Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Mesmo em se tratando do país com a maior reserva de água doce do mundo, é no Brasil que testemunhamos as várias faces da negação da água como direito humano. Nos territórios, com maior oferta de mananciais, a exemplo da região amazônica, e do Cerrado, vê-se a extração de minérios e instalação de hidrelétricas dar lugar ao que antes era fauna, flora e habitavam populações tradicionais e indígenas. No Nordeste, região que abriga maior parte do semiárido, grandes obras como a transposição das águas do rio São Francisco só aumenta a distância entre quem acessa água para garantir a produção em larga escala, e quem sequer tem oferta do recurso para viabilizar minimamente a produção de alimentos para consumo.

Nesta perspectiva, 22 de março, dia em que se lembra mundialmente da água, não há muitos motivos para celebrar, como avalia a coordenadora da Comissão Pastoral da Terra (CPT) na Paraíba, Vanúbia Martins. “Estamos no mês do março, mês das mulheres, e a água é mais uma mulher violentada assim como a mãe-terra. A gente tem pouquíssimo o que comemorar, só lembrar os desastres e a mercantilização; das várias empresas que estão vindo, a exemplo da Coca-Cola eNestlé, comprar nossos terrenos e exportar a água que não é mais nossa. Nós não temos mais autonomia sobre os nossos territórios”.

O processo de mercantilização das águas tem se intensificado ano após ano no país, sobretudo pelo fato de não haver diálogo ou de não se cumprir os acordos feitos entre empresários, governo e comunidades afetadas pelas obras. No semiárido paraibano, na região onde passa o eixo leste da transposição das águas do São Francisco, as populações rurais que foram diretamente afetadas pelas obras, vivem às margens do canal, mas não podem acessar à água como denuncia o agricultor assentado, Luciano dos Santos.

Trecho do canal da transposição que passa em Monteiro na Paraíba | Foto: Jamildo Melo (NE10)

“Hoje eu sou assentado na Vila Lafayete, mas morava na comunidade de Pau D’arco. Lá a gente tinha água. Eu tinha um poço que tinha 3.500 litros de água por hora e secou e hoje a gente só vê a água de boniteza porque não permite a gente tirar água do canal. Na região da gente secou 48 poços e hoje a gente vê a água passar na frente da casa e a gente não pode acessar. As pessoas que viviam da agricultura familiar não conseguem mais sobreviver. Nós gostaríamos de voltar a ter como produzir para a agricultura familiar e ter um meio de pegar água porque a fonte de renda da gente depende da água”, lamenta Luciano que vive a 500 metros do canal da transposição, na zona rural da cidade de Monteiro (PB).

A CPT tem feito o acompanhamento dessas comunidades, e ao longo dos canais que levam água do Velho Chico para Estados como Paraíba e Ceará. No território ceraense, Vanúbia denuncia que quem empresas já aguardam ansiosas a chegada da água transposta. “No Ceará há a mercantilização para a produção de camarão e extração de ferro, a exemplo da mina de santa Quitéria que vai ter uma barragem de rejeitos imensa, e essa agua precisa chegar lá para eles poderem dar inicio a mineração de ferro. O lugar que vai ser inundado tem nascente, vai contaminar o rio que abastece Canindé e outras cidades”. Já no semiárido paraibano, região que ela acompanha in loco o que se tem testemunhado é a penalização das comunidades de agricultores e agricultoras familiares em nome do lucro de grandes empresas do agronegócio e para abastecimento de grandes centros urbanos.

“O que a gente tem visto é que a água do São Francisco tem sido priorizada para chegar rápido em Campina Grande para garantir a indústria e o comércio porque a periferia da cidade continua do mesmo jeito; pra chegar rápido para a produção de frangos e de cana-de-açúcar irrigada no litoral e os camponeses e camponesas que produzem nesta linha não têm nada, nenhum projeto que fale em levar água para a produção destas comunidades. A própria CPT quando se contrapôs à transposição não foi apenas por acreditar em outra coisa, mas agora que o “monstro” já está construído a gente precisa pensar a forma de distribuição paras as populações, porque foi em nome dessa população sedenta do Semiárido que foi construída a transposição e o que a gente viu foi o contrário. Ela veio fortalecer a mercantilização da água e não a dessedentação como foi proposto, projetado e divulgado”, explicita Vanúbia.

São muitas as consequências que as populações tradicionais, indígenas, e camponesas vêm sofrendo devido às agressões que o rio São Francisco tem sofrido ao longo do seu curso natural e mais recentemente, dos canais que transpõem suas águas. Em Minas Gerais, a iminente ameaça da contaminação pelos rejeitos advindos do rompimento da barragem de Córrego de Feijão, que dizimou centenas de pessoas, em Brumadinho é cada vez mais real e alarmante. Maria Julia que é da coordenação do Movimento pela Soberania na Mineração (MAM) explica porque o modelo de exploração de minério é tão nocivo.

Após desastre, populações ribeirinhas assistem à morte do Rio que gerava vida | Foto: Lucas Hallel - ascom Funai

“Este é um modelo de mineração em que as empresas multinacionais, com um capital de fora e muito operado na bolsa, dominam os rumos da mineração no Brasil. [Essas empresas definem] de onde serão feitos os projetos, como eles serão implementados, qual o tempo de exploração que eles vão ter. Nós não temos no papel do Estado uma ideia de governança pública, de um controle, de pensar esse setor do Brasil a longo prazo. O que aconteceu em Mariana e o que acontece agora em Brumadinho e região, rio Paraopeba e rio São Francisco - porque a lama não chegou no rio São Francisco ainda, mas pode chegar - é que este são os piores exemplos do que este modelo pode causar no país, mas não são os únicos. Nós temos alerta de sirene por riscos de barragens em cinco lugares de Minas Gerais, onde as pessoas estão vivendo sob o pânico e o medo do rompimento de barragens”, explica.

Maria Julia destaca ainda que estes rompimentos não são acidentes e nem podem ser chamados de fatalidades. “Este modelo que quer explorar o máximo possível no menor tempo possível cria situações instáveis em termos da estrutura destes empreendimentos e riscos muito grandes para a população que mora perto deles. No caso de Brumadinho, graças às investigações viu-se que a empresa Vale sabia, desde 2017, do risco de rompimento. Dentro dos critérios do Estado essa barragem em Brumadinho era tida como estável. A barragem de Fundão era tida como estável. E qual é o absurdo de tudo isso? É que quem informa para o estado se a barragem está estável ou não é a própria empresa através de contratação de consultoria externa. É muito grave imaginar que essas duas barragens que causaram tantas mortas eram consideradas pelo Estado como estáveis através de dados fornecidos pela empresa. Nós não precisamos que as leis sejam flexibilizadas. Nós precisamos que o Estado atue com maior responsabilidade, governança, fiscalização e controle da mineração no Brasil”, finaliza.

A exploração das águas em nome do capital está presente em cada recanto do país. Na amazônia brasileira onde está 12% da água doce do planeta, em superfície, a construção de hidrelétricas ainda tem gerado conflitos, causado insegurança alimentar e expulsado povos de seus territórios. Há pouco mais de 10 anos, a chegada do complexo hidrelétrico do rio Madeira tem causado danos irreparáveis para os povos que habitam a região. Rio abaixo e rio acima, das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau multiplica-se a miséria e as pessoas têm buscado novas formas de sobreviver às cheias recorrentes e escassez de alimento e água potável.

“A água que nos dá vida é a mesma água que nos inunda. Só que dentro de um contexto de intervenções humanas. O Rio Madeira corria livre sem intervenções, não sofria nenhum embargo em seu percurso. A partir de 2006 passou a sofrer ameça do complexo hidrelétrico do Rio Madeira e passamos a enfrentar este monstro intervencionista, que foi idealizado a partir do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O complexo foi o primeiro grande projeto desta iniciativa. O que se esperava diante de um governo popular e democrático era um processo de participação popular que tivesse consulta livre no que diz respeito a povos indígenas e populações tradicionais, mas infelizmente não tivemos a oportunidade de sermos ouvidos. O que se teve foi um processo de aliciamento da população tendo como bandeira de fundo dos empresários e políticos que seria a partir dos empreendimentos hidrelétricos a ascensão da região de desenvolvimento, por conta da oferta de emprego, melhoria da renda e oferta da energia. Isso levou ao apoio de maior parte das pessoas”, relata o integrante do Instituto Madeira Vivo, Iremar Ferreira.

Em 2014, o Rio Madeira teve uma cheia histórica e deixou um rastro de destruição na região | Foto: divulgação internet

Ele é um dos ribeirinhos que têm lutado para permanecer em sua terra, mesmo enfrentando as intempéries provocadas pela instalação das hidrelétricas. “Com o passar do tempo, as pessoas viram que esta não era a solução. Primeiro a energiagerada não atende à população local. Eu moro numa comunidade chamada Nazaré, distrito que fica a 6 horas de Porto Velho, e nossa energia não funciona 24 horas, cheia de interrupções e é gerada à base de diesel. Segundo, o emprego foi temporário, nós temos muita gente desempregada e muita gente em condição de mendicância; o peixe do rio que antes era abundante foi extinto, e hoje nós temos cerca de 30% do estoque pesqueiro. 98% do peixe consumido vem de açudes, produção artificial, o que antes era o contrário. Um agravante é que toda a promessa de melhoria de logística e de infraestrutura na cidade [Porto Velho] se colocou abaixo”, descreve Iremar.

De norte a sul do país, organizações e populações lutam incessantemente contra as oligarquias, o Estado e as multinacionais para garantir a soberania e o respeito ao território, à ancestralidade, identidade e cultura. Mesmo numa batalha desigual, alguns povos têm resistido e conseguido permanecer em sua terra, a exemplo do caso de Correntina, na Bahia, em que mais de 12 mil pessoas se uniram em defesa da Bacia do rio Corrente que estava ameaçada pela exploração da empresa agrícola Igarashi. Sobre a importância de se organizar e de não perder a esperanças, Vanúbia afirma que a melhor estratégia é “fortalecer as comunidades dando autonomia aos territórios. É uma luta constante mas quanto mais o território é autônomo a comunidade age. Tem um caminho que é de fato fazer a pressão qualificada junto às empresas e o Estado, porque se não for, estamos entre ‘a cruz e a caldeirinha’. Enquanto estivermos vivos temos condições de lutar pela vida e para tentar equilibrar o planeta”.

Por outro lado, Iremar defende ainda que para superar este desafio é preciso fazer ecoar as várias situações de negação de direitos e as iniciativas de bem-viver para o máximo de pessoas. “Se o rio produz vida ele é um portador de direito humano e não simplesmente tratado como mercadoria. Não é qualquer coisa, é fluxo de vida. Nossos caminhos de vida estão se tornando caminhos de morte, e o grande desafio é fazer chegar esta realidade para outras regiões, principalmente às pessoas do Sul e do Sudeste, em especial, para que possam compreender que assim como no Semiárido onde a água que em pequeno nível pluviométrico já retoma a vida; na Amazônia ela é fundamental para contribuir com o circuito das águas voadoras e alimentar não só nós no Brasil, mas o mundo. E essa contribuição para o planeta revela a importância dessas águas continuarem livres e assim socializar as águas com o mundo. Cada nova barragem aqui representa matar a possibilidade de vida em outras partes do planeta”, alerta.

 

 

Fonte: ASA 

 

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