Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Território das conquistas obtidas a partir da vida e da morte de Chico Mendes está sob ameaça; líderes históricos do extrativismo avaliam os retrocessos de Bolsonaro e temem a volta da violência letal na regiões. No dia 15 de dezembro de 2018, o advogado Gomercindo Rodrigues compartilhava com algumas centenas de pessoas em Xapuri, a pouco mais de 200 quilômetros de Rio Branco, algumas de suas preocupações atuais:

– A situação hoje, infelizmente, e a perspectiva para o ano que vem é ainda pior, é de que nós estamos voltando a antes de 1988, a uma situação de conflito, de ameaça. Já teve casa de seringueiro queimada aqui no ano passado e este ano, reconstruída a casa, fazendeiro passou com trator por cima e derrubou. Enfim… isso em Xapuri, onde todo mundo pensa que está tudo tranquilo, porque tem a reserva.

Amigo e fiel escudeiro de Chico Mendes até 1988, quando o líder sindical – consagrado no mundo como ambientalista – foi assassinado por uma família de fazendeiros do município, Gomercindo chamava a atenção para a retomada da investida contra pequenos extrativistas da região.

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) mostrou em 2016 que a Amazônia Legal havia registrado 977 conflitos na região, envolvendo 93.830 famílias. No Acre, segundo o estudo, 50% dos municípios têm conflitos.

“Esse é um momento em que nós, do movimento social, que estivemos com o Chico Mendes, temos que pensar para os próximos 30 anos”, avaliou Júlia Feitoza, outra companheira de militância de Chico, na abertura de evento dedicado ao legado do seringueiro. “A partir de 1º de janeiro vai ser uma dificuldade que a gente não esperava, um retrocesso muito grande”.

Júlia estava certa no prognóstico. A primeira realização concreta do novo presidente, por meio de medida provisória assinada no próprio dia 1º, foi retirar a atribuição de demarcar terras indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai), levando a competência para o Ministério da Agricultura, por meio da Secretaria Especial de Assuntos Fundiários – comandada pelo líder ruralista Luiz Antônio Nabhan Garcia.

Paralelamente, a MP retira a demarcação de terras quilombolas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a leva para a mesma pasta, da Agricultura, que também passa a responder por algumas atividades do Serviço Florestal, antes sob a tutela do Ministério do Meio Ambiente.

Os “povos da floresta”, expressão que inclui indígenas, extrativistas e pequenos produtores que atuam em Unidades de Conservação como as Reservas Extrativistas, estão entre as primeiras vítimas do governo de extrema direita. Quem se articula com os povos da floresta já tinha ficado com uma notícia para digerir em dezembro: a decisão anunciada por Bolsonaro de retirar o Brasil da posição de anfitrião para a 25ª Conferência do Clima (COP), definida ao longo das atividades da COP 24 na Polônia.

Reservas foram criadas no governo Sarney

As perspectivas são de ameaça a uma série de conquistas obtidas com suor e sangue, incluído o de Chico Mendes. Após a morte do líder acreano, e com toda a comoção e repercussão internacional a partir do assassinato, o governo da época, comandado por José Sarney, apressou o passo para dar uma resposta às demandas do líder sindical e de seus companheiros.

A principal delas foi a Reserva Extrativista (Resex), um conceito que era tido por Chico como parte da promoção de uma “reforma agrária” para as comunidades locais, discutido pela primeira vez durante o 1º Encontro Nacional dos Seringueiros, em 1985. A ideia foi concebida como uma forma de aliar a preservação da floresta com o usufruto da terra, permanecendo sua posse com os povos locais (indígenas, seringueiros e outros extrativistas).

Isso concretizava uma união antes inédita, como lembra Antônio “Txai” Macedo. Ele menciona a participação de Chico Mendes na Assembleia dos Povos Indígenas de 1984 como ponto de partida para o diálogo entre grupos que até ali se viam como quase inimigos.

“Não era uma situação criada pelos povos da floresta, mas pelo patronato que dominava esse cenário”, aponta Macedo. “Chico incorporou isso e em 1989 conseguimos marchar em praça pública, em Rio Branco, lançando a primeira iniciativa do movimento organizado, a Aliança dos Povos da Floresta, quando acontecia o 2º Encontro Nacional dos Seringueiros”.

Na reta final do governo Sarney, com Fernando Collor já eleito, foi criada a primeira reserva extrativista: a do Alto Juruá, no Acre. Como contam a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha e o também antropólogo Mauro Almeida, a vitória de Collor nas eleições de 1989 foi um balde de água fria no encaminhamento do processo que já estava em andamento para estabelecer as Resex:

– Mas havia uma possibilidade: se as reservas extrativistas fossem decretadas como áreas de conservação, o procedimento de desapropriação não precisaria enfrentar todas as dificuldades encontradas no âmbito do Incra. Assim, logo após as eleições de outubro, o Conselho Nacional dos Seringueiros, baseado no caso específico da Reserva Extrativista do Alto Juruá – com meio milhão de hectares completamente fora dos planos do Incra –, deu o sinal verde para o encaminhamento de uma solução no âmbito do Ibama.

Foi assim que em janeiro de 1990 foi decretada a Reserva Extrativista de Juruá, e, com base no mesmo modelo, outros três projetos foram preparados e submetidos em regime de urgência: em Rondônia, a Rio Ouro Preto; no Amapá, Rio Cajari, e, no Acre, a Reserva Extrativista Chico Mendes. Esta última inclui o seringal Cachoeira, cuja disputa foi o estopim do assassinato do líder seringueiro.

Todas as reservas foram aprovadas em 15 de março de 1990, noite do último dia do governo Sarney. Hoje, são 94 reservas extrativistas que integram o sistema nacional de Unidades de Conservação, um total de 15 milhões e 400 mil hectares de terras protegidas por esse regime.

Além da preservação da vegetação nativa e da garantia do usufruto econômico, a definição do território também conferia mais segurança, como ressalta o castanheiro Pedro Ramos de Souza, liderança histórica do Amapá que participou daquele momento. “Quando criamos as reservas era também para dar segurança aos extrativistas para que não morressem assassinados, com eles tendo uma moradia fixa dentro daquela área”, conta.

Mauro Almeida fez parte do grupo de trabalho que discutiu com o governo o modelo das reservas extrativistas. Ele conta que houve resistências à ideia:

– Na véspera da passagem do governo Sarney para o Collor acontece uma reunião no subterrâneo do Palácio do Planalto com representantes do alto comando do Exército. Fizeram uma espécie de interrogatório: ‘Por que vocês estão criando isso na fronteira? O que está por trás? Toda a população foi consultada? Os políticos eleitos concordam?’ Os militares estavam preocupados com a fronteira, mas argumentamos que ela só existe porque os seringueiros, cem anos atrás, sob a liderança de Plácido de Castro, deram a vida, fizeram batalhas para segurar essa fronteira e desde então são eles que a seguram.

Almeida garante que o argumento convenceu. No dia 13 de março, Sarney assinava o decreto, com pompa, circunstância e seringueiros convidados em Brasília.

Hoje, as Resex são áreas onde o desmatamento é substancialmente menor do que no restante da região. Mas esse território está ameaçado. A pressão de pecuaristas avança também pela via judicial, com grandes proprietários constrangendo posseiros a venderem suas terras ou fecharem acordos lesivos aos povos tradicionais – e à floresta.

Chico Mendes levou os tiros ao sair por essa porta. (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)

Segundo dados do Boletim do Desmatamento divulgados em novembro pelo Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), o Acre ainda é o estado amazônico com menor índice de alertas de desmatamento, 4% do total). Mas no ranking das dez Unidades de Conservação com maior número de alertas, a Reserva Chico Mendes ficou em segundo lugar. Entre agosto e novembro o desmatamento foi o dobro em comparação ao mesmo período de 2017r. Somente em novembro foi quatro vezes maior.

Boa parte desse desmatamento se deve ao avanço da criação de gado.

Pecuária na Amazônia se estabelece com incentivos

“A pecuária é uma cadeia produtiva altamente atrativa, seja para o seringueiro, para o caboclo ribeirinho ou para o fazendeiro”, analisa o professor Carlos Valério Aguiar Gomes, do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares da Universidade Federal do Pará (UFPA). “Trinta por cento do desmatamento da Amazônia hoje está dentro dos pequenos lotes, não é exclusividade das grandes extensões, e a pecuária se estabelece por meio de grandes incentivos, não com as forças do mercado agindo livremente”.

O pesquisador observa que a expansão da pecuária na Amazônia foi um processo altamente subsidiado desde seu início, como política governamental durante a ditadura, ainda nos anos 60. “Por outro lado, não se viu o mesmo tipo de incentivo para economias alternativas que valorizem a floresta”, compara. “Ainda temos processos bem sucedidos de populações que têm boas relações de mercado com a borracha, a castanha ou outros tipos de produtos que garantem uma melhor renda, mas são experiências muito localizadas”.

O avanço da pecuária tem se dado de forma gradual. É uma atividade relativamente simples para os seringueiros, por demandar pouca mão de obra. E, descreve Valério, gera renda: “Um seringueiro, antes de entrar na Reserva Extrativista Chico Mendes no Acre, por exemplo, passa na frente de uma fazenda e tudo o que ele vê é só capim, uma casa bem feita, com antena parabólica, um Hilux e pensa: ‘Esse cara tem tudo isso e só cria gado, eu também quero’”.

Ele observa que as reservas garantiram o direito à terra a essas populações: “Muitas políticas públicas foram implementadas nessas áreas e as pessoas saíram da pobreza, embora hoje ainda haja muitos entraves do ponto de vista macroeconômico”. Mas pergunta: o gado provoca uma ruptura ou não na identidade dos povos tradicionais? “O que é ser seringueiro? Morar dentro de uma reserva extrativista por si só garante essa condição, como conceituar isso?”.

Valério enxerga espaço para uma diversidade do sistema produtivo dentro da Resex, onde exista convivência com a pecuária, mas de forma limitada: “Do ponto de vista histórico, o gado sempre esteve no ambiente do seringal. O barão da borracha, o seringalista, sempre teve o gado ao lado dos seringais. Talvez no imaginário do pobre seringueiro isso sempre apareça como um bem”.

Cota para o gado ultrapassa dez vezes o limite

Pela atual legislação, alguém que habita em uma reserva extrativista pode desmatar até 10% da sua colocação (o lote pelo qual o seringueiro é responsável) e até metade disso pode ser destinada à criação de gado. Isso daria por volta de trinta cabeças de gado por família, calcula o pesquisador, em um local como a Resex Chico Mendes. O problema é que alguns chegam a destinar à pecuária dez vezes mais do que isso.

“É aí que entra o poder da organização social e do Estado em dialogar para que exista uma forma de frear esse processo”, considera Valério. “Esse tamanho de rebanho já rompe lógicas regulatórias de produção.”

Outra dificuldade para o cumprimento desse limite, previsto oficialmente no Código Florestal, promulgado em 2012, é que o monitoramento oficial deve ocorrer por meio do Cadastro Ambiental Rural (CAR). Os fazendeiros, com receio de criarem evidências contra si mesmos de que não cumprem o limite previsto em lei, atrasaram o preenchimento do Cadastro, cujo prazo já foi objeto de inúmeras negociações e quatro prorrogações.

A Sociedade Rural Brasileira (SRB) se posicionou institucionalmente contra o Cadastro pouco depois que Sarney Filho assumiu como ministro do Meio Ambiente no governo interino de Michel Temer, argumentando que a incidência da Lei de Acesso à Informação sobre o CAR, que seria documento público, traria a violação da privacidade dos empresários.

Eleito com apoio declarado do agronegócio (após documento oficial assinado por 27 Federações e pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, CNA) e da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), Bolsonaro não poupa espaço em seu governo para pessoas pessoas ligadas à Rural. O titular do Ministério do Meio Ambiente, Ricardo Salles, já prestou serviços à organização, que segue apoiando sua trajetória política.

Além disso, a União Democrática Ruralista (UDR) – organizadora direta da violência que atingiu o Acre e vitimou Chico Mendes – está representada por seu presidente, Nabhan Garcia, na pasta agora responsável pela definição fundiária no Brasil. Isto em um ministério, o da Agricultura, chefiado pela pecuarista Tereza Cristina (DEM-MS).

A resistência dos fazendeiros ao preenchimento do CAR casa perfeitamente com a maior capacidade que eles têm de pressão sobre os pequenos extrativistas. Como lembra Valério, da UFPA, a finalidade da reserva se choca com o que buscam agricultores e pecuaristas:

– Muitos desses territórios foram criados nas regiões de fronteira do agronegócio, bloqueando o desmatamento em larga escala na Amazônia. Dentro desse modelo de unidade de conservação, a reserva extrativista foi amplamente adotada como uma política de contenção do desmatamento de larga escala.

80% dos assassinatos no campo são na Amazônia

As mortes decorrentes de conflitos voltaram a aumentar na Amazônia. Em 2017, de acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra, foram 71 mortes, 54% delas de líderes de movimentos, ribeirinhos, indígenas e quilombolas; 77% dos assassinatos foram realizados na Amazônia Legal. 2019 já começou com o homicídio de um trabalhador rural na Amazônia – Elizeu Queres de Jesus, de 38 anos, durante conflito por disputa de terra no município de Colniza, em Mato Grosso, no sábado (05/01).

Em 1988 foi a vez de Chico Mendes. Gomercindo Rodrigues lembra-se perfeitamente daquele dia 22 de dezembro:

– Foi muito cruel. Estive com o Chico cinco, dez minutos antes de ele ser assassinado. Falei ‘vou dar uma volta na cidade porque estou preocupado’ e saí de moto, dei uma volta pela cidade, vendo todos os lugares onde os pistoleiros sempre estavam e eles não estavam. Quando voltei, já tinham atirado no Chico. Fui ao hospital e não deixaram eu entrar. Voltei e comecei a fazer as primeiras ligações, a primeira reação das pessoas era ‘não brinca com isso, Guma’ e eu dizia ‘não estou brincando…’. Eu estava chorando. Perguntavam ‘mas como é que ele tá?’ e eu dizia ‘não sei, está de muito mal pra… pra morto, não sei’.

No hospital, Gomercindo não conseguiu entrar da primeira vez porque estava de bermuda. Na segunda tentativa, conseguiu. “Passei pelo hall, logo depois tinha uma maca: o Chico, com o peito rendilhado de chumbo. Assim, desse jeito [faz um gesto passando a mão na lateral do peito]. Ele estava ali, morto. Morto.”

Durante o evento sobre os trinta anos da morte de Mendes seus companheiros levaram detalhes da atuação cruel e calculada, com participação das instituições, como conta Jorge Viana, para abafar o caso. Viana governou o Acre entre 1999 e 2007. Foi sucedido por Binho Marques, que ficou no Palácio Rui Branco até 2010:

– O Gomercindo ligou para mim e para o Binho chorando, ninguém acreditava. A estrada ainda era de barro, nós pegamos uma Toyota, eu e o Binho e viemos dirigindo para Xapuri. Quando chegamos, o corpo já tinha ido. Fomos para o IML, voltamos para Rio Branco. No outro dia de manhã as autoridades queriam enterrar imediatamente o Chico, fazer um enterro rápido, fretaram avião e tudo. E nós demos um jeito, procurando nosso Bispo Dom Moacyr, falando de levar o caixão até a igreja, para ser velado por algumas horas também em Rio Branco, para que a notícia pudesse circular, para que as pessoas pudessem tomar conhecimento daquilo, de que tinham matado o Chico Mendes!

A atriz Lucélia Santos conta que as ameaças eram constantes e ocorriam seis meses antes da execução. Ela conhecera Chico Mendes em uma reunião sobre a possível fundação de um partido ambientalista no Brasil, no início de 1988. No dia 1º de maio chegou em Xapuri. Chico Mendes foi à porta do avião buscá-la, em Rio Branco. “Caí de paraquedas em Xapuri, quando vi estava no meio da floresta com os índios, os seringueiros, os ribeirinhos, o povo da castanha, o BID, o Banco Mundial, os ambientalistas que estavam aqui de passagem para conhecer o processo de implantação das reservas”, conta.

Chico disse a ela: “Companheira, aqueles caras ali que estão me ameaçando de morte”. Lucélia estava com um fotógrafo da Folha. Ela se lembra de ter dito a ele: “Fotografa os caras”. “Depois essa foi a foto mais divulgada no mundo”, relata.

Raimunda Bezerra hospedou por diversas vezes Chico Mendes em sua casa, em Rio Branco:

– De certa forma a gente teve que aprender a viver com a ameaça. Um dia ele chegou em casa, entrou, deixou o portão aberto, a sala, foi ao banheiro e quando voltou disse: ‘Menina, tu sabe que fui seguido até ali na esquina?’ Comecei a gritar com ele, que ele podia ter sido morto no meu banheiro e o que é que eu ia fazer? No dia do acontecimento, a gente ficou sabendo que tinha tido uma tocaia, porque o maço de cigarro que estava aqui [perto da casa do Chico] também estava no quintal da minha casa.

Imprensa do Acre demonizava o sindicalista

Chico sabia que era importante se fazer visível, denunciava todas as ameaças, mas considerava que estava sendo colocado em descrédito. Mary Allegretti, antropóloga que conheceu o Acre e Chico Mendes na década de 1970, sugeria sempre que ele procurasse a imprensa a cada novo incidente. Na semana do assassinato, porém, ele dizia a ela, por telefone, que esse já não era mais um caminho efetivo.

“Achei que o Chico estivesse fantasiando a morte dele”, diz Lucélia Santos. Essa era a sensação de muitos outros presentes no encontro de dezembro de 2018, em Xapuri. “Pelo sim, pelo não, fomos ao governador do estado, Flaviano Melo (PMDB), e pedimos proteção de corpo ao Chico”. Ela conta que o segurança que estava com ele no dia do crime – dois policiais militares tinham sido destacados para a tarefa – estava lá a pedido. “Mas pelo jeito não adiantou muito”, diz a atriz, com os olhos marejados. “Também, o Chico ficou amigo do cara, estava jogando dominó com ele, imagina? Esse era o Chico Mendes”.

Uma advogada teve papel central na equipe de criminalistas capitaneada por Márcio Thomaz Bastos, então presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Sueli Aparecida Bellato (foto ao lado) atuou como assistente de acusação no Tribunal do Júri contra os autores dos disparos. Muito antes do assassinato, diz ela, a imprensa comercial da região reproduzia conteúdos difamatórios sobre Chico, reproduzindo o discurso de grandes fazendeiros da região. Um dos maiores jornais do Acre, O Rio Branco, era do fazendeiro João Branco, então integrante da União Democrática Ruralista (UDR). Ele era dono de terras no sul do Acre e interessado em ampliar seus latifúndios.

“Falaram tanto de fake news nas eleições deste ano, mas essa prática é muito antiga, era o que faziam com o Chico Mendes”, lembra Sueli. “Se alguém lesse os jornais da época veria que falavam dele como se fosse um vagabundo, um monstro, inventavam uma série de coisas”.

Com décadas de experiência na defesa e proteção de ativistas pela terra, a advogada aponta um dos maiores aprendizados que guarda: as ameaças de morte precisam ser levadas a sério. “As pessoas achavam que Chico estava exagerando, isso acontece”, descreve. “Eu mesma dizia para a irmã Dorothy que poderíamos encontrar maneiras de protegê-la, enquanto ela me dizia que sabia estar com os dias contados”. Dorothy Stang era missionária na região de Anapu (PA) e foi assassinada em 2005. “Eu estava fora do país e fiquei em choque por um bom tempo, me sentia ingênua e culpada”.

Sueli Bellato considera os disparos dados por Darci Alves a ponta de um processo. Acostumado a caçar onças, ele estava de tocaia no quintal de Chico Mendes, naquele 22 de dezembro de 1988. Havia recebido a encomenda do pai, Darly Alves, dias antes:

– Realmente havia ali um conflito direto, a área da reserva avançava sobre terras deles, e além disso eles não gostaram que o Chico encontrou o histórico de outro homicídio praticado pela família em Minas. Mas eles não agiriam sem apoio, havia fazendeiros na região, organizados, integrantes da UDR, que Chico Mendes sabia que queriam silenciá-lo. Mais do que um seringueiro, ele era um articulador de políticas públicas pela floresta, do uso do território a favor do trabalhador.

Gomercindo Rodrigues relata conflitos recentes

Gomercindo Rodrigues avalia que, nos próximos meses, vai aumentar a pressão e a possibilidade de conflito. Ele cita o exemplo de um seringueiro que estava no famigerado e registrado empate de 1986, na fazenda da Bordon. Hoje sua terra compõe a reserva Chico Mendes, mas está sob pressão de um fazendeiro local: “O fazendeiro está entrando com ações contra os posseiros para tirá-los, dizendo que eles são invasores da terra. Em 86, ele já morava lá há muito tempo e hoje o fazendeiro diz que ele era invasor”.

A situação fica mais difícil quando se sabe que não há Defensores Públicos do Estado com permanência em Xapuri há anos. Cada defensor fica alguns meses e depois é removido, a pedido ou por outros motivos, para outra cidade. Solene Oliveira da Costa, atual Ouvidora-Geral da Defensoria, explica que a maioria dos pequenos produtores depende de advogados dativos.

“Não podemos apostar as fichas na Justiça”, diz Gomercindo. “Mas o documento vem depois. Antes vem a resistência, a realidade. Acho que temos todos que universalizar e adequar o empate para a Amazônia toda. O sentido do empate é: juntamo-nos todos para defender a área que está sob pressão”.

Porta-voz da Carta de Xapuri, documento-síntese do evento, Lucélia Santos resumiu o sentimento que a movia no retorno a Xapuri:

– Uma coisa fundamental aprendi com o companheiro Chico Mendes (e acho que é a coisa mais importante que aprendi na minha vida): a não ter medo. Não passarão. É pela paz, é pela resiliência, é pela tranquilidade. Nós não teremos medo, defenderemos a floresta sempre.

O observatório inaugurou a editoria De Olho na Resistência, no dia 1º, com um perfil de Angélica Mendes, neta do sindicalista: Neta de Chico Mendes inspira-se em infância nos seringais para defender a Amazônia.

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(Por Cristina Uchôa e Glauco Faria - De Olho nos Ruralistas | Crédito foto principal: Pilly Cowel/ISA)

Crédito foto Sueli Aparecida Bellato: Cristina Uchôa e Glauco Faria 

 

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