Artigo
Por Rafael Villas Bôas*
A paisagem monótona aos lados da maioria das estradas brasileiras, marcada pela monocultura de commodities agrícolas, com quase nada de vegetação nativa, amplos desertos verdes monocromáticos desprovidos de gente, poderia ser diferente se há 50 anos o destino do país não fosse golpeado por uma ditadura civil militar. Naquele momento, estavam em pauta, com forte apoio popular , as reformas de base , com destaque à Reforma Agrária. A proposta previa desapropriação, sem remuneração aos latifundiários, das grandes propriedades improdutivas e das margens de 10 km de cada lado das BRs federais, para fins de Reforma Agrária. Se estivessem próximos das vias de escoamento da produção, os camponeses teriam menos dispêndio financeiro com transporte. O cenário ao redor das estradas seria povoado de gente, de pequenas propriedades, com produção variada de culturas agrícolas, de animais de pequeno porte, para o abastecimento do mercado local, além da subsistência.
Se as mentiras da Revolução Verde, que prometiam sanar a fome do mundo com a produção em larga escala, não tivessem chancelado a expulsão da população do campo, hoje as cidades não estariam tão inchadas e inviáveis, em termos de mobilidade, segregação social, sistemas de saúde e educação inconsistentes. Hoje, não seríamos o país recordista em consumo de agrotóxico por cidadão, mais de 5,5 litros por ano. Certamente, também não estaríamos na vergonhosa posição de um dos países mais desiguais em termos de renda e distribuição de terras, nem deveríamos ser a quarta maior população carcerária do planeta.
O que nos tornamos é trágico, diante do que poderíamos ser. Para naturalizar a violência desse processo de modernização conservadora, foi preciso desenvolver ao extremo nossa indústria publicitária, reconhecida como uma das mais eficazes do mundo, capaz de maquiar e ofuscar o fosso social brasileiro, tornando vendável, inclusive, a imagem da pobreza, em chave bem humorada, asséptica e administrada. A ditadura incentivou a criação de impérios midiáticos privados, que desde então fomentam a desconfiança e o medo contra qualquer forma de organização popular autônoma, e criminaliza os movimentos sociais, ao mesmo tempo em que integram as associações do agronegócio, como a Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG).
É esse sistema de poder, que articula a concentração da terra, o monopólio dos meios de comunicação de massa, o poder político fisiológico e o capital transnacional que hoje vende a imagem de que somos um país bem sucedido, à revelia do país real. Há meio século, a medida da relevância da Reforma Agrária para a democratização do país era proporcional às medidas que a classe dominante nacional e internacional tomaram para impedi-la. O documentário “O dia que durou 21 anos” (Direção de Camilo Tavares, 2012) comprova a preocupação da CIA, da embaixada dos EUA no Brasil e do presidente daquele país, com o potencial da Reforma Agrária desencadear a revolução brasileira, e explicita a ação de articulação do golpe e o apoio logístico armado que os EUA forneceram aos golpistas.
Para não sermos pessimistas, cabe reconhecer que aquela luta deixou herdeiros. Depois de vinte anos da destruição das Ligas Camponesas, surgiu o MST, em 1984. Esse legado, que completa 30 anos em 2014, ainda esta sendo escrito, e se contrapõe à regressão imposta pelo golpe, que também em 2014 completa 50 anos. É tempo de refletirmos sobre que tipo de nação seríamos se não tivéssemos sido impedidos pela força bruta, e de usar nosso poder de imaginar como teria sido o passado para projetar o futuro.
* Professor da Universidade de Brasília. Coordenador do grupo de pesquisa Modos de Produção e Antagonismos Sociais www.modosdeproducao.wordpress.com
** Para rememorar os 50 anos do golpe civil-militar, a Página do MST traz uma série de artigos, entrevistas e matérias ao longo dessa semana, que relacionam o papel da Reforma Agrária e das lutas sociais do campo em torno do golpe de 1964.