O Plano Safra é um programa do governo federal que foi instituído em 2003 tendo como finalidade fomentar a produção rural brasileira. Desde então, todos os anos, verbas são destinadas para investimento ou para custeio, industrialização e comercialização dos produtos agropecuários. No contexto nacional e no âmbito da agricultura, é a principal política com o objetivo de fornecer créditos e incentivos para o setor agrícola e pecuário.
Por Clarice Rodrigues*
Da Página do MST
Desde que foi lançado, esta foi a primeira vez que o programa foi anunciado de forma separada. Do valor total de 441,92 bilhões, o maior valor já anunciado desde a sua criação, 364,22 bilhões foi destinado ao agronegócio, enquanto para a agricultura familiar foi anunciado 77,7 bilhões, menos de 18%.
O Plano Safra 2023/2024 destinado aos médios e grandes produtores rurais foi classificado pelo governo como “o maior da história: o Brasil com força para crescer”. Neste anúncio, dois pontos foram enfatizados: o valor que representa 27% em relação ao financiamento anterior, que foi de R$ 287,16 bilhões para o Programa Nacional de Apoio ao Médio Produtor Rural (Pronamp), agricultura empresarial e agricultura familiar. O outro ponto destacado foi o incentivo aos sistemas de produção ambientalmente sustentáveis, premiação para os produtores rurais que adotem práticas agropecuárias consideradas mais sustentáveis, além da redução das taxas de juros para recuperação de pastagens. Em se tratando dos temas ambientais, espera-se que seja, realmente, cobrado do agronegócio esta responsabilidade igualmente e na mesma proporção dos altos valores de créditos e financiamentos concedidos.
Um dia depois do anúncio dos bilhões para o agronegócio, foi a vez de anunciar que a agricultura familiar — responsável por 70% dos alimentos produzidos e consumidos no Brasil — ficaria com menos de um quarto do valor total do programa, o que sempre aconteceu desde a sua criação, apesar de o valor atual significar um aumento de 34% em relação ao valor do último período, 2022/2023.
Dentre as muitas medidas estabelecidas para a agricultura familiar, destacam-se a redução de 5% para 4% da taxa de juros ao ano para quem produz alimentos essenciais, como feijão, arroz, leite, ovos, dentre outros. Vale a pena ressaltar neste ponto que a questão central é garantir que as famílias consigam acessar estes créditos, pois ao se tratar da produção familiar, não é exagero dizer que as famílias só produzem alimentos essenciais que são base da alimentação brasileira. E acrescentamos ainda que quando nos referimos a “essenciais” correlacionamos diretamente com a fome, pois são estas produções que mesmo na condição de acesso “crédito mínimo” tem conseguido levar às mesas brasileiras a comida que sacia e assegura a vida.
Outro ponto significativo no Plano Safra da Agricultura Familiar é o Pronaf Mulher que traz um limite de financiamento de até R$ 25 mil por ano e taxa de juros de 4% ao ano destinada às agricultoras com renda anual de até R$ 100 mil. Para o Pronaf B, o limite do financiamento dobrou e pode chegar até R$ 12 mil e mulheres quilombolas e assentadas da reforma agrária terão um aumento de 90% no desconto do Fomento Mulher. E se tratando da juventude rural foi prometido que será criada uma de faixa de acesso exclusiva ao Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF) estabelecendo melhores condições de acesso à terra para os jovens que desejam viver e produzir no campo.
Dentre as várias medidas anunciadas destacou-se também a volta do Programa Mais Alimentos que tem o objetivo de incentivar a produção e aquisição de implementos agrícolas específicos para a agricultura familiar o que foca na melhoria da qualidade de vida e produção das agricultoras e agricultores familiares. O Mais Alimentos é um dos oitos pilares do Plano Safra da Agricultura Familiar, assim como o incentivo para a produção de alimentos; mais estímulos à agricultura de baixo carbono com estímulo à produção de base agroecológica e da sociobioversidade; acesso das mulheres, jovens, povos e comunidades tradicionais ao crédito; oportunidades para a juventude do campo; inclusão produtiva de agricultoras agricultores e de baixa renda; assistência técnica e extensão rural e incentivo ao cooperativismo.
Outro anúncio importante foi a inclusão das comunidades tradicionais e indígenas que passam a ser incluídas como beneficiárias do Pronaf A, tendo em vista que precisamos garantir o reconhecimento total e acesso as emissões do Cadastro Nacional da Agricultura Familiar – CAF´s para que as agências de fomento possam aportar créditos aos territórios citados.
Já que não é possível se falar de produção de alimentos saudáveis e produção ambientalmente sustentável sem falar em acesso à terra ou em apoio à reforma agrária, o Plano Safra da Agricultura Familiar 2023/2024 retomará as políticas de acesso à terra através de decretos que visarão garantir créditos para a instalação das famílias, assegurando a compra de itens de primeira necessidade e equipamentos para que as famílias assentadas possam investir na produção.
Essa medida favorece o acesso à terra por parte daqueles que produzem comida de verdade e estão preocupados com o desafio que é alimentar os mais de 21 milhões de brasileiros que não tem o que comer todo os dias, além das 70,3% milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar.
A agricultura familiar, ainda passa por um momento de muita fragilidade, considerando a falta de incentivo e enfraquecimento das políticas públicas vivenciadas no último governo, período em que os investimentos se concentraram no agronegócio das grandes fazendas exportadoras de commodities, mineradoras e outros segmentos do capital estrangeiro no campo brasileiro.
Diante disso o anúncio do atual Plano Safra renova as esperanças das e dos agricultores familiares no acesso a créditos para financiamento da sua produção, no entanto é muito importante criar mecanismos que garantam, de verdade, este acesso por parte das e dos agricultores familiares, pois considerando todos o sucateamento das políticas públicas direcionadas a agricultura familiar do último período e, consequentemente, o enfraquecimento das ações do segmento, não se pode permitir que se tenha um plano muito bonito no papel, na sua divulgação e na prática as famílias não consigam acessar e garantir o financiamento das suas necessidades.
Vale a pena ressaltar a importância deste programa e do valor anunciado, principalmente neste momento em que o Brasil luta contra uma das facetas, mas triste vivenciada pela humanidade, a fome.
Na segunda metade do ano de 2022 foi divulgado o relatório do Índice Global da Fome (IGF), de autoria da organização não governamental alemã Welthungerhilfe (ajuda mundial para a fome). De acordo com ele, o número de pessoas passando fome aumentou de 811 milhões para 828 milhões entre os anos de 2021 e 2022. Lamentavelmente a tendência é que estes números cresçam ainda mais, em decorrência de crises recentes e atuais, como a pandemia do coronavírus, a guerra na Ucrânia e as mudanças climáticas, além de demais problemas culturais. O Brasil, não diferente da realidade mundial, tem enfrentado desafios persistentes no combate à fome e à pobreza, que aumentou absurdamente nos últimos anos, o que recolocou Brasil de volta ao Mapa da Fome de onde havia saído em 2014. Vale ressaltar que a pandemia da covid-19 agravou esta situação, mas é importante considerar que a fome no Brasil é anterior à pandemia.
Diante disso, espera-se que estas várias medidas anunciadas pelo governo federal nestes últimos seis meses e, aqui ressaltando o Plano Safra 2022/2023, tenham condições de impulsionar o enfrentamento aos principais desafios vividos pela agricultura familiar e a reforma agrária no Brasil. Contudo, é importante ressaltar que, apesar do valor anunciado ser o maior desde que o Plano Safra foi criado, a parcela que diz respeito a agricultura familiar é bem inferior à direcionada ao agronegócio, onde a maior parcela, desde sempre, fica sob o carimbo da agricultura empresarial.
O grande desafio posto é tirar o Brasil do Mapa da Fome, produzindo de forma diversificada e a partir de um sistema sustentável e para isso é preciso garantir políticas públicas capazes de proporcionar aos agricultores familiares, assentadas e assentados da reforma agrárias, comunidades tradicionais e quilombolas o acesso aos créditos e financiamentos necessários. Neste momento, acredita-se que o Plano Safra é um importante instrumento para isso, desde que seja garantido os recursos anunciados em formato que as os agricultores possam acessar e não virando apenas uma propaganda inacessível ou pouco acessível por parte de quem está produzindo comida no campo brasileiro.
Na certeza de que acreditamos ser possível construir com a auto-organização da casse trabalhadora através das suas cooperativas, associações e demais formas organizativas, esperamos que os diversos segmentos produtivos da agricultura familiar não sejam barrados do acesso pela burocracia que muitas vezes são excessivas e negacionistas, levando os camponeses ao cansaço e que estas estratégias costumeiras não venham minar as esperanças dos que lutam todo dia por uma produção agroecológica sustentável e se reproduzindo com políticas mínimas de fomento à agricultura familiar mas mantendo-se produtores em seus territórios de vida e sustento.
*Clarice Rodrigues é militante Sem Terra no estado do Ceará e integra o Coletivo Nacional de Produção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
**Editado por Fernanda Alcântara