Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

A Comissão Pastoral da Terra Nordeste 2 divulga balanço do ano de 2021 para os povos da terra, das águas e das florestas em todo o país. Confira a íntegra da análise:

 

Comunidades e povos semeiam e cultivam em meio a violência

 

Fim do ano ... fim do mundo?
... que não é motivo de medo
e sim, de Esperança:

Junto com a o Povo de Deus dos primeiros tempos
pedimos: Maranatá - venha Senhor Jesus
venha Novo Céu, Novo Terra ...

 que não é um Advento Eterno
e sim, a Partilha Permanente 

(Padre Tiago Thorlby)

 

Em 2021, o governo federal seguiu seus planos de conferir à política agrícola e fundiária e à Reforma Agrária finalidades reversas àquela pretendida pela Constituição Federal.

Enquanto o agronegócio bateu recorde de exportação e os bens comuns foram entregues com entusiasmo pelo Estado para o mercado, assistimos ao aumento da fome, da miséria, do desemprego e da violência no campo. O fogo e a destruição tomaram conta da Amazônia, do Cerrado e da Caatinga.  A continuidade da política genocida e neoliberal do governo Bolsonaro agravou a grave crise – sanitária, econômica, social e política – do país no segundo ano de pandemia.

No início de 2021, o Brasil parecia alimentar esperanças com a expectativa da chegada da vacina contra a Covid-19 e com o registro de queda na média móvel das mortes pela doença no fim de 2020. No entanto, ao contrário do que se esperançava, enfrentamos um longo período de falecimentos em decorrência do vírus. Mais de 600 mil vidas foram perdidas.

A continuidade da política genocida do governo Bolsonaro agravou a grave crise – sanitária, econômica, social e política – do país no segundo ano de pandemia. Assistimos ao aumento do contraste entre riqueza e extrema pobreza, da fome, da miséria, do desemprego e da violência no campo; enquanto o agronegócio bateu recorde de exportação e os bens comuns foram entregues com entusiasmo pelo Estado para o mercado.

Apesar das limitações impostas pelo necessário isolamento social, a população, comunidades, organizações e movimentos sociais não se calaram e buscaram alternativas, em especial, através da solidariedade, para se fortalecer, denunciar as injustiças e os retrocessos legislativos.

 

Reforma Agrária no exílio

Em mais um ano do mandato de Jair Bolsonaro, não houve identificação, declaração ou homologação de novos territórios tradicionais indígenas ou quilombolas. Tampouco houve novas desapropriações de terras para a Reforma Agrária, mas apenas a divulgação da relação de algumas famílias selecionadas para assentamentos desapropriados em tempos passados. Onde foi possível, os povos da terra, das águas e das florestas recorreram aos governos estaduais para verem seus direitos efetivados.

O orçamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para o ano que se encerrou foi de 3,4 bilhões. O governo rebaixou a quase zero as despesas destinadas para a aquisição de terras, para a assistência técnica, para o crédito para agricultores e agricultoras assentadas e para a educação no campo. A maior parte do orçamento da autarquia, cerca de 2,1 bilhões, foi destinada para o pagamento de indenizações a grandes fazendeiros em razão das desapropriações de imóveis realizadas em anos anteriores. Em âmbito federal, a Reforma Agrária e a demarcação de territórios tradicionais, previstas na Carta Magna brasileira, foram relegadas ao exílio, e novas estratégias entraram em cena para legalizar o esbulho contra os povos do campo.

Vitrine de terras públicas para o mercado – A marca da política agrícola e fundiária do governo Bolsonaro, apoiado pela bancada ruralista do Congresso Nacional, é a oferta de terras, inclusive as públicas e as sob proteção, para o agronegócio. Em meio a diversas ações nefastas aos povos do campo, algumas ganharam destaque em 2021 e traduzem a política antirreforma agrária e anticonstitucional do governo.

Uma delas é a associação maligna da política de precarização social dos assentamentos com a liberação da venda de títulos dessas famílias sem expectativa positiva para o futuro. Essa política vem sendo uma prioridade do governo Bolsonaro desde o início do seu mandato. A medida reduz a responsabilidade do Estado com a política de Reforma Agrária ao transferir o imóvel rural aos/às assentados/as em caráter definitivo sem oferecer as condições mínimas para o seu desenvolvimento socioeconômico. Sem estruturas adequadas para viver no campo e sem apoio técnico ou investimento para a produção camponesa, as famílias cujas áreas foram tituladas tornam-se mais vulneráveis às pressões de grandes empresas e de latifundiários. Ou seja, a terra, antes destinada à Reforma Agrária, voltará a ser concentrada.

A política de titulação ganhou mais um novo amparo com o programa Titula Brasil, criado pela Portaria Conjunta nº 1, de dezembro de 2020, e que objetiva ampliar a regularização e a titulação de áreas de assentamento ou de terras públicas federais sob domínio da União ou do Incra passíveis de titulação por meio de parceria com prefeituras municipais.  Organizações sociais do campo vêm, desde então, denunciando de forma enfática os riscos do programa, apontado em âmbito nacional e internacional por favorecer a grilagem de terras no Brasil. 

Outra medida que expressa o intuito do Governo de inverter a finalidade da Reforma Agrária é a Instrução Normativa (IN) nº 112, publicada em 22 de dezembro de 2021. Ela permite a exploração e apropriação privada de terras destinadas à Reforma Agrária em troca de indenização por parte de empreendimentos minerários, de energia ou de infraestrutura. A normativa não prevê poder de veto das famílias assentadas e poderá afetar áreas de Reforma Agrária em todo o país.

 

Violência no campo dispara

O poder privado, beneficiado pelas medidas do governo Bolsonaro, foi o principal responsável pela violência contra comunidades camponesas que se encontram em luta por direitos e pela permanência em suas terras e territórios.

De acordo com dados parciais da CPT sobre conflitos agrários no país, de janeiro a agosto de 2021, a violência contra ocupação e a posse foi uma das que disparou, atingindo 418 territórios. Desses, 28% são territórios indígenas; 23% quilombolas; 14% são territórios de posseiros; 13% são territórios de sem-terra, entre outros. A “destruição de casa” aumentou 94%, “destruição de pertences” 104%, “expulsão” 153%, “grilagem” 113%, “pistolagem” 118% e “impedimento de acesso às áreas de uso coletivo” aumentou 1.057%.

Conforme levantamento da CPT, os setores que mais provocaram esse tipo de violência foram fazendeiro (23%), empresário (18%), governo federal (14%), grileiro (13%). Os assassinatos de camponeses e camponesas também aumentaram em 2021. Foram registrados, de janeiro a agosto, 26 mortes ocorridas em conflitos no campo. Comparado com todo ano de 2020, já representa um aumento de 30% de assassinatos no campo.

Em alguns casos, a violência passou a ser parte integrante do cotidiano de comunidades, a exemplo das comunidades que abrigam mais de 1.200 agricultoras e agricultores posseiras na Zona da Mata Sul pernambucana. A área em questão possui uma história de resistência ao avanço secular do monocultivo sucroalcooleiro.

Mas hoje, com dívidas milionárias e em crise, muitas usinas produtoras de açúcar e álcool fecham as portas, e o monocultivo vem abrindo espaço para empresas do ramo imobiliário e da pecuária. Esses empreendimentos estão sendo denunciados sob a acusação de invasão de terras e de promoverem práticas violentas contra centenas de famílias agricultoras que moram na região há décadas, sendo muitas, inclusive, credoras das antigas usinas falidas.

 

Povos indígenas estão entre as principais vítimas e reagem

Os povos originários foram protagonistas das grandes manifestações públicas em defesa da terra e do território. Das 1.278 “Manifestações de Luta”, entre janeiro e agosto de 2021, 113 trataram das pautas dos povos originários, segundo os dados parciais divulgados pela CPT.

A primeira batalha foi garantir a prioridade no Programa Nacional de Vacinação. Paralelamente, foi construída uma agenda nacional e internacional em defesa da garantia dos direitos originários, contra o marco temporal e o Projeto de Lei nº490/2007. O primeiro visa restringir os direitos dos povos às suas terras somente àqueles que estavam em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição; já o segundo, pretende liberar territórios indígenas para os grandes projetos do capital, entre eles, o da mineração, do agronegócio e do garimpo.

Entre 22 e 28 de agosto, 176 povos de todas as partes do país ‒ aproximadamente 6 mil indígenas (mulheres, crianças, jovens e anciões) ‒ reuniram-se no acampamento Luta pela Vida, em Brasília. A segunda grande mobilização ocorreu durante a II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, que reuniu cerca de 4 mil guerreiras vindas de todas as regiões.

Com esses movimentos articulados, a causa indígena conquistou apoio e solidariedade em diversas partes do mundo. O processo do marco temporal entrou em pauta no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e, com o placar de um a um entre os ministros Edson Fachin e Nunes Marques, o julgamento foi suspenso pelo pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.

O levante indígena trouxe esperança e aponta, como uma flecha, para mais manifestações em 2022: o retorno do julgamento do marco temporal, a defesa dos territórios contra invasores e a luta por novas demarcações.

 

Enquanto o governo enfraquece a gestão ambiental, o desmatamento e as queimadas destroem a Amazônia, o Cerrado e a Caatinga

Enquanto os povos originários seguem firmes na proteção da natureza, os governos e o mercado vêm adiando as mudanças necessárias à sobrevivência humana, de Estocolmo (1972) a Glasgow (2021). Eles aportam anualmente mais de US $ 5 trilhões em subsídios para combustíveis fósseis, agropecuária, pesca e mineração. O atual modo de vida autodestrutivo baseado no consumismo concentra riqueza e produz desigualdades já que as crises são injustamente distribuídas.

Antes da pandemia da Covid-19 começar, em 2020, o mundo discutia compromissos no rumo a sustentabilidade, menos no Brasil, que vem sofrendo com as mais violentas agressões sobre a natureza e sobre os povos do campo, das águas e das florestas, e nesta busca incontrolável de acúmulo de terra e riquezas, o Estado brasileiro não só deixou de demarcar territórios dos povos e comunidades tradicionais como também segue estimulando um ataque maciço aos seus territórios, com o objetivo de disponibilizá-los para os grandes empreendimentos privados, além de inúmeras tentativas, algumas com sucesso, de reduzir a proteção de territórios tradicionais ou dos perímetros das Unidades de Conservação.

O ano de 2021 poderia ser considerado o ano do genocídio ambiental no Brasil, sob a tutela do governo Bolsonaro. O desmatamento da Amazônia chegou a 13.235 km² quadrados, entre 1° de agosto de 2020 a 31 julho de 2021. Na Caatinga não foi diferente, os focos de queimadas cresceram 164% em 2021, comparados com o mesmo período do ano anterior, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)[1]. O número já é o maior dos últimos nove anos, fazendo deste o bioma brasileiro que teve mais queimadas em 2021.

Todas essas iniciativas são acompanhadas do enfraquecimento programado da gestão ambiental em todo o país, com a redução de recursos para a agenda de controle e qualidade ambiental e para a conservação da biodiversidade, além dos esforços contínuos para o enfraquecimento e desregulamentação do licenciamento ambiental.

As ações do governo brasileiro em relação ao meio ambiente se configuram como crime ambiental e se pautam pela reconcentração de terra.

 

Estiagem prolongada, fogo e mais veneno                                                                                                                

A mesma ganância que promove a violência no campo e a destruição do meio ambiente, também, envenena e mata. Seguimos “engolindo” substâncias nocivas à saúde humana e planetária.

De janeiro a dezembro de 2021 foram liberados 534 agrotóxicos[2] (publicados no Diário Oficial da União – DOU) contra 493, em 2020. O número se configura como um novo recorde com volume de aprovação 14% superior no intervalo de um ano. Assim, nos três anos do governo Bolsonaro foram liberados 1.445 novos registros. Seja através dos alimentos ou das águas o capital segue provocando um genocídio coletivo.

A caminho de um aumento de temperatura se prevê o aumento de mortes e extinção de espécies, o capital fez sua escolha, sendo o PIB mais importante que as vidas; em nome dele se cortam florestas, poluem-se as águas e pescam de maneira predatória, a isso chamam de “crescimento global”, sem enxergar que o único crescimento atual tem sido o rastro de destruição, injustiças e mortes.

Ousamos sonhar que 2021 fosse lembrado como o ano em que a humanidade aprendeu a reconsiderar suas prioridades como indivíduos e sociedades; aprendeu que salvaguardar a saúde e o bem-estar das gerações atuais e futuras significa salvaguardar a saúde do planeta, reduzindo a pressão sobre os bens naturais, mas foi apenas um sonho que segue.

E sonhos sonhados juntos podem virar realidade. Na busca de saída desta intoxicação coletiva, já são 8 cidades, 3 municípios e dois estados no Brasil com leis contra pulverização aérea. Apesar de todo esforço parlamentar pela destruição, águas subterrâneas se movem ampliando as legislações protetivas locais, os planos municipais para “agroecologia nos municípios” já são uma realidade e a cada dia mais grupos se mobilizam para reflorestar nascentes, áreas degradadas, margens de rios e riachos, cuidando de onde nascem e onde correm as águas da fertilidade.

Seguimos com esperança dos pequenos nesta grande Romaria!

 

Dos povos da terra, das águas e das florestas brota a solidariedade 

Comer é um direito garantido pela Constituição Brasileira. Comidas saudáveis sem uso de agrotóxicos deveriam chegar na mesa de todas as famílias. No momento em que o Brasil volta para o Mapa da Fome, muitas famílias das periferias não conseguem trazer para a mesa a alimentação básica.

Em 2021, ações de solidariedade promovidas por organizações, comunidades beneficiárias da Reforma Agrária e movimentos do campo, estiveram presentes como forma de oferecer comida livre de agrotóxicos para várias comunidades das periferias. Essas ações, que tiveram início em 2020 em razão da pandemia da Covid-19 e que se expandiram para todo o país, ajudaram a levar comida para a mesa de muitas famílias.  Essas ações são sinais de esperança em um ano marcado por mortes, perseguições, violências aos povos do campo.

Os dados parciais do Caderno de Conflitos (2021) mostram uma tendência de alta nos últimos dois anos em relação às manifestações de luta, ocorrendo um aumento de 66,40%. Esse aumento deu-se graças, também, ao envolvimento dos povos do campo nas ações de solidariedade com doação de alimentos que representou 29,89% do total de manifestações de luta realizadas em 2021 em todo o país, com destaque para Paraná, Pernambuco, Alagoas e São Paulo.

Portanto, os desafios apresentados em 2021 foram enfrentados com a força e a solidariedade do povo que cuidou do povo, com a partilha do pão, do alimento produzido pelas mãos calejadas de camponeses e camponesas que teimam em sonhar e construir com um país de fartura e de justiça em que todos os povos tenham vida, e "vida em abundância” (João 10:10).

 

[1] Disponível em http://www.inpe.br/noticias/noticia.php?Cod_Noticia=5876

[2] Fontes: https://www.douradosnews.com.br/noticias/brasil/governo-libera-500-agrotoxicos-em-2021-e-bate-recorde-na-serie/1171763/ e https://reporterbrasil.org.br/2017/11/agrotoxicos-alimentos-brasil-estudo/

 

 

Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

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