Para Organização das Nações Unidas, recurso será causa número 1 de guerras na África até 2030 Água. Esse será um dos principais motivos que levarão países e grupos armados a entrarem em conflito nos próximos 25 anos. O alerta é da Organização das Nações Unidas, que, num estudo preparado para o Dia Mundial da Água, aponta que o acesso à água será a causa número 1 das guerras na África até 2030, principalmente em regiões pobres que compartilham rios e bacias. O Estado de S. Paulo Estadão, 20.03.2008 Jamil Chade, GENEBRA
"Identificamos 46 países, onde vivem 2,7 bilhões de pessoas, nos quais há alto risco de crises relacionadas à água provocarem conflitos violentos", diz o secretário-geral da ONU, Ban-Ki-Moon, num artigo publicado no sábado.
Na União Européia, os chefes de Estado foram surpreendidos na semana passada por um relatório do comissário de Relações Exteriores, Javier Solana, que alertou que a falta de água nos países vizinhos ao bloco vai acirrar a corrida de imigrantes ilegais para a Europa até 2050. Solana, ex-secretário-geral da Otan (aliança militar que reúne Europa e América do Norte), afirmou que as mudanças climáticas poderão reduzir a disponibilidade de água em até 30% em algumas regiões. E defendeu a tese de que o acesso a recursos naturais seja considerado questão de segurança estratégica.
Num calhamaço de mais de 500 páginas sobre mudanças climáticas, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) estimou que 3,9 bilhões de pessoas no mundo podem sofrer com a falta de água até 2030, 1,7 bilhão a mais do que hoje. Isso representa 47% da população mundial estimada para 2030. E, embora as projeções sejam mais dramáticas para nações pobres, 2,2 bilhões dessas pessoas estarão distribuídas pelos emergentes do Bric (grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia e China).
Seja qual for a origem do estudo, todos indicam a mesma coisa: a principal disputa no planeta nos próximos 50 anos não será por petróleo, ouro, carvão ou minérios, mas por água - situação capaz de criar um exército de "refugiados ambientais". Segundo entidades como o Global Policy Forum, os governos precisam estabelecer regras de como usar de maneira coordenada reservas compartilhadas.
A Índia é vista como um desses casos delicados. A disputa pelas águas com o Paquistão tem sido um dos motivos para o prolongamento da guerra na Cachemira. Já na fronteira com Bangladesh, os indianos ergueram uma barreira para evitar um maior fluxo de migrantes em busca de maior acesso a alimentos e água.
Na Ásia Central, a tensão também é crescente. O Tajiquistão e o Quirguistão controlam 90% das reservas da região. Mas o Usbequistão é o maior usuário e pede acesso facilitado. "Os glaciais no Tajiquistão perderam um terço de sua área apenas em 50 anos, enquanto o Quirguistão perdeu mais de mil glaciais nos últimos 40 anos", diz Solana no relatório. "Há, portanto, um potencial considerável para um conflito em uma região cujo desenvolvimento político, econômico e estratégico tem impacto direto em interesses europeus."
A água também é apontada como um dos principais motivos para o conflito em Darfur, na África. A guerrilha é acusada de envenenar reservatórios para forçar a população muçulmana a abandonar a região. Segundo levantamento feito pela ONU em junho, o conflito, que já deixou 200 mil mortos desde 2003, pode ser explicado pela tensão criada entre grupos étnicos no Sudão depois que o acesso a recursos naturais, entre eles a água, foi dificultado pelas condições climáticas. No norte de Darfur, o volume de chuvas caiu 30% nos últimos 80 anos. O deserto avançou em quase 200 quilômetros desde 1930.
Outro problema é a disparidade no uso da água. Na avaliação da ONU, uma pessoa precisa de no mínimo 50 litros de água por dia para atender suas necessidades. Mas, nos Estados Unidos, o consumo per capita é 45 vezes maior.
Alguns países ricos já aumentaram o preço da água. Na Dinamarca, a alta foi de 54% em dez anos. O resultado foi uma queda no consumo médio de 155 litros por pessoa por dia para 125 litros, ainda bem acima do padrão da ONU. A equação nos países pobres é diferente. Hoje, uma em cada cinco pessoas no mundo não tem acesso a água potável ou saneamento.
Os problemas relativos à água não são apenas de consumo. Solana alerta que o derretimento de parte da calota de gelo do Ártico, possível efeito da mudança climática, abrirá novas passagens para navios e oportunidades de exploração de petróleo. Isso recolocaria em debate as diferenças entre países pelo controle do Ártico, até agora literalmente congeladas. Segundo a UE, tais mudanças nas rotas teriam "conseqüências para a estabilidade internacional e para os interesses de segurança" do bloco europeu.
A possível tensão entre americanos, russos, canadenses e europeus no Ártico também será tema da agenda da Otan em sua reunião anual, no mês que vem, em Bucareste. Pela primeira vez, a aliança tratará das ameaças relacionadas à disputa pelos recursos naturais. Mais uma demonstração de que generais e estrategistas estão preocupados com riscos de conflitos envolvendo o abastecimento do planeta.
Água virtual das commodities, o trunfo estratégico brasileiro.País precisa cobrar pelo que exporta, dizem experts.
Giovana Girardi
Em um cenário de guerras e disputas por recursos hídricos, o Brasil, que detém 12% da água potável do mundo, pode assumir um papel estratégico, segundo especialistas ouvidos pelo Estado. Isso deve ocorrer basicamente pela relação entre água e agricultura.
Num futuro de escassez de água e de alimentos, como o previsto pelos relatórios do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) no ano passado, aproveitar essa vantagem comparativa passa pela capacidade de o País manter e ampliar a produção e exportação de alimentos. "E de cobrar pela água virtual contida nesses produtos", diz o economista Gilberto Dupas, presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais.
Os números publicados no alto das páginas deste caderno ilustram essa questão. Para produzir 1 quilo de soja são necessários cerca de 1.500 litros de água, 1 kg de cana para a produção de etanol consome 600 l.
"Hoje as commodities são as maiores sugadoras de água doce do mundo", afirma Dupas. "Elas arrancam a água dos países pobres e levam para os ricos sem que isso seja contado no preço. O Brasil precisa se articular com outros países produtores para decidir como vai cobrar por isso. É de se esperar que no futuro o processo seja semelhante ao que ocorre com as reservas de petróleo e seja incluído nas commodities o preço da escassez futura de água."
Mas, antes disso, diz Dupas, o País precisa zelar pela conservação dessa água. Contaminação dos mananciais, desperdício (hoje ocorre em média perda de 45% na distribuição de água nas capitais brasileiras) e consumo excessivo são algumas ameaças. Isso sem contar o desmatamento da Amazônia, que pode afetar as chuvas no Sudeste.
"O Brasil, excetuando partes do Nordeste, é abundante em todo o ciclo da água: na atmosfera, nas águas superficiais e nas subterrâneas. Mas precisa saber aproveitar essas vantagens como recurso estratégico", concorda o hidrólogo José Galizia Tundisi, do Instituto Internacional de Ecologia. "Para assegurar a produção agrícola, e evidentemente o abastecimento público, é preciso manter água de boa qualidade. E aí caímos na falta de tratamento de esgoto. Isso deteriora a qualidade da água, diminui a reserva e aumenta os custos de tratamento."
"Para se manter em vantagem, o Brasil tem de cuidar do desperdício, aproveitar a água das chuvas e remanejar a agricultura para locais com dotação hídrica, em uma espécie de política de zoneamento ecológico", diz Ignacy Sachs, economista polonês (ou "ecossocioeconomista", como ele é chamado) radicado na França. Ele propõe uma "revolução azul", com incentivo à aqüicultura. "Em relação aos recursos da água, ainda vivemos como caçadores-coletores, sem muita estratégia e de forma insustentável. Fizemos no passado um salto fundamental com a agricultura, mas engatinhamos na criação dos recursos aquáticos. Áreas como a Amazônia têm vocação para a aqüicultura, e os peixes podem com o tempo substituir a carne, já que a pecuária extensiva tende a causar cada vez mais problemas."
Estudos desmentem mitos sobre o Guarani
Acesso difícil e baixa qualidade da água diminuem papel do aqüífero
Giovana Girardi
Um dos maiores reservatórios de água subterrânea do mundo, o Aqüífero Guarani já foi visto como um imenso mar de água doce sob a América do Sul, que teria uma capacidade quase inesgotável, com potencial para abastecer a população brasileira por cerca de 2.500 anos. Agora novos estudos feitos nos quatro países por onde ele se estende (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai) começam a mostrar que a situação não é bem assim.
As pesquisas, coordenadas pela Organização dos Estados Americanos e pelo Banco Mundial, buscam responder qual o real potencial do aqüífero. Os primeiros resultados já mostram que pontos de difícil acesso e água salobra ou quente demais reduzem um bocado o volume que realmente pode ser usado pelo homem. Além disso, o consumo excessivo em certas regiões de afloramento ameaça a manutenção do manancial que, se esperava, duraria para sempre.
Para começar, o próprio tamanho do aqüífero está sendo revisto. Inicialmente se imaginava que ele tinha cerca de 1,2 milhão de quilômetros quadrados, mas os pesquisadores descobriram que na Argentina ele é um pouco menor. Um mapa das características hidrogeológicas do aqüífero deve sair até o fim do ano, derrubando de vez o senso comum de que o Guarani é contínuo e homogêneo, com a mesma disponibilidade de água potável em toda a extensão.
"Essa é uma idéia que surgiu por causa das características do aqüífero em São Paulo. Como no Estado ele é bem conhecido e bastante aproveitado, muita gente pensou que ele fosse inteiro assim. Mas não é", afirma o pesquisador Ricardo Hirata, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo. "Acima do Paraná a água é muito boa, mas abaixo nem tanto."
Estudos anteriores no Rio Grande do Sul já mostravam que, em vez de uma grande caixa d´água subterrânea, o aqüífero é compartimentado e heterogêneo. Agora os cientistas estão notando isso em todo o reservatório. "Está mais para uma caixa de ovos com areia e água", define Luiz Amore, secretário-geral do projeto. Alguns trechos têm muito arsênico ou flúor ou sal, outros são quentes demais. E em certos pontos a produtividade é baixa.
Há ainda o problema do acesso. Apenas 10% do sistema está em formato de afloramento - trechos em que o arenito se eleva até a superfície. Em suas bordas e arredores é onde a água pode ser mais facilmente obtida. Tanto que cerca de 90% da extração feita hoje ocorre em média numa faixa de 150 km a partir desses locais. Pelas contas preliminares de pesquisadores da Unesp que estão fazendo o mapeamento, isso representa mais ou menos 40% do reservatório. No resto, o acesso fica mais difícil, quando não é inviável. A maior parte do aqüífero está confinada sob rochas de basalto, que atingem em alguns trechos até 1,5 km de profundidade.
"Um problema de extrair das partes mais profundas é que nessas áreas a reposição de água é lentíssima. Uma vez retirada, não volta mais", diz Didier Gastmans, do Laboratório de Estudo de Jornal Estado de S. Paulo, 19/03/08.