Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

A supressão de direitos dos(as) trabalhadores(as) assalariados(as), a precarização profunda do trabalho e o ataque às suas instituições sindicais legítimas se tornaram, nos últimos anos, uma política oficial do Estado brasileiro e um projeto estratégico de grandes empresas empregadoras, rurais e urbanas. Em Pernambuco, essa ofensiva tem gerado impactos profundos para os trabalhadores(as) na atividade canavieira e na fruticultura, corroendo drasticamente a dignidade de cerca de 200 mil assalariados rurais de ambos os setores e, por consequência, de suas famílias, que formam um expressivo contingente da população pernambucana.

A precarização foi aprofundada em sucessivos ciclos de reformas trabalhistas aprovadas, pelo Congresso Nacional, a partir de 2017, desde a farsa do impeachment. Falsas promessas manipuladoras de que o emprego cresceria e o desenvolvimento seria retomado embalaram o esquartejamento da CLT. Sob esses falsos pretextos, foram feitas graves e estruturais mudanças na legislação, mas o desemprego crônico continuou na casa dos 12 milhões de pessoas e a economia, estagnada. Os principais motivos reais dessas reformas supressoras de direitos sempre estiveram ocultos, embora sejam óbvios: reduzir e neutralizar os ganhos do salário mínimo até 2016 e, em especial, proporcionar outros ganhos ao agronegócio, flexibilizando regras e aumentando a liberdade das empresas no manejo do trabalho de acordo com as suas conveniências e seus interesses em determinar as condições de contratação, de demissão, de jornada e de remuneração da força de trabalho.

Assim, foram impostas aos (às) trabalhadores(as) e aos seus direitos diversas modificações lesivas e corrosivas.  A relação é bastante numerosa, mas dentre elas é imperioso denunciar, particularmente: (1) a criação de novas modalidades para o contrato de trabalho, inclusive o criminoso contrato intermitente, concebido para institucionalizar o “biscate” e para possibilitar a redução imediata do salário mínimo e do acesso à proteção previdenciária e social; (2) a terceirização ampla das atividades-fim das empresas, abrindo o caminho para a simulação e para a fraude; (3) a facilitação intensa para as rescisões e demissões, combinada com novas dificuldades e ônus para o acesso à justiça; (4) as facilidades lesivas para alterar a jornada de trabalho e a remuneração de horas extras, respaldando a superexploração do trabalho; (5) a retirada de representatividade das organizações sindicais, ampliando  o poder das empresas para negociar diretamente com os seus empregados e empregadas, sem mediação, fragilizando-os ainda mais na relação de trabalho e subordinação que, por natureza, é desfavorável ao(à) trabalhador(a); (6) o desmonte da fiscalização do Ministério do Trabalho, já deficiente por tradição e que foi reduzida ao extremo, favorecendo a impunidade dos infratores da lei e dos direitos trabalhistas, inclusive quanto ao trabalho análogo à escravidão, cujo crescimento voltou a se intensificar no trabalho rural.

Na Zona da Mata pernambucana, os direitos dos(as) canavieiros(as) estão sendo subtraídos e achatados pela combinação venenosa entre esse ciclo de supressão legal de direitos, de um lado, e, de outro lado, da postura histórica das usinas e senhores de engenho de negar direitos. Esse quadro ficou ainda pior na crise estrutural do setor sucroalcooleiro no Estado, que se alonga há décadas se aproveitando da ausência de políticas públicas para reestruturar a região, do ponto de vista social, fundiário e econômico. A soma dessas tradições e supressões legais está impondo uma relação predatória e opressiva a milhares de canavieiros(as), catastrófica nos seus impactos sociais, nos direitos e na renda.

Das mais de 45 usinas instaladas há alguns anos, apenas 12 unidades ainda funcionam, dentre elas 04 em regime pré-falimentar de recuperação judicial. Várias dessas empresas incorporaram, como parte de seus negócios e de lucros pessoais, as atividades ilícitas da superexploração do trabalho dos(as) canavieiros(as), combinada com a criminosa simulação de terceirizações e com a negativa até ao contrato de trabalho formal e às contribuições previdenciárias.

Usinas como a Cruangi e a Laranjeiras, na Mata Norte, como a Estreliana e a União Indústria, na Mata Sul, logo seguidas por outras, se posicionaram como focos articuladores e irradiadores dessas práticas ilegais de terceirizações simuladas e ilegais, fazendo da supressão de direitos um lucrativo negócio ilícito. Para isso, mobilizam e articulam uma rede de cúmplices (falsos empreiteiros e gatos) que saem arregimentando mão-de-obra sem celebrar contratos de trabalho, sem respeitar o que restou da CLT e sem respeitar até mesmo a lei que permitiu a terceirização ampla no ano de 2017. Desde então, a cada ano, as entidades sindicais têm denunciado tais fatos criminosos à Superintendência Regional do Trabalho, indicando nomes dos infratores, mas a fiscalização e as autoridades se omitem, nada fazem, e a impunidade estimula o aprofundamento das práticas ilícitas e violadoras.

Mas a precarização não tem sido exclusiva do setor sucroalcooleiro. Na fruticultura do Vale do São Francisco, apesar de economicamente em expansão, os direitos e as rendas dos trabalhadores(as) também sofrem ataques e supressões.

Além dos crescentes impactos na saúde pelo uso intenso de agrotóxicos, as trabalhadoras, que lá são maioria, são contratadas por períodos de 3 a 5 meses por ano, com severas repercussões na renda. Em denso relatório, de 2019, não por acaso intitulado “Frutas Doces, Vidas Amargas”, a Oxfam demonstrou que uma trabalhadora que seja contratada por 3 meses ao ano tem uma renda mensal média equivalente a apenas R$ 343,00, o que é insuficiente para sobreviver e obriga à difícil busca por outras fontes de ocupação e de renda ou por inclusão em programas de transferência de renda de gênero chapéu de palha, o qual alcança um número reduzido de desempregados sazonais.

Em ambas as categorias, os salários são bastante próximos ao salário mínimo e, apesar dos esforços e das exaustivas negociações ano a ano, os(as) trabalhadores(as) não encontram sensibilidade para evoluir no sentido do que é classificado como “salário digno”, para garantir as despesas essenciais para uma vida digna e com cidadania. Em ambas as categorias, nos últimos anos, não se consegue que as convenções coletivas evoluam para aperfeiçoar as condições de trabalho, bem como as proteções de saúde e de segurança para os duros trabalhos que realizam diariamente.

Nos anos recentes, tem se alcançado apenas o reajuste salarial com base na inflação medida pelo INPC. Muito inferior à elevação dos preços dos alimentos e do gás de cozinha! Desse modo, os(as) trabalhadores da cana e da fruticultura sofrem, ano a ano, uma acentuada perda das condições de renda para se alimentar e para cozinhar os alimentos que conseguem comprar.

No mesmo relatório já citado, a Oxfam destacou que esses retrocessos na legislação, nas políticas oficiais e na prática das empresas fizeram o Brasil ser incluído, pela primeira vez, entre os 10 piores países em relação aos direitos dos trabalhadores(as), no ranking da International Trade Union Confederation (ITUC). Países em que os(as) trabalhadores(as) têm acesso limitado aos seus direitos, são expostos(as) a práticas injustas de trabalho, enfrentam leis repressivas, sofrem resposta violenta por greves e protestos e lidam com a intimidação e ameaças às suas lideranças sindicais.

Esse quadro de perda de direitos e de qualidade de vida se agravou bastante na pandemia da Covid19, que revelou as desigualdades históricas e, também, criou novas para os(as) trabalhadores(as) da cana e da fruticultura.

Ambas as categorias não pararam um só dia para cuidar da própria saúde. Foram designados “especiais”, por portaria ministerial, e deram uma contribuição fundamental a toda a sociedade que, em nenhum momento, teve o risco de desabastecimento de alimentos. Seguiram plantando e colhendo cana e frutas, superexplorados(as) e sem o direito de proteger a sua saúde e a sua vida do contágio pelo coronavírus.

Tratados como “especiais” para terem suprimidos os seus direitos ao distanciamento social, não foram considerados “especiais”, pelo governo negacionista e pelas empresas empregadoras, para receberem testes em massa, máscaras, álcool gel, transporte seguro e prioridade na vacinação. Embora se desconheçam estudos e números específicos para o campo, com certeza os(as) trabalhadores(as) da cana e da fruticultura devem ter sido forçados(as) a ampliar as estatísticas das contaminações e mortes. Sobre essa última, conforme denunciam especialistas, estima-se que foram mais de 400 mil mortes desnecessárias no Brasil, se comparado com a média mundial de fatalidades.

A tóxica combinação desses diversos fatores tem ameaçado os(as) trabalhadores(as) rurais a fazer uma volta forçada ao passado, no que se refere aos direitos fundamentais, às condições de trabalho, à renda básica e à cidadania. A CLT, que está sendo demolida, tijolo a tijolo, embora tenha passado a vigorar no ano de 1943, levou mais de vinte anos para ser aplicada no campo e no trabalho rural. No início da década de 1960, os(as) canavieiros(as) em Pernambuco não tinham direito a salário mínimo, a contrato de trabalho, à jornada fixa, à previdência, a equipamentos de proteção, à organização do trabalho através de sindicatos, dentre outros direitos elementares que foram duramente conquistados e que agora estão sendo atacados e/ou suprimidos pelas modificações legais e por outras a elas associadas.

A reação a esse vácuo absoluto de direitos trabalhistas e de direitos humanos e da ampliação de desigualdade extrema na atividade canavieira, no início da década de 60, gerou a fundação da Contag, dos primeiros sindicatos rurais pernambucanos e o primeiro Acordo do Campo, que obrigou os senhores de engenhos e de usinas a aplicarem a CLT nos canaviais, ainda que de forma tardia. Foi a resistência a esse vácuo de cidadania dos(as) canavieiros(as) que motivou lutas históricas importantes e o surgimento de lideranças referenciais como Miguel Arraes, Gregório Bezerra e Francisco Julião. Essas lutas, sindicatos e lideranças, nas décadas seguintes, contribuíram para moldar as lutas por direitos na Zona da Mata pernambucana e também para ampliá-los.

Em Pernambuco, seja na região da cana, seja na fruticultura, a agenda do Estado, por meio do Governo Federal e do Congresso, foi subordinada à agenda do agronegócio. Esse pacto violador pretende impor aos(às) trabalhadores(as) rurais que o futuro de sua vida tenha como horizonte uma longa e dura caminhada em direção ao passado.

Já começaram a forçar essa jornada desumana e anticivilizatória ao passado,  através de terceirizações fraudulentas; do contrato clandestino de trabalho; do recrudescimento da informalidade; da erosão do poder aquisitivo do(a) assalariado(a) por meio do achatamento dos salários; da inviabilização da aposentadoria, sonegando o INSS e o FGTS; da negativa para fornecer equipamentos de proteção; da superexploração do trabalho, impondo jornadas excessivas; do transporte precário, gerador de acidentes e mortes; do trabalho análogo à escravidão; da expulsão dos que estão nas terras há décadas, muitos deles credores das empresas que os expulsam, com o apoio judicial e, portanto, mais uma vez do Estado.

Em anos recentes, o Brasil viveu um ciclo de crescimento sólido e de redução da desigualdade, com efeitos destacados por todo o mundo e internamente no convívio social e na economia. Esse ciclo ocorreu como consequência direta de medidas contínuas para a distribuição de renda, através do progressivo aumento do salário mínimo, de programas de transferência de renda e de outras ações inclusivas.

A volta forçada ao passado, com a supressão desses direitos e avanços acumulados em décadas de lutas, vem sacrificando toda a sociedade e não apenas os(as) trabalhadores(as) assalariados(as), em especial os(as) rurais, que foram as primeiras vítimas desse ciclo sombrio e corrosivo. O desafio civilizatório de estancar e de reverter essas supressões de direitos, portanto, é uma tarefa para todos e todas e não somente para os(as) trabalhadores(as) assalariados(as) do agronegócio, com a sua conhecida voracidade sobre os direitos, a vida e a renda das pessoas, sobre as terras, sobre as florestas e sobre o meio ambiente.


Colaborou com a publicação:
Texto: Bruno Ribeiro de Paiva, advogado da CPT e da Fetape.

 

Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Rua Esperanto, 490, Ilha do Leite, CEP: 50070-390 – RECIFE – PE

Fone: (81) 3231-4445 E-mail: cpt@cptne2.org.br