Entrevista
Quando perceberam que teriam que ser revistados pela polícia e enfrentar uma longa fila para adentrar na sessão solene em “homenagem” aos povos indígenas que ocorreria na Câmara dos Deputados, os representantes do povo Tupinambá, vindos do sul da Bahia, decidiram bater em retirada. “Uma casa, quando vai receber para uma sessão solene, não tem de humilhar ninguém dessa forma”, criticou Babau Tupinambá. Junto com seu povo, Babau negou-se a participar da solenidade ocorrida durante o 11º Acampamento Terra Livre (ATL)*, que aconteceu no mês de abril em Brasília.
Babau é cacique da aldeia de Serra do Padeiro, localizada na Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia. A Serra do Padeiro é uma das muitas comunidades indígenas que tiveram que buscar alternativas para sobreviver frente à violência cotidiana e à morosidade do Estado brasileiro.
Como outras comunidades Guarani-Kaiowá (no Mato Grosso do Sul) e Kaingang (no Rio Grande do Sul), por exemplo, o povo Tupinambá cansou-se da marginalização e da miséria e partiu, em 2004, para a retomada de partes de seu território tradicional no interior da TI Tupinambá de Olivença, cujo processo demarcatório também iniciou naquele ano. A delimitação da TI Tupinambá de Olivença – estimada em 47 mil hectares – foi concluída em 2009 e, desde então, aguarda a expedição da Portaria Declaratória do Ministério da Justiça, emperrada por decisões políticas do governo federal. Enquanto isso, a Polícia Federal e a Força Nacional de Segurança chegaram a ser enviadas para realizar ações de reintegração de posse contra os indígenas na área, o que resultou em diversos relatos de violações contra os indígenas.
Nesse processo, mais de vinte fazendas foram retomadas apenas na área da Serra do Padeiro, e muitas das áreas no interior do território indígena de Olivença, já reconhecido como tradicional do povo Tupinambá, encontram-se ainda sob a posse de não-índios e sob o poder de fazendeiros que não hesitam em contratar jagunços e comandar torturas, atentados e assassinatos contra os indígenas.
Durante o ATL, em Brasília, Babau Tupinambá, uma das lideranças ativas nesse processo de retomada, concedeu a entrevista a seguir, em que comenta alguns dos desdobramentos do acampamento que reuniu mais de 1500 indígenas de todo o Brasil durante quatro dias na Esplanada dos Ministérios.
A mobilização ocorreu num momento que é, talvez, o mais adverso enfrentado pelos povos indígenas desde a promulgação da Constituição de 1988. Por um lado, o governo Dilma – o que menos demarcou terras desde a redemocratização – mantém as demarcações paralisadas, por compromisso com a agenda do agronegócio. Por outro, a bancada ruralista avança com as tentativas de retirada de direitos dos povos indígenas, vistos como inimigos do agronegócio e limitadores da expansão das fronteiras agrícolas. Dentre os projetos prioritários dos ruralistas, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 215), que pretende passar do Executivo para o Legislativo a atribuição de demarcar terras indígenas, é o risco mais iminente de retrocesso. Enquanto isso, decisões recentes da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) desconsideram as violações sofridas pelos indígenas durante a Ditadura e aceitam recursos de fazendeiros para processos demarcatórios já concluídos.
Na entrevista, Babau também falou sobre a situação do povo Tupinambá, a relação com o Estado brasileiro e a prisão que sofreu em 2014, quando iria levar ao Papa Francisco, no Vaticano, um relatório denunciando as violações contra os direitos humanos sofridas pelos povos indígenas do Brasil. Na ocasião, Babau foi impedido de retirar seu visto e ficou sob custódia da Polícia Federal, em função de um mandado de prisão expedido dois meses antes pela Justiça da Bahia e motivado por uma denúncia de assassinato, a qual foi caracterizada por Babau como perseguição política.
Para se ter uma ideia da situação de insegurança e constante violência a que estes povos indígenas estão submetidos, vale lembrar que, desde a data em que a entrevista foi concedida, duas lideranças indígenas foram assassinadas na Bahia (entre elas um Agente de Saúde Indígena do povo Tupinambá) e uma no Maranhão, além de um atentado com fogo que aconteceu contra uma comunidade Tupinambá, também na Bahia. A indignação e inquietação de Babau não são frutos do acaso.
Eis a entrevista.
Babau, em uma fala tua, tu comparaste a PEC 215 com a primeira lei colonial brasileira. Por quê?
Quando a coroa portuguesa chegou no Brasil, dividiu o Brasil em capitanias hereditárias e, ao entregar aos donatários essas capitanias, junto veio uma lei, uma regra para que eles provassem que eram leais à coroa portuguesa, então, tinham por obrigação matar todos os índios Tupinambá que eles encontrassem dentro das capitanias. Então, é uma sequência de leis, de regras para matar e exterminar um povo.
Porque uma foi taxativa, disse: “mate”. A outra não tá dizendo “mate”, mas o efeito é o mesmo, vai expulsar da terra, tirar da terra, então é a PEC da morte. A ordem de Portugal era matar os Tupinambá para tomar terra, não é isso? E a PEC vai fazer o quê? Se não vai ter terra demarcada, se eles vão rever as terras demarcadas, então, é a mesma lei, eles só mudaram o viés. Você não sabe que aqui no Brasil eles não chamam o cara de ladrão, chamam de corrupto, que ele “fraudou”? A PEC assassina é a mesma coisa, só não diz “mate”, mas o efeito é o mesmo.
Na situação da PEC ser aprovada, quais seriam as consequências disso?
As consequências, se essa PEC passa… o povo brasileiro é um povo ordeiro, principalmente nós, índios. Mas não tem outro jeito a não ser ir para a guerra, querendo ou não, os índios vão ter que formar guerrilha. Se é pra morrer, tem que morrer lutando, não sentado. Não vamos deixar tomarem o nosso país, esse agronegócio, seja quem for. Nós, indígenas, temos a obrigação e o dever de defender a nossa vida e a existência dos animais e da floresta. Nós só existimos se isso existir. Se vão mexer, vai ter que mexer com a vida no todo e ainda vão tentar também tirar a vida.
Ano passado aconteceu uma situação contigo em que tu estavas indo levar um relatório para o Vaticano e tu foste impedido de ir pela Justiça. Queria saber a tua versão, o que foi que aconteceu?
É mais uma questão fraudulenta, das armações políticas aqui desse país. Eu tirei esse bendito passaporte, em um dia nada constava na minha ficha, no dia seguinte apareceram quatro mandados de prisão. E o último que ficou, inicialmente, era que eu era assassino, matei uma pessoa. Depois, se chegou à conclusão de que eu nem conhecia as pessoas. Como eu vou matar quem eu nem conheço e a mais de 60km da minha aldeia?
E por que tu achas que aconteceu essa armação e que tu foste impedido de viajar?
Ah, inclusive alguns parlamentares aí citaram, como que podia, eles, parlamentares, não foram convidados pelo papa, como que um cacique ia ser convidado pelo papa, que eles não podiam deixar sair do país para difamar, coisas assim.
E tu estavas levando um relatório para o papa?
Eu ia não só levar o relatório, mas eu ia falar ao papa – e falei isso pro Marcelo Veigas, do Ministério da Justiça – todas as atrocidades que acontecem aqui no Brasil com os povos indígenas do país inteiro, eu ia falar tudo. E uma hora dessas eu vou falar.
Observando de maneira mais geral, como tu vês a situação dos povos indígenas no Brasil hoje?
A situação que eu vejo hoje é caótica, porque o povo reclama, mas muitos não querem agir. Um povo ou outro reage, mas não todos. Todos falam em agir, mas na prática tão ainda se segurando no Bolsa-Família, e tem que abandonar esse negócio. O índio tem que ir pra terra, produzir dentro da sua cultura, no regime cultural do seu povo, e sair dessa de ficar recebendo cesta básica, Bolsa Família, esquece isso. Nosso povo é um povo independente, um povo livre, não submisso a um recurso banal desse, de cesta básica. Tem que se livrar disso, ir para a luta e garantir o direito à vida da floresta, dos animais e de nós índios.
E especificamente sobre os Tupinambá, qual é a situação de vocês hoje?
Nós, o povo Tupinambá, hoje estamos ocupando nosso território, [independentemente] se eles demarcaram e vão publicar a portaria declaratória ou não, o certo é que a gente expulsou os fazendeiros de dentro, e estamos lá, e para tirar nós tem que matar nós. Então, nós não temos o que fazer. Na questão histórica, nós estamos dentro de uma terra que foi o Ministério da Guerra que demarcou em 1926 e era de cinquenta léguas. E agora, estamos apenas reivindicando dentro dessa terra 47 mil hectares e está essa confusão toda. Nós não entendemos, mas a gente sabe que a terra é nossa, já assumimos, a aldeia Serra do Padeiro já assumiu toda a terra, e cabe ao governo indenizá-los, aqueles que nós tiramos, e publicar a portaria declaratória, fazer a parte que é do governo. A nossa parte nós já fez, já ocupou tudo.
Os Tupinambá foram um dos primeiros povos a entrar em contato com os colonizadores portugueses. Queria saber: nesses mais de 500 anos de contato, na tua visão sobre a relação com o Estado brasileiro, o que mudou?
Nós Tupinambá nunca conseguimos lidar com o Estado brasileiro. Como você viu, a primeira lei do país foi criada para matar Tupinambá. Os portugueses disseram: “olha, Tupinambá é inimigo da coroa. Mate”. Depois, mandaram: “todos os colonos que estiverem no país têm que, por lei, matar os Tupinambá”. E nós sobreviveu. Então, os colonos em muitos anos nunca tiveram capacidade de guerrear com os Tupinambá, então eles mandaram o exército, a polícia, e continua até hoje, você vê que a gente está lutando, mas fazendeiro nenhum nunca foi na terra Tupinambá, é a polícia que eles mandam. Então, o governo sempre foi o entrave para os Tupinambá.
Durante o Acampamento Terra Livre houve uma reunião com o Eduardo Cunha (PMDB-RJ, presidente da Câmara dos Deputados), uma sessão na Câmara dos Deputados e outra no Senado. Qual a tua avaliação desses espaços e qual o saldo que fica deles para os povos indígenas?
Olha, eu vejo como saldo zero. Primeiro que é um enrolation, abrir a porta e sentar na mesa significa que o outro te ama ou que vai fazer o que você quer. E isso é só enganação pra encher o ego do índio para dizer que esteve no Congresso. Por isso que nem lá eu fui. Ontem, eu fui com essa do Eduardo Cunha, que foi uma reunião privada, onde nós pudemos falar olho a olho com ele o que a gente acha, o que a gente pensa, e ele também falou, mas solenidade, o que nós temos de solene? 600 índios mortos, presos, torturados, violentados, duas terras indígenas julgadas pelo Supremo contra, então, o que nós temos? Lá eu não fui, não vou, se vamos é para falar de igual para igual, não para sentar como um cachorrinho abanando o rabo para quem quer matar o pobre cachorrinho. Isso não dá, isso nunca prestou e isso tem tudo para acabar mal com os povos indígenas.
O correto com essa multidão que está aqui era nós ficar de cá e dizer para o governo o que nós precisamos, o que nós queremos, e nós sabemos o que queremos: queremos nossos direitos todos sendo aplicados nesse país, que realmente eles mandem recurso para a Funai, para ser aplicado, que criem um ministério para os povos indígenas atuar, com um índio ministro, que aprove a lei do deputado Miranda [PEC 320, proposta pelo deputado federal Nilmário Miranda (PT-MG)]que dá direito a nós ter pelo menos cinco deputados federais aqui dentro, aí sim, aí dá autonomia, dá direito e você pode entrar de igual para igual.
Agora, chegar ali na porta do Congresso, como você viu hoje, mais de 600 policiais metendo a mão na bunda dos índios, passando a mão para depois entrar, nas mulheres a mesma coisa, nós Tupinambá da porta voltamos, nós não nos sujeitamos a uma humilhação dessas, porque uma casa quando vai receber para uma sessão solene não tem de humilhar ninguém dessa forma. E se é a casa do povo, por que a polícia tá primeiro? Então, achei tudo de ruim, os parentes terem se humilhado e aceitado uma coisa dessas.
E sobre o futuro, quais são, na tua visão, as perspectivas e o que tu acha que precisa para que os direitos dos povos indígenas se concretizem daqui para a frente?
Eu, como Tupinambá, vejo um futuro bom, porque quando fica muito ruim todo mundo vai ter que reagir, e quando reage a coisa melhora. Agora, sem reação, só resta a morte. Então, todo mundo faz um caixãozinho, entra e seja enterrado logo. Como eu sei que ninguém vai ter coragem de se autoenterrar, então, acredito que o povo vai reagir e vai ficar tudo beleza, tudo bom para o futuro. Eu vejo lá no Rio Grande do Sul os parentes reagirem, estão nas terras, povo que tá sempre guerreando eu sei que vai continuar assim e não vai se deixar abater. Em quinhentos anos de luta não nos deixamos abater, então não é agora que vamos deixar.
*A revista o Viés, convidada pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e pelo grupo de Apoio aos Povos Indígenas (GAPIN) para acompanhar o 11º Acampamento Terra Livre, realizou na ocasião uma série especial de reportagens sobre alguns dos principais temas em debate durante a mobilização. Para ler as reportagens, acesse.
Fonte: Por Tiago Miotto
Do Jornalismo B