Confira artigo de Beth Siqueira sobre o conceito de gênero e sua aplicação no dia a dia das comunidades camponesas. A autora destaca que "temos observado, nos espaços trabalhados nos projetos de desenvolvimento rural, que as relações de poder estão diretamente ligadas às relações de gênero e que a diferença de inserção das mulheres nos espaços produtivos e organizativos, espaços de poder, tem uma forte implicação de gênero. Requer-se uma transformação no acesso pela mulher tanto aos bens econômicos quanto ao poder, transformação essa que depende de um processo de empoderamento da mulher".
(Beth Siqueira*)
É uma categoria de análise importante para entender as relações sociais, de modo geral e, em especial, as relações de poder entre os homens e mulheres, entre homens e homens e entre mulheres e mulheres. Assim como gênero, reconheço “classe social”, “raça/etnia” e “idade/geração” como categorias relacionais de análises que contribuem para a compreensão das questões atinentes a esta temática e a sua interseccionalidade[1] com gênero e outras categorias. Geração e idade são dimensões fundantes da vida social, além de gênero, classe, e raça/etnia, o que implica em reconhecer a necessidade de pensar estas dimensões de forma articulada e relacional nas trajetórias e experiências dos sujeitos, individual e coletivamente.
Esse conceito é importante como uma ferramenta analítica para nos ajudar a compreender as formas de interação dessas múltiplas discriminações que marcaram as trajetórias e as experiências de vida das mulheres agricultoras. A noção de interseccionalidade possibilita entender como estas opressões operam e se estruturam dentro de uma “matriz de dominação”, na medida em que esclarece as maneiras como estas opressões interseccionais de gênero, classe, raça, etnias, geração, regionalidade e outras, ocorrem nas instituições sociais, como, por exemplo, na família e na associação comunitária, pensando no caso das mulheres agricultoras.
Scott (1995) define gênero como categoria analítica usada para designar as relações sociais entre os sexos e identificar as igualdades, as desigualdades e as diferenças existentes entre eles. O estudo de gênero possibilita uma releitura das explicações correntes, que atribuem a homens e mulheres, lugares diferenciados no mundo, diferenças estas atravessadas e constituídas por relações de poder que irão conferir, historicamente, uma posição dominante ao homem. Baseando-se nas diferenças percebidas entre os sexos, mostra como os sujeitos sociais estão sendo constituídos, cotidianamente, por um conjunto de significados impregnados de símbolos culturais, conceitos normativos, institucionalidades e a identidade subjetiva (SCOTT, 1995, p. 86).
Alguns projetos governamentais de desenvolvimento rural e organizações não governamentais afirmam trabalhar em sua intervenção a transversalidade do enfoque de gênero. Neste artigo propomo-nos, a luz das teorias feministas, apresentar a transversalidade do enfoque de gênero no cotidiano. O que requer uma abordagem analítica sobre as relações de gênero, ou melhor, de poder entre os homens e as mulheres.
As reflexões aqui expressa e informações trabalhadas neste artigo foram obtidas a partir das observações de campo e dos relatos das mulheres agricultoras que participaram dos encontros de mulheres, das “rodas de conversas”, na produção agrícola e no associativismo comunitário. A partir dos seus relatos observamos que elas enfrentam preconceito, discriminação e uma série de barreiras que vai desde os próprios medos e insegurança de sair de sua área doméstica, dos arredores da casa, do seu espaço privado, de seu total conhecimento, para se arriscar em atividades de gestão administrativa e financeira, antes reduto exclusivo dos homens, mesmo tendo que “desobedecer” seus maridos para participarem de capacitações e reuniões. Esse é um grande desafio para essas mulheres agricultoras, nordestinas, de baixa renda, de pouca escolaridade, formadas culturalmente para serem do lar, subordinadas aos seus pais e maridos.
No confronto de elementos teóricos com a experiência concreta dessas mulheres agricultoras, pretende-se enriquecer o debate sobre como a questão de gênero interfere na organização social dos espaços público e privado e levar a pensar nos valores e contravalores que estão associados a cada uma das designações atribuídas aos homens e às mulheres na sociedade contemporânea.
A transversalidade do tema de gênero é vista de forma inovadora, inclusiva, ao adotar a viabilização da inclusão social, a equalização das oportunidades, ao garantir que o recorte transversal de gênero esteja presente por dentro da estrutura de execução das ações dos projetos e das organizações da sociedade civil.
Trabalhar gênero como um conceito analítico por dentro de uma estrutura de Estado tem uma maior aceitabilidade política, tanto quanto é visto como um trabalho sério dissociado da política do “feminismo”. Gênero aqui é usado para designar as relações sociais entre os sexos, de modo a rejeitar as explicações biológicas e referir-se às mulheres, às crianças e principalmente às famílias, indicando as construções sociais sobre os papéis próprios aos homens e as mulheres.
Esse uso do gênero só se referindo aos domínios tanto estruturais quanto ideológicos, porém, não se aplica ou não diz respeito à tomada de posição sobre a desigualdade (entre homens e mulheres), o poder e o político (SCOTT, 1995, p.76). Assim o uso do termo gênero geralmente nas propostas de projetos de desenvolvimento rural aparece com uma conotação neutra, mais do que a categoria “mulheres”, porém, na prática durante a execução desses projetos, “gênero” aparece como sinônimo de “mulheres”, pois continua sendo visto como uma questão de mulheres e não de homens (SARDENBERG, 2007).
Trabalhar transversalmente o enfoque de gênero, por exemplo, durante as atividades de implementação dos “quintais agroecológicos” com momentos específicos para refletir o papel dos homens e das mulheres nesta atividade produtiva, já que a grande maioria nos grupos é composta de mulheres. As mulheres estão presentes na economia rural local, concentradas nas atividades voltadas ao autoconsumo familiar, nas tarefas domésticas, no cuidado com os filhos e filhas, na criação de pequenos animais, na horticultura, no cultivo e resgate das plantas medicinais, no zelo pelo jardim, no manejo da caatinga e na produção da lavoura. Mesmo as mulheres estando inseridas na agropecuária, suas atividades são consideradas não remuneradas e aos homens cabem as atividades majoritariamente remuneradas, sendo remuneração sinônimo de reconhecimento e valorização.
Oportunizar uma maior presença das mulheres na criação de pequenos animais, atividade considerada de domínio masculino, é dar visibilidade às atividades desenvolvidas pelas mulheres e jovens (homens e mulheres) no manejo animal, desconstruindo o papel de apenas “ajuda”, ao construir durante as atividades de capacitação no manejo alimentar, sanitário e reprodutor dos animais a lógica da co-responsabilidade das tarefas, por eles e elas assumidas tradicionalmente. As criações de caprinos, ovinos e de abelhas na região semiárida são consideradas atividades rentáveis, sendo um dos motivos principais para a concentração de homens nestas atividades. Apesar da presença das mulheres e dos/as jovens no manejo animal, os resultados monetários da venda desses animais raramente são por elas e eles apropriados ou eles e elas consultados sobre onde investi-los.
As mulheres agricultoras familiares nordestinas vivem, no cotidiano de sua vida familiar, o peso da cultura machista, sexista e patriarcal. A formação doméstica reafirma o poder legitimado dos homens sobre as mulheres, mantendo-as oprimidas na família, assumidamente figuras subalternas (SAFFIOTI, 1992, p. 184). Essa dominação se materializa e corporifica por intermédio da cultura, das tradições, da divisão sexual do trabalho doméstico, que impõem desde muito cedo sobre quem tem o sexo “fêmea” o desempenho de determinadas tarefas ditas femininas. Nas relações familiares, observamos como a ordem de gênero patriarcal (SAFFIOTI, 2008, p.162) ainda impera e é mantida cotidianamente por homens e mulheres. As mulheres, contudo, co-alimentam o patriarcado e se tornam peças importantes na sua reprodução e continuidade, por meio, sobretudo, da educação dos filhos e filhas.
Temos observado, nos espaços trabalhados nos projetos de desenvolvimento rural, que as relações de poder estão diretamente ligadas às relações de gênero e que a diferença de inserção das mulheres nos espaços produtivos e organizativos, espaços de poder, tem uma forte implicação de gênero. Requer-se uma transformação no acesso pela mulher tanto aos bens econômicos quanto ao poder, transformação essa que depende de um processo de empoderamento da mulher.
As mulheres agricultoras que participam efetivamente das dinâmicas organizativas e de atividades produtivas, de capacitações temáticas, das associações comunitárias, exercendo um cargo de direção, seja como presidente, tesoureira, secretária ou mesmo como sócia ativa de sua organização, essas mulheres experimentam o poder.
A experiência de poder tende a resgatar a autoestima das mulheres como sujeitos, nas mudanças de mentalidade e atitude, de modo a dar visibilidade a sua importante contribuição nos processos familiares, comunitários, organizativos, ambientais, produtivos e de comercialização, que dêem substância à sustentabilidade desejada para o desenvolvimento local. Mas trata-se de um processo de mão dupla, pois, como bem atenta Magdalena Leon: ”O empoderamento como autoconfiança e autoestima deve integrar-se em um sentido de processo com a comunidade, a cooperação e a solidariedade” (LEON, 2001, p. 97).
[1] “A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento”. (CRENSHAW,2002, p. 177).
*Beth Siqueira – Engenheira Agrônoma, especialista em Associativismo, mestra em Estudos Interdisciplinares em Mulheres, Gênero e Feminismo (PPGNEIM/UFBA), assessora de gênero do Projeto Pró-Semiárido, da Cia. de Desenvolvimento e Ação Regional / Governo da Bahia.
Referências bibliográficas
CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Centro de Comunicação e Expressão, Florianópolis, Santa Catarina, v. 7, n. 12, p. 171-188, 2002.
LEÓN, Magdalena de (2001). “El empoderamiento de las mujeres: Encuentro del primer y tercer mundos en los estudios de género”. La Ventana, no. 13, pp.94-106, 2001.
SAFFIOTI, Heleieth. Rearticulando Gênero e Classe Social. In: A. O. Costa & C. Bruschini (orgs.), Uma Questão de Gênero, Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fund. Carlos Chagas, p.183-215, 1992.
SAFFIOTI, Heleieth. “A Ontogênese do Gênero”. IN: STEVENS, Cristina Maria Teixeira e SWAIN, Tânia Navarro. A construção dos corpos – Perspectivas Feministas. Florianópolis: Ed. Mulheres, p. 162, 2008.
SARDENBERG, Cecilia. “Back to women? Tranlations, esignifications and myths of gender in policy and practice in Brasil”. In: CORNWALL, A.; HARRISON, E.; WHITEHEAD, A. (eds). Feminisms in Development: Contradicions, Contestations & Challenges. London: Zed Books, pp:48-64, 2007.
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20, nº 2, p.71-99, jul/dez. 1995.