Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Para Maria Rita Kehl, mais do que o conteúdo conservador veiculado, a televisão substitui o “Brasil real” por uma visão fantasiosa da realidade, em que o “malvado morre no final"

30/03/2016

Por Guilherme Weimann
De São Paulo

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A televisão, da forma como tem retratado a realidade hoje, tem efeitos perigosos sobre a formação da opinião da maioria dos cidadãos. Essa é a opinião da psicanalista Maria Rita Kehl, que avalia que a vida social tem sido pensada a partir de visão fantasiosa da realidade. “Criam-se situações seríssimas e as soluções finais são sempre simplificadas. O malvado sempre morre no final, por exemplo. A realidade não entra pra valer na pauta do espetáculo”, analisa.

Ex-integrante da Comissão Nacional da Verdade, que apurou as violações de direitos humanos durante o período da ditadura militar brasileira, ela não acredita que o atual cenário político seja idêntico ao vivenciado antes do golpe de 1964. A explicação é que o exército, atualmente, não teria essa predisposição. O que se pode consumar, de acordo com Maria Rita, é uma “fortíssima demanda popular por um governo autoritário”.

Confira:

Brasil de Fato SP - O debate político tem ultrapassado a linguagem verbal e resultado em diversas agressões físicas. O que tem gerado essa agressividade?

Maria Rita Kehl - O que eu entendo, e lamento muito, é o fato de o Brasil ser um país extremamente conservador. A classe dominante aceita apenas pequenos avanços como pequenas concessões. O modo cordial de dominação brasileiro, que está descrito pelo Sérgio Buarque de Holanda [referência ao livro “Raízes do Brasil”], é o de ‘dominar passando a mão na cabeça’. Isso criou, durante muitas décadas, uma relação de exploração paternalista. Esse estilo de dominação, no Brasil, vem desde a escravidão e se perpetuou.

Atualmente, a oposição é contra medidas que não estão tirando nada do bolso de ninguém, mas que estão beneficiando uma pequena ascensão social. Essas medidas despertaram uma fúria muito grande, que não vem de agora. Na primeira eleição da Dilma, a conversa de que Bolsa Família é pra vagabundo, pra quem não quer trabalhar, era constante. Um argumento como esse mostra o seguinte: se o cara imagina que um trabalhador possa preferir largar o trabalho para ganhar a Bolsa Família, significa que ele está oferecendo um salário menor que a Bolsa família. A partir daí, você pode imaginar o nível salarial que se oferece, fora da lei, em vários lugares mais afastados do Brasil. É com esse tipo de cultura centenária que você está mexendo.

Durante o Ato pela Legalidade, realizado no dia 18 de março no auditório do TUCA, a senhora afirmou que não adiantaria sairmos ‘nós contra eles’, mas que era preciso incentivar o diálogo entre as pessoas…

Eu só consigo agir com diálogo com quem eu estimo ou com quem não está completamente convicto ‘do outro lado’. Às vezes, você está no táxi e a pessoa está na dúvida, está confusa. Aí, eu consigo dialogar. Por outro lado, se vem alguém muito raivoso, já armado de uma série de preconceitos, isso é terrível. Chamamos isso de ignorância, ou seja, uma pessoa se valer de uma série de preconceitos pra estruturar seu pensamento. Nesse caso, eu realmente não consigo dialogar. Acho muito melhor quem consegue dialogar, porque às vezes você muda uma opinião.

A senhora acompanhou os trabalhos da Comissão da Verdade, que apurou os crimes da ditadura. Existe alguma semelhança entre o período que antecedeu o golpe de 1964 e o atual momento político?

Ideologicamente, sim. Mas eu acho muito significativo que o exército tenha barrado alguns abusos. Por isso, eu não vejo o exército com essa predisposição. Eu não sei o que seria um golpe hoje. O que pode vir, que é até mais triste do que um golpe, é uma fortíssima demanda popular por um governo autoritário.

Por outro lado, o que me entristeceu muito é o seguinte: o Brasil foi o último país da América Latina a criar uma Comissão da Verdade. E só criou no momento em que elegeu uma presidente que foi torturada. O Lula, enquanto presidente progressista, não se interessou por isso nos seus dois mandatos. Isso gerou uma ignorância de uma geração inteira que cresceu com uma vaga ideia do que ocorreu na ditadura.

A senhora trabalhou como jornalista e estudou o papel das telenovelas. Qual a influência da mídia, em especial da Globo, no atual cenário político?

Atualmente, a Globo noticia os investigados já como culpados e, com isso, cria um efeito terrível de pré-julgamento e de fato consumado. Mas eu acho que o efeito da televisão, a longo prazo, é muito mais grave do que isso.

No Brasil, a televisão substituiu o campo do pensamento pelo campo da fantasia de uma forma muito eficaz, independentemente do conteúdo. Isso significa que as gerações formadas pela televisão pensam a vida social dessa maneira, ou seja, numa espécie de visão fantasiosa da realidade. Criam-se situações seríssimas e as soluções finais são sempre simplificadas. O malvado sempre morre no final, por exemplo. A realidade não entra pra valer na pauta do espetáculo. Qualquer versão, mínima que seja, das condições de desigualdade no Brasil se restringe a um personagem pobre que vai ser absorvido pela família rica.

Existe uma marca de criação de um Brasil da fantasia que cobre o Brasil real e que, além disso, não favorece o pensamento abstrato. Esse formato da televisão te restringe a pensar por imagens, e isso é terrível porque o pensamento por imagens é binário. Não existe dialética na imagem. Cria-se uma visão simplificada das coisas, independente do conteúdo que está sendo transmitido.

Essa forma de pensamento também é utilizada largamente na política nacional…

Lula também contribuiu com essa forma pensamento, no seguinte sentido: quando ele tomou posse em 2003, participávamos de um grupo de professores, intelectuais e pensadores do Brasil que já acompanhava as suas campanhas. Conversamos muito e ele aceitou, apesar de não ter feito nada do que a gente propôs. Foi nesse momento que ele chamou o Duda Mendonça pra fazer sua campanha. E também foi quando ele escreveu a Carta aos Brasileiros, dizendo que não mexeria em várias coisas que esperávamos que ele mexesse.

Por isso, houve quase uma debandada de intelectuais de esquerda e o Paul Singer, que é um homem muito dedicado em conciliar as coisas pela esquerda, criou em sua casa grupos de debate que duraram toda a campanha. Debatíamos os temas de campanha e do programa de governo Lula. Conversávamos com pessoas já indicadas pra ministros, com pessoas importantes da campanha, e também conversávamos com ele, antes de se eleger em 2003.

Eu me lembro que um dos primeiros discursos de Lula, logo que eleito, pra dizer que não ia fazer as coisas de uma hora pra outra, era assim: “uma criança fica nove meses na barriga da mãe antes de nascer, uma árvore que você planta demora não sei quanto tempo pra crescer…”. Em contrapartida, nós dizíamos: “Lula, você tem que politizar essa questão. Você vai depender da sociedade politizada pra te defender quando precisar. Você tem que explicar porque tem que ser devagar e quais são as resistências na sociedade brasileira”. E como sempre, é o jeito de Lula, ele nem ouviu. “Ah, claro!”. E fez igual.

Ele também tem culpa nesse sentido. Ele tava com a ‘faca e o queijo’ na mão na primeira eleição e, por isso, podia ter politizado o discurso, mas não politizou. Então, atualmente, essa classe média que se beneficiou muito dos programas do PT provavelmente está junto com o “Fora Dilma”. Isso acontece porque ela se identifica com a classe alta e não foi politizada durante o tempo em que o Lula teve a chance. Parece que esses ganhos vieram de ‘mão beijada’.

As coisas agora estão mais difíceis com essa crise econômica e, por isso, eles já estão aí no “Fora Dilma” e “Fora Lula”. A corrupção é intolerável em qualquer partido e em qualquer contexto. Mas a gente não podia esperar que a mídia ia ser justa em noticiar a corrupção do PT na mesma intensidade que a corrupção de outros partidos de direita. Temos que considerar que, em parte, estamos sendo derrotados pelos nossos próprios erros. Eu digo 'nossos, mesmo sem nunca ter recebido nenhum tostão indevido. Mas ‘nosso’ eu digo como de uma fração da esquerda.

 

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