Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Confira a análise do Conselho Nacional dos Direitos Humanos sobre a inconstitucionalidade do PL.

O Conselho Nacional dos Direitos Humanos – CNDH publicou na última sexta-feira, 20, a nota técnica 01/2023 sobre o projeto de lei 2903/2023, o projeto do Marco Temporal, aprovado pelo Congresso Nacional. O documento analisou o projeto de lei à luz da Constituição Federal e dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos de que o Brasil é signatário e recomendou à presidência da República veto integral ao projeto. No mesmo dia, o presidente Lula vetou parcialmente o PL 2903 e retirou o Marco Temporal da proposta. O veto parcial, porém, não elimina as ameaças aos direitos territoriais dos povos indígenas. 

Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), dois trechos do PL que não foram integralmente vetados por Lula geram maiores preocupações sobre violações aos direitos indígenas:

      1. O Artigo 26 do PL trata sobre cooperação entre indígenas e não indígenas para exploração de atividades econômicas, que pode ampliar o assédio nos territórios para flexibilizar o usufruto exclusivo.
      2. O Artigo 20 que afirma que o usufruto exclusivo não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional.

Afirmamos que o Artigo 20 é perigoso, pois pode, igualmente, abrir margem para mitigar o usufruto exclusivo, diante do conceito genérico de “interesse de política de defesa”, justificando intervenções militares nos territórios. Mesmo com essa ameaça, reforçamos que os Povos indígenas são resguardados pelo Artigo 231, §6o, da Constituição, que prevê que o relevante interesse da União deverá ser disposto por Lei Complementar e não por Lei Ordinária como é o caso do PL 2903.

Os vetos parciais de Lula seguem para análise e votação pelo Congresso Nacional, em sessão conjunta entre Deputados e Senadores, que vão decidir se acatam ou não os vetos. Caso sejam mantidos, a lei será aprovada isenta dos trechos vetados. Caso os vetos sejam derrubados, a lei será aprovada integralmente, com todas as ameaças e violações de direitos dos povos indígenas.

Diante do veto parcial, o documento do CNDH mantém sua relevância para a compreensão das inconsistências do PL, pois aponta a “manifesta” inconstitucionalidade do projeto, reafirmando o direito constitucional dos povos indígenas às terras que ocupam, garantidos nos artigos 231 e 233 da Constituição Federal. O julgamento recente do Supremo Tribunal Federal, que concluiu definitivamente pela rejeição da tese do marco temporal é retomado, mas também a convenção 196, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, que garante o direito originário dos povos indígenas a suas terras. 

A nota técnica cita manifestações feitas por diversos organismos internacionais que alertam para a violação de direitos humanos que a tese do marco temporal representa, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais e Ambientais (Redesca), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o Comitê de Direitos Humanos da ONU, além de organizações brasileiras indígenas, indigenistas e do próprio Estado. 

Além de apontar inconstitucionalidade da própria tese de um marco temporal, a nota aponta inconstitucionalidade nas alterações do procedimento de demarcação. De acordo com o projeto de lei aprovado, os interessados podem contestar a demarcação das terras indígenas a qualquer momento, o que, para o CNDH representa a criação de um procedimento “sem qualquer respaldo na literatura do direito administrativo ou do direito processual”. Afirma a nota que, “ao se permitir que pessoas interessadas contestem o procedimento de demarcação, a qualquer momento, o projeto de lei em exame não apenas viola o princípio da segurança jurídica, como atinge também frontalmente os princípios do devido processo legal e da razoável duração do processo”.

A inconstitucionalidade também é observada na previsão de retomada de terras indígenas por alteração de traços culturais, o que contraria a convenção 169 da OIT, que estabelece a autoidentificação como critério para a definição dos povos indígenas.  

A flexibilização do usufruto exclusivo das terras indígenas, para permitir, por exemplo, atividades energéticas, ou construção de estradas, sem prévia consulta às comunidades, é considerada pelo conselho como “verdadeiro atentado jurídico”. Já a possibilidade de contato com povos isolados, prevista pela lei, desrespeita “a autonomia, o direito de autodeterminação e as legislações internacionais”, além de abrirem “potencial risco de extermínio” e genocídio dos povos isolados. 

A nota ainda aponta inconstitucionalidade na previsão de indenização a não indígenas, o que é vedado expressamente pela Constituição Federal, e na permissão do cultivo de organismos geneticamente modificados, o que poderá contaminar as sementes e espécies crioulas e nativas, “comprometendo a biodiversidade, o patrimônio genético dos povos indígenas, a segurança alimentar e o bem-estar”. 

O documento finaliza com o princípio da proibição de retrocesso em matéria de direitos humanos. “Os dispositivos desse projeto de lei implicam grave retrocesso em matéria de direitos humanos, atingindo preceitos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969)l, da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007), da Convenção nº 169 da OIT - Organização Internacional do Trabalho, do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos”. Além de recomendar veto total ao projeto, a nota afirma que a “insistência do Poder Legislativo em inserir no ordenamento jurídico brasileiro dispositivos com manifestos conteúdos inconstitucionais, assim já declarados pela Suprema Corte, configura uma lamentável ofensa ao princípio da harmonia entre os Poderes da União e, portanto, uma violação ao disposto no art. 2º da Constituição”. 

Leia a nota técnica 01/2023 na íntegra aqui.

 

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