Entrevista
A publicação Conflitos no Campo Brasil é realizada há quase 30 anos pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), organização ligada à Igreja Católica que trabalha na defesa de mulheres e homens do campo desde 1975. Fruto de pesquisas que resultam em um amplo banco de dados sobre o tema, os relatórios anunciam o protagonismo dos povos do campo nesses conflitos. Para a CPT, protagonizar os conflitos é atuar no contexto da resistência, no sentido de protagonizar a luta pelos seus direitos.
Para compreender um pouco mais sobre o que esses dados revelam e o significado de realizar e sistematizar essa análise, Mariana Reis, da equipe da Asacom, entrevistou Plácido Jr., geógrafo e agente pastoral da CPT NE II. Confira a seguir:
A CPT realiza o Relatório Conflitos no Campo Brasil há 29 anos. Qual a importância de sistematizar e publicizar esses dados?
Mesmo antes de começar a publicar os relatórios, a CPT já estudava conflitos no campo. Decidiu-se publicizar como forma de denúncia pelo que vinha acontecendo no campo brasileiro contra indígenas, quilombolas, pois essa violência no campo não chegava à sociedade. Então, a importância de registrar e publicizar foi de tornar público o que a grande mídia não mostrava, o que o governo não tinha interesse de mostrar. Também havia a intenção do anúncio, de anunciar o protagonismo dos povos do campo, para que essa realidade possa ser modificada.
"A violência no campo tem cor, idade, sexo e classe", afirma Plácido Jr. | Foto: Arquivo pessoal |
Olhando para a história registrada desde o primeiro relatório, qual a narrativa principal dos conflitos agrários no Brasil? Tivemos mudanças significativas em relação aos conflitos agrários no Brasil nos últimos 29 anos?
Ao longo desses anos tivemos variações. Na década de 1980, o Brasil estava envolvido na Revolução Verde, a Amazônia era o grande cenário de atuação das grandes transnacionais. Nos anos 1970, quando é criado o Conselho Indígena Missionário (CIMI) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), os povos mais violentados eram os povos indígenas e os ribeirinhos. Esses eram os grandes protagonistas naquela época, as populações tradicionais. Ao mesmo tempo temos o grande capital entrando no campo e o processo de modernização do Estado brasileiro. Essa era a conjuntura agrária daquele momento.
Em 1984, a Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado de Pernambuco (Fetape) lança a publicação Açúcar com Gosto de Sangue, pois nesta década surgiu o Pró-Álcool que estimulou a produção de cana-de-açúcar em todo o Brasil, o que fez com que muitos posseiros foram expulsos para dar vez à expansão da cana.
Posteriormente temos outro processo, que veio com a luta pela terra, com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). São novos sujeitos que vão surgir na década de 1990, com os sem-terra, e a CPT com seu registro vai observando essas transformações.
Atualmente, nos últimos cinco anos, são as comunidades tradicionais que voltam a protagonizar os conflitos no campo brasileiro, porque o Brasil passa por um novo momento de desenvolvimento e não são mais os sujeitos do latifúndio, mas outros sujeitos – como o agronegócio, as mineradoras, as grandes obras como Suape, Transposição do São Francisco, Transnordestina, Cinturão das Águas (no Ceará), os processos imobiliários no litoral. Atualmente, mais de 50% dos conflitos de campo brasileiro são protagonizados pelas populações tradicionais. A gente percebe uma mudança na dinâmica da luta pela terra e os sujeitos vão se adaptando de acordo com a realidade socioeconômica do país.
De que forma os conflitos pela terra atingem povos indígenas e comunidades tradicionais no Brasil? Como essas populações resistem e lutam pelo território?
Hoje observamos as populações tradicionais no processo de luta pela terra, mas não é apenas isso. No Brasil, têm aumentado os conflitos territoriais, que é muito maior que a luta pela terra. Significa a luta pelo sentido de estar na terra, pela forma de se organizar na terra. É uma forma de resistência muito mais no sentido de re-existência, no sentido de voltar a existir, uma nova forma de ser, de estar, de se relacionar. Essa forma de ser, de estar e de relacionar está sendo ameaçada pelo agronegócio brasileiro e pelo grande capital que têm se apropriado não só das terras, mas dos bens naturais, da água, dos minérios, da biodiversidade. Quem disputa é o setor da economia verde, o setor dos cosméticos... Mais do que terra para produzir, a luta é para garantir a vida humana, dos animais e das plantas.
Qual o perfil dos atingidos pela violência no campo? Ela atinge, indiscriminadamente, homens, mulheres, jovens e crianças?
Cinquenta por cento dos assassinatos no campo em 2013 foram de indígenas. Então, as comunidades tradicionais seguem sendo as mais atingidas. Mas há várias formas de violência que são invisibilizadas. Há famílias acampadas vivendo há dez anos embaixo de uma lona, pescadores artesanais impossibilitados de tirar o seu sustento, agricultores e agricultoras sendo expulsos de seus roçados. Negar o direito à educação contextualizada, com o fechamento das escolas rurais, também é uma violência. Sem falar na violência que as mulheres passam ao verem seus maridos migrar, tendo de cuidar sozinhas de seus filhos, ficando endividadas: são as viúvas da terra. A violência no campo tem cor, idade, sexo e classe. No Semiárido, alguns dos conflitos agrários mais noticiados recentemente se referem a famílias despejadas devido a grandes obras como construção de barragens, exploração de energia eólica e atuação de empresas ligadas ao agronegócio. Outras tradicionais bandeiras de luta dos povos dessa região são, ainda, o acesso à terra e o acesso à água, na perspectiva da convivência com o Semiárido. O que a pesquisa revela sobre o Semiárido?
Nossa pesquisa não faz o recorte específico para o Semiárido, mas os dados da CPT mostram que os maiores conflitos acontecem no Nordeste brasileiro e no sertão, e é evidentemente mais forte em relação à mineração – que leva à desapropriação de terras – e à luta pela água, com Sobradinho, Itaparica, os perímetros irrigados (como a situação da Chapada do Apodi), as grandes obras de combate à seca. Essas obras ameaçam os projetos de vida dos povos do campo.
Então, existe uma relação entre os novos conflitos no campo e o êxodo rural?
As condições dos novos conflitos no campo não permitem que se fique na terra. A diferença do êxodo rural de antes para o dos dias atuais é que a reforma agrária, a demarcação das terras dos povos quilombolas e as alternativas de convivência, como o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), são possibilidades que fazem com que as pessoas permaneçam ou voltem a viver no campo.
Anteriormente, você citou a publicização dos dados da CPT como alternativa ao que a mídia não mostra. Como você analisa o papel da grande mídia na abordagem sobre conflitos do campo?
A grande mídia tem lado, interesse e posição. A posição é da burguesia, atrelada aos interesses do grande capital, de invisibilizar os povos no campo, de invisibilizar o que os agronegócios cometem em relação aos povos do campo. Invisibiliza também o processo de estrangeirização das terras brasileiras, em que grandes empresas internacionais estão se apropriando do território nacional e, ao mesmo tempo, ao invisibilizar esse processo de concentração de terras, de violência no campo, a grande mídia promove a criminalização dos movimentos sociais, dos povos que estão em luta. Ao se levantar, ao serem contra o processo desenvolvimentista do país – de se apropriar do solo, dos rios, do ar – e ao se reafirmarem como povos camponeses e como identidade, esses povos do campo entram em conflito com o modelo de desenvolvimento em curso e são tratados de forma criminosa. Qualquer mobilização em defesa do território indígena, quilombola, ou da reforma agrária, é uma afronta ao grande capital e por isso é tratada como crime.
Quais os caminhos para lutar pelo direito à terra e às condições para atividades camponesas e agroecológicas no cenário do agronegócio do país?
Hoje, há uma tendência de maior extermínio do povo do campo. Há uma avalanche de mudanças na legislação, no código florestal, a reforma agrária está paralisada... Isso não é natural, é um projeto pensado pelas grandes elites dos estados brasileiros. Os desafios que temos hoje são macro, de lutas contra o capital. As transformações acontecem no cotidiano, então é preciso mudar as relações. A agroecologia é um desses caminhos.
Fonte: ASA Brasil