesmo momento passaria para as mãos do Lula. Ao protocolarmos o documento e ao termos as notícias da criação do Programa Mais Alimentos, achamos que é possível, sim, haver uma sinalização de debater esses temas porque a crise da alta do preço dos alimentos está latente. Mesmo porque só é possível resolvermos esse problema com a reestruturação das comunidades e das propriedades camponesas. Não serão gastos nem os mais de R$ 70 bi lhões que foram dados aos fazendeiros na renegociação da dívida.

Qual a expectativa dos movimentos camponeses para que essas políticas sejam, de fato, implementadas por parte da União?
Após as lutas que as organizações sociais vêm desenvolvendo, o próprio governo está formulando uma proposta para a habitação no campo, um espécie de programa nacional de habitação camponesa. Esse programa está sendo discutido com as organizações. É uma proposta que pode não resolver todos os problemas  do déficit habitacional, mas é interessante, até porque está sendo construída também com a participação das organizações. No caso da assistência técnica, tivemos praticamente o dobro dos recursos, algo que também saiu da pauta das organizações. Está sendo criado agora o Programa Mais Alimentos e, na nossa pauta de 2003 até agora, apresentamos uma proposição de um Programa de Reestruturação das Comunidades Camponesas, que era um programa em que os recursos chegariam até R$ 100 mil e os juros eram de 2%, parecido com o que o governo está apresentando agora. De fato, o governo sentiu a pressão. O Bolsa-Família, embora precise dar um passo a mais, deu a possibilidade para milhões de famílias ter acesso a algo mais do que elas tinham, e um desses algo a mais é comida. Você pode botar R$ 100 bilhões no agronegócio e na agricultura patronal, mas eles nunca darão conta de produzir a comida para a nosso povo. São como sanguessugas, sobrevivem somente à base dos subsídios que o governo dá. Diferentemente da agricultura camponesa, que nem 50% acessa a crédito, mas produz mais de 70% do que o povo brasileiro consome.



Fonte: Brasil de Fato

 

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