Os governos estrangeiros querem se apropriar dos nossos bens naturais, assim como o governo de Maduro também se apropriou, deixando para o povo somente miséria e fome, apesar de sermos uma das nações mais ricas do mundo, relata Anibal Perez Cardona, indígena Warao, refugiado no Brasil e atualmente residente no município de Natal (RN). O relato nos foi enviado por João Paulo do Vale de Medeiros, doutorando no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense - PPGSD/UFF, agente da Comissão Pastoral da Terra e membro do Mire - Mística e Revolução.
Eis o relato.
1. O que é ser Warao?
Ser Warao significa ser gente, pessoa, humano/a. Por utilizarmos muito a wajibaka (canoa) para o trabalho, também somos conhecidos/as como povo navegante, como gente de água e canoa. Ela se constitui como um meio de comunicação através do qual podemos viajar pelos rios e nos comunicarmos entre comunidades e famílias.
A maioria de nossas casas são de madeira (com a base construída sobre estacas) e estão localizadas na costa dos igarapés (caños), nas ilhas ou na foz dos rios. Nossos costumes são comunitários. Dentro da cultura Warao, compartilhamos e intercambiamos alimentos e artesanatos produzidos por nós mesmos/as - sem valorarmos o preço.
Não existe exploração, nem abuso da natureza e do ser humano. Sabemos que a natureza não é um negócio particular e não está feita para a venda, nem para a ofensa. Conhecemos e sabemos conviver com ela com tranquilidade, tratando-a com muito respeito. Tampouco humilhamos ou oprimimos nossos/as irmãos/ãs. Além disso, temos um idioma próprio. Com ele, nos comunicamos e nos identificamos.
Casas Warao no delta do Rio Orinoco. Fonte: https://it.ejatlas.org/print/indigenas-warao-en-el-bajo-delta-del-orinoco-contaminados-por-desechos-de-la-corporacion-venezolana-de-guayana-y-de-la-mineria-ilegal Acesso em 1º de maio de 2020
2. Onde vivem os/as Warao na Venezuela?
O Povo Warao está no nordeste da Venezuela e encontra-se, principalmente, em três estados: Delta Amacuro, Monagas e Sucre. A maioria está em Delta Amacuro, nos municípios de Tucupita, Pedernales, Casacoima e Antonio Díaz. O nordeste faz fronteira com dois países: Trinidad e Tobago e Guiana. Também está relativamente próximo ao Suriname e à Guiana Francesa, abrindo-se ao mundo através do Mar do Caribe.
Na Venezuela, o Povo Warao é o segundo maior grupo étnico depois da etnia Wayuu e conta com cerca de 48.771 habitantes, conforme evidenciam os dados publicados pelo Instituto Nacional de Estatística em 2011 (INE, 2011).
3. Como vive o Povo Warao na Venezuela?
Somos pescadores/as, caçadores/as, agricultores/as, coletores/as, artesãos/ãs e carpinteiros/as. Tradicionalmente, nosso principal alimento é o aru, que, no espanhol do delta do Rio Orinoco, na Venezuela, chama-se yuruma (farinha/sagu). É extraído da palma do buriti.
Por conhecermos a natureza, saímos pela selva a fim de caçarmos diferentes tipos de animais, como veados, caititus, antas e muitos outros. Também pescamos em nossas curiaras (canoas) pelos rios e pela costa do mar, utilizando redes e anzóis. Nossos peixes de água doce são bagre, corvina branca, tambaqui, peixe-gato e peixe-vampiro. Já nossos peixes de água salgada são corvina amarela, tainha, robalo e bagre-amarelo (apenas para citar alguns exemplos).
Na época da coleta de frutos, também recolhemos buriti, patauá e coentro-bravo. Na parte baixa do delta, não há terrenos suficientes para semear, porque eles são enlameados. Por isso, nos lugares onde existem terras mais altas, aproveitamos para plantar cará (ocumo chino). Na parte média do delta (onde conseguimos esses terrenos mais elevados), também cultivamos mandioca (yuca), banana, milho e diversos outros produtos agrícolas.
Além de caçarmos, pescarmos e coletarmos, confeccionamos artesanatos a partir da extração da fibra do buriti, que, em Warao, é chamada de jau. Com essas fibras, fabricamos cestas, carteiras, chapéus e redes. Já com a fibra de arumã (tirite), que em Warao é sejoro, fabricamos peneiras (para espremer a mandioca) e diversos tipos de cestas, como o mapire (que se carrega nas costas). Elaboramos, ainda, colares e pulseiras e fabricamos cadeiras, mesas, armários e muitos outros produtos.
Mulher Warao fabricando cesta com a fibra de buriti. Foto: Andrés Meyer. Fonte: Wilbert e Lafée-Wilbert
4. Por que famílias Warao se refugiaram no Brasil?
Os/as antepassados/as Warao viveram felizes e livremente por milhares de anos em seu território. Todo o tempo trabalhavam e levavam alimentos para suas casas, onde estavam suas famílias. O trabalho os/as fazia livres e felizes, porque não tinham um horário fixo. Assim, regressavam para casa quando se sentiam cansados/as, quando o corpo já não podia seguir laborando.
As famílias sempre se mantinham unidas. Quando sentiam que necessitavam de apoio, pediam-no e os outros núcleos ajudavam sem solicitar nada em troca. Havia unidade. Por isso, na vida Warao, nunca faltou um intercâmbio de alimentos - peixes, aru (farinha/sagu de palma de buriti) ou cará (ocumo chino). Assim os/as antepassados/as viveram alegres diariamente.
Porém, no ano de 1965, o Governo da Venezuela construiu um dique que obstruiu o Rio Manamo. Esse projeto afetou diretamente a vida dos/as Warao, causando a súbita salinização da parte baixa do delta. As águas do mar também começaram a entrar de forma muito forte pelos igarapés (caños), impactando os ecossistemas animais e vegetais.
Como a água do mar ficou ácida, foi um desastre total para qualquer espécie de água doce e para a população indígena. Logo, a maioria dos/as que viviam no delta perderam a principal fonte de sua subsistência: os produtos vegetais habituais para o consumo, como o cará (ocumo chino), e os peixes dos igarapés e das ilhas (que migraram ou morreram).
O impacto foi tão incisivo que os/as Warao já não tinham água nem para o consumo, pois ela estava contaminada. Por isso, as populações que habitavam diversos setores das partes baixa e média do delta - tanto indígenas quanto não indígenas (criollos/as) - tiveram suas condições de vida profundamente afetadas em virtude da obstrução do Rio Manamo.
É importante destacar que o Governo fez essa obstrução para que o nível da água aumentasse para o Rio Orinoco. Dessa maneira, os grandes barcos - de carga pesada - podiam navegar com facilidade. Os responsáveis pela obra, todavia, ignoraram a existência dos povos indígenas e camponeses e não reconheceram que o projeto trazia consequências negativas e graves.
Por isso, podemos afirmar que o represamento do Rio Manamo foi um genocídio, um etnocídio e um ecocídio, visto que seu resultado foram mortes (de seres humanos, culturas, costumes, animais, vegetais e muitos outros elementos) e o quase extermínio do povo indígena Warao.
Como consequência dessa intervenção, muitas famílias se deslocaram para os centros urbanos. Outras foram para dentro da selva. As que foram para as cidades não voltaram mais.
No ano de 1992, houve outro processo de mobilidade em virtude do surto de cólera no estado de Delta Amacuro. Nesse período, muitos/as Warao também morreram nos municípios de Tucupita e Antonio Díaz. A partir daí, alguns/mas se deslocaram para cidades mais próximas, como Tucupita (capital do estado de Delta Amacuro) e Barrancas do Orinoco (estado de Monagas).
Já entre os anos de 2014 e 2016, especialmente, os/as Warao passaram a se deslocar para outros países, como o Brasil, porque a Venezuela vive uma crise econômica profunda, com escassez de alimentos, remédios, peças para a reposição de motores de popa e gasolina.
Com a crise, já não encontrávamos dinheiro em espécie nas agências bancárias. Quando conseguíamos, ele não tinha valor. O salário mínimo não era suficiente para comprar um par de sapatos. Havia alguns produtos básicos, mas com preços altíssimo, que não podíamos pagar. Assim, muitas famílias Warao foram obrigadas a sair do país porque a situação da Venezuela é insuportável. Saímos em busca de um contexto melhor - uma vida digna.
5. Por que isso está ocorrendo na Venezuela?
Os governos estrangeiros bloquearam a entrada de produtos básicos. A luta é pelo sistema político: socialismo versus capitalismo. O maior pecado da Venezuela é contar com muitas riquezas naturais, como petróleo, gás, carvão, ferro, ouro, prata, cobre e chumbo. Os governos estrangeiros necessitam e querem se apropriar desses bens naturais, assim como o governo de Maduro também se apropriou - com seus ministros e seus governadores -, deixando para o povo somente miséria e fome, apesar de sermos uma das nações mais ricas do mundo.
6. Como os/as Warao vieram para o Brasil?
Os/as brasileiros/as sempre nos perguntam se chegamos ao Brasil andando a pé. Eu explico que é impossível chegar a pé até aqui. Só se pode chegar a pé até Boa Vista (Roraima). Entre a Venezuela e o Brasil, há uma conexão terrestre que permite atravessar a fronteira por estrada. A rota que fizemos desde a Venezuela é por Santa Elena de Uairén até a fronteira, em Paracaraima (Roraima).
Nem todas as famílias Warao tiveram a mesma oportunidade de chegar direto até a fronteira porque algumas precisaram fazer viagens em escalas, de povoado em povoado. Logo, parte delas pôde trazer artesanatos e outra parte não.
Quando chegamos a Pacaraima, como já não era mais Venezuela, tudo se tornou diferente, começando pela moeda e pelo idioma. Esse foi o primeiro obstáculo. O outro era que tínhamos que solicitar uma permissão formal (um protocolo de refúgio) para entrarmos no país.
Houve famílias que conseguiram obter esses protocolos, mas outras não. Algumas - que não tiveram acesso ao documento - precisaram optar por outros caminhos. Para muitos núcleos Warao, não foi fácil chegar até o Brasil porque a maioria não têm recursos econômicos suficientes.
Os primeiros grupos que chegaram a Boa Vista buscaram ajuda para poder pagar as passagens a fim de que outras famílias pudessem vir. Também buscaram apoio para viajar até Manaus; de Manaus, até Belém e assim sucessivamente.
Hoje, há núcleos Warao em Pacaraima, Boa Vista, Manaus, Rio Branco, Santarém, Belém e em outras 18 cidades do Pará. Também há famílias em quase toda a região Nordeste (Imperatriz, São Luís, Teresina, Mossoró, Natal, Campina Grande, João Pessoa, Recife) e em diversas outras cidades do país, como Rio de Janeiro, Campinas, Ribeirão Preto, Belo Horizonte, Brasília, Anápolis, Goiânia e Florianópolis.
7. Como os/as Warao sobrevivem no Brasil?
Atualmente, os/as Warao sobrevivem de doações e apoios provenientes, em especial, da sociedade civil, não do Governo. Ainda que em alguns estados já existam abrigos e as famílias recebam algum tipo de assistência, por ora, os/as Warao fazem o possível para sobreviver com a venda de artesanatos (Figura 3). Os/as que não contam com assistência suficiente pedem ajuda nas ruas para conseguir pagar os aluguéis e ter acesso a alimentos.
É importante que o Governo também abrace a pauta dos direitos dos/as indígenas refugiados/as e nos forneça o suporte necessário para que possamos trabalhar. A atividade da pesca, por exemplo, exige uma série de licenças que nós não temos. Assim, destacamos que necessitamos de documentos específicos e de outras condições materiais para podermos viver dignamente no Brasil.
8. Como os/as Warao querem sobreviver no Brasil?
Junto com minha família, nós viemos de uma comunidade. Quando falamos de comunidade é porque há uma organização em que as pessoas se dispõem e se interligam por áreas - de trabalho, produção, cultura, esporte, saúde etc.
Sabemos que a situação da Venezuela está cada vez pior e não vai melhorar rapidamente. O Governo de lá não sairá de um dia para o outro porque tem aliados. Assim, é difícil que surja uma mudança em pouco tempo.
Diante disso, nós, que estamos no Brasil, gostaríamos de ser acolhidos/as como cidadãos/ãs e como humanos/as para formarmos uma comunidade Warao no país. Por sermos um outro povo indígena dentro do Brasil, queremos ter contato e comunicação com os povos e as organizações indígenas que existem aqui.
Também queremos, no futuro, que possamos continuar com a nossa vida tradicional, as nossas práticas, os nossos usos e os nossos costumes - queremos seguir sendo Warao.
Queremos sobreviver organizados/as. Para isso, necessitamos de apoio de diferentes atores sociais que entendam os direitos específicos dos/as indígenas e que conheçam as leis, os tratados e os acordos internacionais que defendem tais direitos no mundo.
Queremos, do mesmo modo, o apoio das organizações não governamentais, na perspectiva de que contribuam com orientação e assessoria, porque, como todos os seres humanos, não nascemos sabendo. Queremos continuar aprendendo e ter acesso a formações para o trabalho - junto com os/as aliados/as não-indígenas, como as universidades públicas, as universidades privadas e outras organizações. Queremos que nos acompanhem e que caminhemos juntos/as para a construção de uma vida digna e melhor no Brasil. Queremos crescer, avançar.
Queremos contar, ainda, com nossa própria escola intercultural bilíngue, na qual nossos/as filhos/as possam seguir aprendendo dos conhecimentos ancestrais de nosso povo, continuem estudando com a nossa língua materna e incorporem o sistema formal de educação para que, no futuro, sejam grandes profissionais e permaneçam com a nossa luta, porque a luta dos povos indígenas nunca termina. Se necessário, no futuro, queremos criar uma associação civil para termos um diálogo em igualdade de condições com as organizações nacionais e internacionais com a finalidade de seguirmos sendo o Povo Warao.
Aníbal Perez Cardona e parte de sua família. Fonte: acervo pessoal.
Fonte: UHI Unissinos