Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

 

Artigo

Muito se tem discutido, recentemente, acerca da quarentena. Algumas pessoas duvidam da necessidade de ficar em casa e distantes do convívio social. A realidade é que, de alguma forma, os planejamentos foram atingidos, impactando o cotidiano das famílias, das pessoas, dos bairros, das cidades. A agenda pessoal, social, familiar e de trabalho foi colocada, em parte, em stand-by. É como se tivéssemos coletivamente apertado a tecla pause.

 

José Carlos da Silva Lima[1]

 

O principal motivo dessa mudança radical é um “bichinho invisível e devastador”, que por onde passa deixa o registro da morte e um rastro de dor e sofrimento. As estatísticas, muitas vezes frias como a morte, ilustram esse triste quadro, como se pode observar nas informações disponíveis na página do Ministério da Saúde. Aqui, tomamos como referencial o dia 19 de abril, quando havia, no mundo, 2.331.099 pessoas contaminadas e 160.952 mortos; em solo brasileiro, 38.654 pessoas contaminadas e 2.462 óbitos, com uma taxa de letalidade de 6,4%. No universo alagoano, 159 pessoas estão oficialmente infectadas e 15 morreram.

 Apesar do altíssimo número de infectados e de mortos, da inexistência de um medicamento eficaz na contenção do vírus e da distância para se chegar a uma vacina, persiste na sociedade brasileira o dilema da quarentena. Temos, de um lado, o presidente da República, que nega a ciência e desmerece a força devastadora da Covid-19; do outro, um bloco de cientistas e países que orientam o uso da quarentena como um mecanismo capaz de desacelerar a contaminação, evitando o colapso nos hospitais públicos e privados. Ainda que o presidente tenha externando a sua posição do retorno à “vida normal”, 80% da população brasileira, conforme pesquisa do Datafolha, é favorável a punição para quem descumprir as regras da quarentena.

É evidente que essa maioria entende a quarentena como necessária e temporária. A quarentena não pode ser vista como uma muralha intransponível ou uma punição; pelo contrário, deve ser compreendida como uma ponte em construção. Essa travessia poderá ser demorada, cansativa, dolorida. Mas, sem dúvida, ao seu término, seremos seres melhores. Essa melhora já é perceptível, já estamos experimentando. É notório o aumento da prática da solidariedade, da partilha, do cuidado. A VIDA tem ganho outros contornos, outras cores, outros horizontes.    

A minha experiência de distanciamento social teve início logo após uma bela vivência com representações das comunidades camponesas da região da Mata e Litoral Norte de Alagoas, acompanhadas pela Pastoral da Terra. Essa atividade comunitária ocorreu nos dias 16 e 17 de março, no assentamento Flor do Bosque, em Messias. É importante informar que esta comunidade é resultado da insistência das famílias sem-terra que ocuparam aquele imóvel em novembro de 1998 e conquistaram 360 hectares após uma década de luta.

Naqueles dias falávamos de sementes. Sementes da paixão, da resistência, crioulas. Sementes camponesas, com memória e ancestralidade. Quando a imagem de uma semente chega à nossa mente, logo a relacionamos com terra, com água, com trabalho, germinação, cultivo, cuidado, colheita, com comida na mesa.

Havia entre os agricultores e agricultoras um clima de esperança em uma boa produção. Falavam, com a alegria, das sementes que tinham e das chuvas que caíam. O contentamento se explicava pelas chuvas e pela proximidade do dia de São José, dia 19 de março, dia de plantar, como reza a tradição camponesa. Nesse período o milho é o alimento que melhor caracteriza o plantio nas terras de Alagoas. Milho para comer assado, cozido, na forma de pamonha, de canjica, em tempos juninos. É assim que o saber popular camponês compreende esse tempo: planta em São José e come em São João.

Nesses dias, tenho conversado com camponeses e camponesas, recebido fotos e vídeos do campo. O entusiasmo continua. O roçado verde é sinônimo de esperança. Do litoral ao sertão, tudo leva a crer numa boa colheita. Na tentativa de estabelecer uma relação pessoal com esse universo camponês, tenho me perguntado: Como preparei a minha terra? Quais sementes selecionei? Como reservei a minha água? O que estou plantando? Qual e como será a minha colheita? São questionamentos e inquietações da minha quarentena.

 

 

[1] Mestre em história pela Universidade Federal de Alagoas, coordenador da Comissão Pastoral da Terra de Alagoas e membro do Grupo Terra

 

*Publicado originalmente em O Dia Alagoas.

 

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