Paralelamente ao contexto de veto parcial à proposta que socorre agricultores familiares durante a pandemia, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) concedeu recentemente ao agronegócio o usufruto de diferentes benefícios. Entre estes, promulgou, no ultimo dia 19, três pontos da chamada “Lei do Agro” que haviam sido vetados pelo Congresso Nacional.
Resultante da Medida Provisória (MP) 897, a nova legislação criou facilidades para o acesso a crédito e financiamento de dívidas de grandes produtores rurais, desonerou o segmento nas contribuições relativas à Seguridade Social e em taxas de cartório, entre outros aspectos. Pouco debatida publicamente, a MP passou ao largo das propostas mais midiáticas do Congresso e também trouxe a possibilidade de abertura do financiamento do agronegócio para inserção do capital estrangeiro.
O texto foi demandado pelos ruralistas e contou com forte articulação da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, nome de força na Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), que reúne os representantes do grupo no Congresso.
Já no Projeto de Lei (PL) 735/2020, que prevê medidas emergenciais para agricultores familiares, Bolsonaro retirou, na última terça (25), diferentes pontos, como o fomento de R$ 2.500, em parcela única, para cada unidade familiar. O benefício poderia chegar a R$ 6 mil, no caso de mulheres agricultoras, mas agora só passará a valer se o Legislativo derrubar o veto do presidente.
Também foram excluídos do texto do PL 735 a previsão de um aporte de recursos para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), a renegociação de dívidas de pequenos agricultores e a concessão de um auxílio emergencial de cinco parcelas no valor de R$ 600 para o segmento.
Na justificativa, o chefe do Executivo alegou que não havia previsão orçamentária e financeira para as medidas e disse que os agricultores familiares poderiam receber o auxílio emergencial em vigor na condição de trabalhadores informais. A categoria tem afirmado, no entanto, que a eventual inscrição no benefício atual traria consigo o risco de exclusão do acesso a programas e políticas destinados ao campo, pois faria com que o segmento ficasse descaracterizado aos olhos do Estado.
“Os vetos são, na verdade, uma demonstração clara de que a agricultura familiar não tem prioridade nem lugar na política do governo (1:26)”, critica Alexandre Pires, da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA).
Outras medidas compõem a lista de afagos de Bolsonaro ao agronegócio durante a crise do coronavírus. O Plano Safra 2020/2021, por exemplo, lançado em junho, no auge da pandemia, foi tachado por movimentos populares de “Plano da fome” porque excluiu do seu escopo de atuação a produção de alimentos da agricultura familiar.
Criado no país em 2003, o programa trata de crédito para investimentos e custeio da produção rural. Para o novo biênio, estão previstos mais de R$ 236 bilhões em recursos, que deverão se concentrar no agronegócio. O setor é ligado à monocultura de exportação, especialmente na produção de grãos, enquanto a agricultura familiar é mais voltada para a produção de alimentos.
Para o Nicolau Bussons, da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), no Ceará, esse tipo de medida demonstraria uma tentativa de ofuscar a pequena agricultura do cenário nacional.
“Parece que está ficando cada vez mais clara a intenção não só de eliminar as políticas públicas voltadas pra agricultura familiar, mas acho que a ideia do governo é eliminar do cenário nacional a terminologia ‘agricultura familiar’. O governo tem insistido, nos seus documentos oficiais, que daqui pra frente não existe mais essa diferenciação entre agronegócio e agricultura familiar”, aponta Bussons, afirmando que a iniciativa se insere também na disputa de narrativa entre os dois campos, tradicionais adversários ideológicos.
Superestima
O conflito entre os dois segmentos está também diretamente ligado à desigualdade de acesso à terra no país. Vinculado a grandes extensões rurais, o agronegócio está, muitas vezes, associado à concentração e à especulação imobiliária. Dados oficiais mostram que menos de 1% das propriedades rurais respondem por quase metade de toda a extensão rural do país, ao mesmo tempo em que quase 50% das propriedades têm menos de 10 hectares, ocupando somente 2,3% da área rural total do Brasil.
Por esse motivo e também pelo fato de o ruralismo não ser diretamente voltado à produção de alimentos, o presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), Acácio Zuniga Leite, sublinha que o setor do agronegócio seria superestimado no país.
“Apesar de todos esses benefícios que eles recebem, a agropecuária, por exemplo, só representa 5% do PIB brasileiro. Não tem essa importância econômica toda, não. Eles insistem que são 30% do PIB, mas isso porque eles juntam tudo o que vem antes e depois da porteira. Se você comprou qualquer coisa no Carrefour, por exemplo, isso entra na conta do agronegócio, então, tem essa superestimação. É como se eles ‘roubassem’ um pouco do setor industrial e um pouco do setor de serviços pra criar esse guarda-chuva, que é muito maior do que eles mesmos”, destrincha o dirigente.
Deterioração
Coordenador do Grupo de Estudo das Políticas Públicas do Mundo Rural da UVA, o professor destaca a deterioração das políticas de Estado voltadas à agricultura familiar. O problema se agravou especialmente nos últimos quatro anos, com a deposição da presidenta Dilma Rousseff (PT) e um maior fortalecimento do agronegócio no cenário político do país.
Em um resgate histórico, Bussons lembra que o setor sempre teve primazia no país, com influência nos diferentes governos.
“Mas o que há de novo é esse agravamento do problema, que traz uma certa angústia, uma ansiedade em saber como a agricultura familiar vai ser viabilizada daqui pra gente. O que já era pouco está sendo praticamente dizimado, seja no que se refere à disponibilidade de recursos para políticas que já existiam, seja porque as que ainda existem estão sendo asfixiadas pouco a pouco, e ainda com essa questão tão grave que é o esquecimento da terminologia ‘agricultura familiar’”, analisa.
Fonte: Brasil de Fato