"Termina o IV Congresso da CPT e eu volto pra casa repetindo o que ouvi: ah! se não fosse a CPT!". Confira análise da pastora metodista, Nancy Cardoso, agente da CPT Bahia, sobre os clamores que surgiram no IV Congresso da CPT.
(foto: Joka Madruga)
O povo diz assim como quem fala de uma caneca velha, boa de beber água... ou qualquer outra coisa, então, um café. Uma caneca muito usada, marcada pelo tempo. Desse imaginário vivido no IV Congresso retomo uma perspectiva esperançosa para o trabalho pastoral e um chamado de atenção. A CPT não é caneca! ... é a vontade de beber!
Retomo um texto antigo sobre movimentos sociais porque ele vai se confirmando.
De todos os objetos, os que mais amo são os usados.
As vasilhas de cobre com as bordas amassadas,
os garfos e as facas cujos cabos de madeira
foram colhidos por muitas mãos.
Estas são as formas que me parecem mais nobres.
Estes ladrilhos das velhas casas
gastos por terem sido pisados tantas vezes,
estes ladrilhos onde cresce a grama
me parecem objetos felizes.
Impregnado do uso de muitos,
a miúde transformados, foram aperfeiçoando suas formas
e se fizeram preciosos porque tem sido apreciados muitas vezes.
Agradam-me, incluso, os fragmentos de esculturas com os braços cortados.
Viveram também por mim.
Caíram porque foram trasladados.
Derrubaram-nas, talvez, porque estavam muito altas.
As construções quase em ruína parecem todavia projetos sem acabar,
grandiosos; suas belas medidas podem já imaginar-se,
mas ainda necessitam de nossa compreensão.
E além do mais já serviram, inclusive já foram superadas.
Todas estas coisas me fazem feliz.
Bertold Brecht
Os movimentos sociais e as organizações dos/das trabalhadores/as são objetos usados, impregnados de uso e, por isso mesmo, plenos de sinais do tempo. Objetos como utensílios, coisas de usar e precisar, coisas de fazer caber a água, a farinha, o pão. No poema de Brecht as bordas amassadas das vasilhas, a madeira do cabo da colher já gasta são consideradas “materiais nobres” porque usados, gastos. Por isso... amados!
O trânsito, o tráfego de ser pisado tantas vezes num mesmo lugar desgasta os ladrilhos “das velhas casas”; entre as fissuras do tempo e do uso a grama se insinua: e são ladrilhos felizes. Gastos ladrilhos fissurados e felizes.
O “uso de muitos” transforma e aperfeiçoa formas, tantas e tantas vezes visitados, movidos os objetos usados se fazem preciosos. Nobres e preciosos não porque novos e inovadores. Nobres e preciosos porque persistentes, remanescentes, insistentes.
O poema vai se ocupar também de objetos que existem de forma fragmentada, que já foram outra coisa “com braços” e inteireza... mas agora se apresentam assim como se alguma coisa faltasse – alguém diria: mas “viveram por mim”! Foram trasladados! Sofreram mudanças! Foram derrubados! Caíram! Existiram! Ocuparam espaços! e por isso mesmo foram derrubados... e continuam a ser amados.
Uma terceira categoria são as construções em ruína que necessitam da nossa compreensão: se foram belas e de grandiosas medidas no passado se parecem agora com projetos interrompidos, projetos sem acabar. E aí? Serviram! São formas que responderam às pretensões de um tempo e... foram superadas, mas continuam projetos inacabados e oferecem espaço para a imaginação: suas belas medidas! Os desejos projetados e sua provisoriedade.
“Todas estas coisas me fazem feliz.”
O poema indica a história como critério de avaliação: não a história dos grandes feitos e dos grandes nomes, mas a história das cotidianas coisas em seus usos. Assim também os movimentos sociais são continuidades, são acúmulos de demandas. As organizações populares e suas bordas amassadas. A madeira gasta das formas políticas ao longo da história que não podem ser avaliados por seus sucessos... mas pela impregnação de uso. Foram muitas mãos, muitas vidas que aperfeiçoaram as lutas políticas e de tão pisados pelo próprio povo em suas assembleias, marchas e manifestações deixaram marcas organizativas. Vencidos, violentados, trasladados: viveram também por mim e pelo povo organizado nos movimentos, acompanhados nas pastorais. Resgatar os projetos inacabados, derrubados de tão altos. As belas medidas da luta histórica de nossos povos ainda precisam de nossa compreensão... também aquelas que já serviram e foram superadas.
Mas as coisas... as necessárias não tem paz!
Nas palavras de Cláudia Korol[1]:
Dando una nueva vuelta desde el punto de vista de los vencidos y vencidas, pero afirmándome en la perspectiva latinoamericana sobre la memoria, quisiera agregar con Roque Dalton[2], que “los muertos están cada día más indóciles”.
Cada día más indóciles, cada día más rebeldes… y así como el enemigo no ha dejado de vencer, los pueblos no han dejado de resistir y crear nuevos espacios y posibilidades para que vivan los sueños de cambiar el mundo, y se vayan materializando en transformaciones sociales populares. Los muertos y muertas, los caídos y caídas en nuestra América Latina, son una realidad lacerante que sigue escribiendo día a día la historia. Porque el capitalismo en estas tierras es hijo del colonialismo, del imperialismo, del patriarcado, de las muchas formas de violencia y de dominación; y también es hijo de la impunidad y del olvido, del ocultamiento, de la tergiversación de la memoria realizada por los vencedores.
Pensar América Latina es aprender a destejer la historia oficial, para recuperar las señales casi imperceptibles que cada gesto popular de resistencia a la opresión inscribe en nuestra subjetividad, guarda en nuestros cuerpos, y siembra en nuestras tierras.
Os povos têm suas expressões históricas e culturais de si mesmos que se expressam e se organizam de forma plural e diversa em “movimentos sociais”. Os motivos e os porquês da organização “de movimentos” ou “em movimentos” constituem um repertório de itens materiais e de subjetividades que vão desde as questões vitais de sobrevivência coletiva até o enfrentamento das estruturas políticas e econômicas. São estas materialidades e afetividades que alimentam as lutas históricas de resistência e libertação no continente latino-americano.
Marcados por um processo violento de luta de classes na periferia do capital internacional, estes movimentos e seus modos de vida transitam entre o originário e o moderno, o antigo e novo, o valor e o não-valor como conflito permanente e criativo.
Os movimentos sociais não são “idealizações”, mas articulam a materialidade cotidiana das formas populares de poder e de disputa. As condições objetivas e subjetivas de organização não se dão em vazios políticos e vivenciais, mas reúnem e convivem com contradições, ambiguidades. São simultaneamente práxis e exercício de identidade que coloca os/as pobres na fronteira entre o real e o utópico.
Por tudo isso, as formas organizativas não correspondem a nenhum modelo, não se comportam com um elenco de virtudes pré-estabelecidas, convivem e estranham formas equivocadas de poder: as bordas amassadas dos movimentos. Impregnados do uso de muitos os movimentos sociais sofrem a ação do tempo e sofrem metamorfoses desejadas ou não.
Mas a CPT não é movimento social! Mas vive por eles, com eles.
E isso ficou muito claro e evidente nas falas e testemunhos dos/das trabalhadores/as durante o IV Congresso. A CPT esteve presente, não arredou o pé e não quis ser o que não é: movimento!
A CPT é Comissão Pastoral e – bem ou mal – se manteve neste lugar de presença e convivência com os trabalhadores/as e seus movimentos e organizações. Não é um “não lugar”, este da CPT! É da esfera do tempo, da qualidade de tempo de permanecer, de acompanhar os usos, de vivenciar as quebras e costuras das lutas dos/das trabalhadores/as.
Alguém disse: a CPT não dá linha… a CPT alinhava.
Junta isso com aquilo, permanece. Fica na hora boa ou na ruim, permanece. Reza no seco e no molhado: permanece… e é esse tempo de permanecência que caracteriza o trabalho pastoral.
A rebeldia é a permanência da memória.
A esperança é a permanência da rebeldia.
A CPT é do exercício e da mística de permanecer: mas nem é ela mesma a rebeldia nem a esperança.
Estes limites do trabalho pastoral são o que temos de autêntico e honesto para oferecer e a mística de amadurecer amores radicais de se entregar pelo amor do mundo, um rio, uma floresta, a terra e seus seres. A CPT não é a caneca… nem a agua é só a sede, a vontade de beber. Mas a caneca de muitos usos e a fonte que mata a sede é o povo quem traz.
A CPT não é semente nem terra, mas é terra debaixo da unha: marca do exercício de semear e esperar pelos frutos no quintal.
[1]Intervención realizada el 4 de junio en el Auditorio del Instituto Sedes Sapientiae, en el curso organizado por la Escola Nacional FlorestanFernandes, el CEPIS (Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae) y el Departamento de Jornalismo da PUC-SP, con el apoyo de Brasil de Fato y Expressão Popular. Versión corregida en julio del 2009. mimeo.
[2]Roque Dalton, poeta y guerrillero salvadoreño