“Estamos trabalhando com recursos de 2014; recursos novos para o acesso a água em 2015 não existiram, o ajuste realmente segurou esses recursos”, afirma ativista da Articulação para o Semiárido (ASA)
Depois de tornar viável a instalação de mais de 500 mil cisternas para captação de água de chuva no semiárido nordestino desde 2003, ano do início da primeira gestão do governo Lula, o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), realizado pela sociedade civil e apoiado com recursos do governo federal, enfrenta este ano o revés do ajuste fiscal, como outros programas sociais que nos últimos tempos têm sido fundamentais para o enfrentamento de uma seca histórica na região, que deve se estender pelo menos até 2018, segundo previsões do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Em setembro, a ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello, anunciou R$ 100 milhões para o programa até agosto de 2016, o que deve viabilizar mais 31 mil cisternas, mas esse recurso é a metade do que foi previsto na proposta orçamentária para o próximo ano, enviada pelo governo ao Congresso. E mesmo com R$ 200 milhões o programa ainda sofre cortes, já que em 2013 ele superou a marca de R$ 350 milhões, viabilizando cerca de 100 mil reservatórios. “Estamos ainda trabalhando com recursos de 2014; recursos novos para o acesso a água em 2015 não existiram, o ajuste fiscal realmente segurou esses recursos”, afirma a coordenadora Valquíria Lima, da Articulação para o Semiárido (ASA), organização não governamental que executa o programa.
“A única coisa que deu certo no semiárido em séculos é essa captação de água de chuva por meio da articulação da sociedade civil”, afirma o membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Roberto Malvezzi, que luta pelo direito à água em Juazeiro, na Bahia. Por conta do sucesso do programa, foram minimizados nos últimos 12 anos, e em alguns locais até eliminados, problemas seculares como os movimentos migratórios em função da escassez de água, os saques em busca de alimentos e a mortalidade infantil. “Como é que um governo que diz defender direitos humanos faz isso em nome do ajuste fiscal”, indaga Malvezzi, para quem os cortes em programas sociais “representam pouco dinheiro diante dos R$ 180 bilhões que o governo está prometendo para o Agronegócio”.
Outro programa destinado à instalação de cisternas, mas voltado à água para o plantio de alimentos, também encara os prejuízos do ajuste. “Houve apenas um aditivo para o programa de água de produção, um aditivo de recursos do ano passado, que a gente está em execução”, diz Valquíria, destacando que esse recurso, de R$ 75 milhões, deve ter liberados neste ano cerca de R$ 6 milhões. Ela também diz que dos R$ 100 milhões anunciados pela ministra em setembro a parcela inicial de investimento deve ser de R$ 15 milhões.
Por conta do cenário de ajuste fiscal que comprime também outras frentes de inclusão social, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), voltado à agricultura familiar e que sofreu corte de 65% neste ano e também enfrentará essa situação em 2016, e os cortes no setor de saúde, na reforma agrária e até mesmo no orçamento do Instituto Nacional do Semiárido (Insa), órgão de pesquisa ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação (MCT), os movimentos populares que atuam no semiárido realizaram uma mobilização com 20 mil pessoas em Juazeiro e Petrolina em 17 de novembro.
Da mobilização, surgiu um documento assinado, além da ASA, pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA); Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA); Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB); Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag); Federação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf); Movimento dos Sem Terra (MST); Marcha Mundial das Mulheres; Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste (MMTR-NE) e Levante Popular da Juventude.
“Exigimos que sejam retirados do bojo do ajuste todos os cortes que dizem respeito às políticas sociais, indispensáveis para manter os programas, ações e sua amplitude, capaz de atender às demandas da população. Sem a implementação forte e intensa destas ações e políticas, dificilmente conseguiremos nos manter fora do Mapa da Fome da ONU”, afirma o documento, destacando o combate à fome como uma das principais realizações da sociedade brasileira nos últimos 12 anos. “Por isso, vamos lutar e defender a manutenção e ampliação de nossos direitos e das políticas públicas que conquistamos com muito sofrimento. Não vamos permitir o retrocesso, a volta da fome e da miséria no Semiárido e no Brasil.”
Transposição e preocupação - A situação de crise de água no semiárido é tão drástica que no momento em que o governo federal comemora a realização de perto de 70% da obra de transposição do rio São Francisco, as comunidades simplesmente não veem como celebrar essa marca, já que transposição parece ameaçada pelo risco de morte do principal rio da região. De uma vazão histórica de 3 mil metros cúbicos por segundo, o rio apresenta atualmente apenas 900 metros cúbicos, de acordo com Malvezzi, da CPT. Na barragem de Sobradinho, o nível da água está em 2,5%. O nível médio de água nos reservatórios do semiárido está em 17%. “A situação do rio é alarmante, porque este ano houve até nascente que secou, isso nunca havia acontecido, em várias cidades e regiões a situação é gritante”, afirma Valquíria.
De acordo com as entidades mobilizadas, é urgente que as autoridades tenham sensibilidade para a revitalização do rio São Francisco, restabelecendo suas nascentes, matas ciliares e eliminando as irrigações predatórias. Os movimentos defendem que todos os processos de retirada de água do rio sejam bloqueados, para que sua produção seja voltada apenas ao consumo humano e animal. As irrigações absorvem cerca de 70% do consumo de água. O pleito dos movimentos conta com respaldo da Lei 9.433/97, que prevê prioridade para o consumo humano e dessedentação animal em caso de escassez no rio São Francisco.
Os movimentos também estão combatendo um projeto mirabolante, defendido pelas mídias das cidades do semiárido, que é a transposição das águas do rio Tocantins para o São Francisco, uma proposta “absurda e desprovida de senso críticos”, segundo o documento que os movimentos pretendem entregar à presidenta Dilma Rousseff. “Nós estamos tentando ainda uma audiência para que a gente coloque a situação do semiárido, que todas as conquistas não podem retroceder, pois o nosso lema é 'semiárido vivo, nenhum direito a menos', e a gente espera também que esse mínimo seja garantido em 2016”, afirma Valquíria.
Fonte: Por Helder Lima, da RBA