Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

A pastora Romi Benke, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), apresentou ao Conselho Nacional da CPT, reunido de 27 a 29 de outubro, em Luziânia (GO), uma análise de conjuntura a partir de escritos do professor alemão Wolfgang Streck, e destacou o papel que a religião desempenha no mundo dominado pelo neoliberalismo. 

(Antônio Canuto - CPT Nacional)

Sua análise parte de que a crise das democracias capitalistas se manifesta de forma surpreendentemente nova... Ninguém sabe o que vai acontecer a seguir. Os temas mudam todos os meses, por vezes, todas as semanas, mas quase todos voltam em algum momento. O campo da ação politica está minado com um número interminável de efeitos secundários imprevisíveis. Se há casos em que se pode falar em complexidade, este é um deles. Faça o que fizer, a política para resolver um problema, cria outro problema. O que põe fim a uma crise agrava a outra. “Por cada cabeça de Hidra que se corta crescem duas novas”, destacou.

É necessário abordar demasiados problemas em simultâneo, as soluções de curto prazo impossibilitam soluções de longo prazo. Aliás, nem sequer se procuram soluções de longo prazo, uma vez que os problemas de curto prazo exigem prioridade. Surgem buracos por todos os lados que só podem ser tapados abrindo novos buracos noutro lado...

A instituição misteriosa da modernidade capitalista para apaziguar conflitos sociais desestabilizadores encontrou a saída com a compra de tempo. Comprar tempo para adiar um acontecimento iminente. Na tentativa de o impedir usa o dinheiro, bem como concede alguns benefícios, como as políticas do bem estar social, para garantir que vai continuar lucrando. A política democrática apenas manteve a aparência de um capitalismo de crescimento com progresso material igual para todos e com aparente distribuição de renda. Estes recursos estão esgotados, precisam ser substituídos por outros.

Beneficiários e gestores do capital consideram caras as políticas sociais. Não é possível mais comprar tempo com dinheiro. Não há como acreditar em um capitalismo socialmente pacificado. O que fica claro é que o capitalismo não é democrático.

Para garantir sua hegemonia utiliza o discurso religioso de um Deus controlador e cerceador das liberdades humanas. Pois o mercado nega a pluralidade e confirma as estruturas de dominação que já não respondem mais às necessidades dos tempos atuais, mas que, no entanto, insistem em permanecer. É também pelo discurso religioso que se esvazia a democracia. O século XXI experimenta a simbiose entre fundamentalismo financeiro e fundamentalismo religioso, que tem com consequência a não aceitação da igualdade social e do respeito às diferenças. O fundamentalismo religioso é consequência do fundamentalismo financeiro.

A expansão de ideais fundamentalistas à serviço do capital

No Ocidente, reatualiza-se a face fundamentalista do cristianismo, tanto na versão protestante, quanto na versão católica romana. Na Europa, recupera-se a ideia de uma identidade ocidental cristã (cristandade) em contraposição ao avanço do Islã sobre o Ocidente.

Instaura-se o medo de guerras religiosas em uma versão pós-moderna. Outros medos são construídos e novos demônios são fabricados. Contra o movimento feminista e LGBTTs, cria-se o temor da “ideologia de gênero”; os diferentes modelos de família são combatidos pela ideia da família patriarcal; o racismo, além do ódio contra as pessoas negras, manifesta-se também como intolerância religiosa. Fortalecem-se as práticas da cristianização dos povos indígenas. O conceito democrático da liberdade religiosa é reivindicado como o direito de impor valores religiosos ao conjunto da sociedade.

E vai ganhando ênfase o fundamentalismo moral que reivindica o reenvio para o domínio privado de questões que os movimentos de emancipação, principalmente feminista e LGBTTS, remetem para o espaço público, discurso anti-corrupção, maniqueísmo e moralismo.
Daí para a cultura do linchamento dos que pensam diferente é só um passo.

O neoliberalismo promove a ideia de que democracia não significa a ampliação de direitos de decisão e participação de cidadãos e cidadãs. Isso, na sua lógica, é o caos, a desordem. Para ele democracia significa a ampliação da permissão para que empresas e corporações financeiras explorem livremente tanto a mão-de-obra produtiva, através da flexibilização das leis trabalhistas (negociação direta), quanto o meio ambiente, através da flexibilização das leis de regulamentação ambiental. Gradativamente, os contratos sociais que tinham a função de garantir um mínimo de bem-estar e equilíbrio são rompidos ou desfeitos.

O neoliberalismo é a própria religião. Surge um único e novo deus – o deus mercado. Mesmo, que as religiões históricas ou tradicionais, como o cristianismo e o Islã, estejam recobrando sua presença na esfera pública, a questão é sobre qual é seu papel no contexto de dominação da religiosidade neoliberal.

Um convívio, aparentemente pacífico, entre religiões tradicionais ou históricas e o contexto neoliberal pode significar a subordinação dessas religiões à religião neoliberal. Muitos deuses sob o comando do deus mercado, atuando em favor da liberdade do mercado. Estes deuses são transformados em uma espécie de “soldados” do deus mercado e arautos da liberdade do mercado. Suspeita-se que as igrejas estejam sutilmente encurraladas entre promover e defender a justiça social ou promover e proteger a justiça de mercado.

Justiça

A justiça de mercado é compreendida como a distribuição do resultado da produção de acordo com a avaliação pelo mercado do desempenho individual das pessoas. O critério de remuneração é a produtividade-limite. Quem decide o que é justo é o mercado e a justiça se expressa em preços.

A justiça social orienta-se por concepções coletivas de honestidade, equidade e reciprocidade, garantia de direitos, mesmo que mínimos, independentemente do desempenho econômico e reconhecimento de direitos civis e humanos - o direito à saúde, à segurança pública, à participação social, à proteção do emprego, à organização sindical - entre outros. Nesse caso, o que é justo é decidido pelo poder de mobilização, característico dos processos políticos. A justiça social, geralmente é alheia à economia.

Ficamos entrincheiradas entre promover a justiça de mercado ou promover a justiça social, entre proclamar a lógica de Mt 25.29-30: “Porque a todo o que tem se lhe dará, e terá em abundância; mas ao que não tem, até o que tem será tirado. E o servo inútil, lançai-o para fora, nas trevas”. Ou em prover a lógica de Lc 1.53: “Encheu de bens os famintos e despediu os ricos de mãos vazias”.

A liberdade do mercado, precisa ser preservada. Ela não é problematizada. Criam-se harmonias aparentes, a partir do momento em que as confrontações éticas necessárias não são feitas, porque a fé provocadora e questionadora está devidamente contida.Também Deus está contido, enjaulado na intricada busca e afirmação da liberdade do mercado. O falar sobre Deus, de Deus, com Deus significa, cada vez mais, a adequação do discurso teológico às necessidades do mercado. Deus mesmo é tornado agente do mercado, na medida em que atende os desejos de consumo, prosperidade, riqueza de quem crê. Deus é colocado a serviço da liberdade do mercado na medida em que o sentido da sua existência é conferido à sua capacidade e poder de viabilizar a prosperidade material e a felicidade individual.

A liberdade do mercado passa, necessariamente, pela instrumentalização da fé que deixa de ser livre, assim como Deus deixa de ser livre. Deus é comunicado como totalmente adaptado e integrado à lógica do mercado. A fé nesse Deus adaptado e integrado ao mercado, promove e fortalece o individualismo, a autossuficiência, a negação da política em detrimento do fortalecimento da cultura do consumo. Este Deus alienado, não problematiza as relações de poder e nem as injustiças causadas pela promoção e defesa da liberdade do mercado. Este Deus integrado à lógica do mercado precisa destruir qualquer possibilidade da fé que torne o ser humano livre para não praticar as exigências do mercado. O fundamentalismo financeiro-religioso cria, com isso, os inimigos que precisam ser combatidos.

Há uma necessidade premente de crítica à religião e ao Deus tornado servo do mercado. Ambos condicionam as pessoas a uma vida sem liberdade, na medida em que, para obter a salvação, nesse caso, salvação significa acesso ao consumo, precisam dedicar toda a sua vida e o seu tempo em gerar dinheiro e prosperidade. A devoção aos mandamentos do mercado não permite o descanso e nem o convívio entre as pessoas. Todos os momentos da vida são destinados para conseguir dinheiro ou para consumir. Esta dedicação extrema faz com que as pessoas tenham a falsa sensação de que são bem remuneradas. Seriam, portanto, beneficiadas pela justiça do mercado. No entanto, esta justiça é aparente, pois as pessoas estão ganhando menos, trabalhando mais e, consequentemente, produzindo mais riquezas para o mercado, que se alimenta pela concentração das riquezas. A justiça não é para elas, mas para o mercado. Esta relação de total entrega ao cumprimento das exigências do mercado é de servidão. Não há liberdade na lógica do mercado.

A contraposição entre Deus da graça e Deus do mercado poderia ser a crítica à lógica do sistema neoliberal. As pessoas estão livres para dizer não às exigências do Deus mercado. É possível confrontá-lo e romper com a sua lógica para estabelecer novas relações sociais e econômicas que possibilitem equidade, distribuição de riquezas. O Deus que ama e nos encontra possibilita justiça social. A liberdade que conduz à igualdade e democratiza a própria democracia porque ao resgatar a liberdade humana proveniente da fé subverte a lógica da liberdade do mercado.

Romi terminou sua exposição levantando algumas questões: Por que tememos a liberdade? Também na esquerda? Há uma necessidade gritante de superação de maniqueísmos e da alternativa de lutas viáveis e das não viáveis. Há que se ter espaço para a pluralização das vozes. E é urgente devolver a dignidade à política e aos políticos/as.

 

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