Por Luciano Gallas e Patrícia Fachin
Da IHU On-Line
Os avanços no acesso à terra, proporcionados pelas políticas públicas dos governos FHC e Lula, não afetaram a “estrutura da posse da terra” no Brasil. Pelo contrário, a aquisição de “terras públicas” pelo agronegócio “passou a ameaçar, inclusive, áreas institucionalmente protegidas, como unidades de conservação, áreas indígenas e quilombolas”, assinala Gerson Teixeira* em entrevista à IHU On-Line, concedida por e-mail.
Ele informa que a concentração fundiária poderá ser ampliada por conta da Medida Provisória nº 636, a qual liberaliza “a aquisição em definitivo dos títulos de domínio dos lotes dos beneficiários do programa de reforma agrária nas condições dadas de carências materiais de toda ordem nos assentamentos”. E acrescenta: “O fato é que condições concretas e subjetivas nas quais se darão a medida tornam viável a transferência de milhões de hectares de terras que estão sob controle dos assentados”.
Para Teixeira, diferente do que ocorreu no final do século passado, quando a reforma agrária se impunha pelas “dimensões relacionadas à superação das inomináveis anomalias sociais, políticas e econômicas decorrentes da extrema concentração da posse da terra”, hoje ela se impõe como estratégia para garantir a soberania nacional.
“No período recente, por impulsos produtivos ou especulativos do capital internacional, tem aumentado o controle externo da terra no Brasil e em outros países do Sul. O controle da terra pelo capital externo é a via da apropriação das nossas imensas riquezas naturais do subsolo, do solo, e agora do ar, com os mercados intangíveis (tipo carbono), definidos pela Lei de Mudanças Climáticas e pelo Novo Código Florestal”, esclarece.
Na sua avaliação, houve algum progresso na política agrária brasileira nas últimas décadas?
Houve o avanço no acesso de camponeses às terras públicas por meio das políticas de assentamentos, notadamente, nos governos FHC e Lula. Contudo, além de não ter afetado a estrutura da posse da terra, o agronegócio também avançou na apropriação de terras públicas, e nos anos recentes passou a ameaçar, inclusive, áreas institucionalmente protegidas, como unidades de conservação, áreas indígenas e quilombolas.
Na resultante, tem-se a manutenção da extrema concentração da terra no Brasil, que poderá ser ampliada ainda mais a depender das repercussões práticas dos dispositivos da Medida Provisória nº 636, de dezembro de 2013, que liberalizaram a aquisição em definitivo dos títulos de domínio dos lotes dos beneficiários do programa de reforma agrária nas condições dadas de carências materiais de toda ordem nos assentamentos.
Ainda que obviamente não seja este o propósito do governo, que aposta em consequências socioeconômicas virtuosas para um assentado exercendo na plenitude a propriedade da terra, o fato é que condições concretas e subjetivas nas quais se darão a medida tornam viável a transferência de milhões de hectares de terras que estão sob o controle dos assentados.
Também houve a inclusão dos agricultores familiares nas políticas agrícolas, mas sem as devidas diferenciações no fomento produtivo, com vistas a preservar as condições clássicas da produção camponesa, e assim incentivar padrão de consumo diverso do padrão fordista derivado do modelo agrícola produtivista.
Considero como as principais conquistas nesse campo, o Programa de Aquisição de Alimentos e as compras da agricultura familiar para a merenda escolar. Esses dois programas precisam ser fortalecidos e ampliados, pois são fundamentais para o processo de resistência dos camponeses no ambiente de mercado. Inclusive, a depender do alcance desses programas, poderíamos alcançar um objetivo absolutamente fundamental para agricultura familiar e camponesa, que é “desbancarização” do crédito que poderia ocorrer via autofinanciamento como decorrência dos efeitos dos programas em consideração.
Qual é a necessidade de reforma agrária hoje?
Até quase o final do século XX, a reforma agrária se impunha no Brasil pelas suas dimensões clássicas relacionadas à superação das inomináveis anomalias sociais, políticas e econômicas decorrentes da extrema concentração da posse da terra com as suas repercussões no processo de desenvolvimento brasileiro.
A sociedade continua pagando o ônus da continuidade dessas anomalias em pleno século XXI, agora agravadas pelos desdobramentos da hegemonia do chamado agronegócio.
Nos dias atuais, qualquer avaliação isenta e atenta da realidade brasileira, pautada pelos maiores interesses do país, conclui pela relevância ainda mais superlativa da reforma agrária em nosso país.
Aos valores históricos clássicos, em si, já condicionantes do processo de desenvolvimento brasileiro em todas as suas dimensões, agregam-se novos e irrefutáveis atributos estratégicos para a reforma agrária.
A ampliação da participação dos camponeses na ocupação do território rural do Brasil passou a ser fundamental para a soberania nacional. No período recente, por impulsos produtivos ou especulativos do capital internacional, tem aumentado o controle externo da terra no Brasil e em outros países do Sul. O controle da terra pelo capital externo é a via da apropriação das nossas imensas riquezas naturais do subsolo, do solo, e agora do ar, com os mercados intangíveis (tipo carbono), definidos pela Lei de Mudanças Climáticas e pelo Novo Código Florestal
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Além desse argumento, somente com a ampliação das áreas camponesas teremos possibilidade de evitar a destruição absoluta da biodiversidade, a principal vítima do modelo agrícola dominante baseado na homogeneidade e escala, o que projeta ameaças à segurança alimentar. Não obstante, também está dado, como reconhecem altas autoridades da ONU, que a evolução do processo de aquecimento global deverá resultar em profunda crise alimentar em escala global caso mantido o atual padrão de agricultura.
Não há dúvidas sobre a maior capacidade de resiliência da agricultura camponesa às adversidades desse processo, o que requer políticas para a vasta ampliação da base produtiva camponesa. Ou seja, a reforma agrária passa a assumir essa dimensão absolutamente estratégica no presente século.
Como a afinidade entre MST e PT influencia a luta pela terra?
No caso específico dessa relação, o MST se encontra basicamente isolado. Estou convencido de que a maior parte da militância e das lideranças petistas mantém vivos os compromissos programáticos históricos do PT pela reforma agrária. Contudo, a tradução desses compromissos em ações práticas mais arrojadas pela reforma agrária tem sido sobrestada pelas circunstâncias de um governo do PT partilhado ‘além da conta’ por forças muito conservadoras.
Além disso, contraditória e compreensivelmente, o próprio MST teve que reposicionar o nível das lutas sociais pela terra que vinha em um crescente até 2002 para evitar confronto maior com um governo controlado por um aliado histórico, porém pouco diligente na matéria por temor de danos à governabilidade.
Acho, inclusive, que a experiência da difícil sobrevivência nesse ambiente de tensão política já por mais de dez anos refletirá fortemente nos debates e resultados do VI Congresso do MST, que ocorrerá a partir do dia 10 de fevereiro.
E não se trata apenas de um reposicionamento na intensidade das lutas de massa, mas, sobretudo, de mudanças conceituais que serão decisivas para o futuro do MST e da luta pela própria reforma agrária em nosso país. Luta essa que por certo conta com outros atores sociais importantes, todavia, no período histórico recente, sem o peso da atuação do MST.
Afinal, precisamos decantar bem e refletir mais ainda sobre os desdobramentos políticos práticos daquilo que o Movimento vem pregando e que será objeto do Congresso, que é a chamada reforma agrária popular.
Não tenho acúmulo nesse debate do Movimento, portanto, não teria condições de opinar a respeito. Mas entendo que somente teremos êxito no objetivo estratégico (para o país) de enfraquecer o agronegócio, com a ampliação do controle da terra pelos camponeses, combinada com formação e organização desse segmento social.
Sublinho tanto a terra como a formação e a organização política, pois só assim haverá condições de lutas, por exemplo, por outra matriz tecnológica na agricultura; conquista essencial para a população brasileira e fatal para os interesses dos capitais que controlam o agronegócio. Camponês com terra, mas sem algum nível de formação e desorganizado, é agricultor familiar do agronegócio (agronegocinho).
A estratégia em consideração exige capacidades pensantes e de mobilização para a luta, o que o MST tem de sobra. Resta discutir se cuidados em excesso na luta pela terra para a preservação de uma boa sincronia com o governo não acabam, inclusive, prejudicando o próprio governo, por limitar o salto, para um plano estruturante, dos avanços sociais inaugurados desde 2003.
Como a participação do agronegócio na balança comercial brasileira impacta a luta pela terra?
Em que pese as manipulações nesse cálculo, a balança comercial do agronegócio, turbinada pelo boom dos preços das commodities agrícolas desde meados da década anterior, tem sido a “joia da coroa” dos discursos oportunistas dos ruralistas. Junto com as receitas cambiais do mineronegócio, temos a equação que sustenta a opção questionável de uma economia primário-exportadora.
Por 80 bilhões de dólares ficamos reféns políticos de um segmento que envenena os brasileiros, destrói o meio ambiente, viola direitos; que retira do país as enormes vantagens econômicas de se tornar território livre dos transgênicos. Por 80 bilhões de dólares aceitamos que dois produtos nobres do agronegócio respondam por 88% da nossa safra de grãos.
Por via de consequência aceitamos as pressões inflacionárias, fruto das elevadas vulnerabilidades da oferta interna de alimentos que integram a dieta básica da nossa população. Enfim, por 80 bilhões de dólares mantemos o Brasil entre os líderes da concentração da terra em todo o mundo. Conseguiremos ser desenvolvidos nesses termos?
Gostaria de acrescentar algo?
Sim, gostaria de desejar muito êxito ao VI Congresso do MST, e que a partir de então as lutas pela chamada reforma agrária popular tomem o rumo e a intensidade adequados numa relação de parceria com o governo, ainda que mais tensa, contudo construtiva para o bem do próprio governo e do país. Afinal, se os ruralistas, que “têm tudo e mais alguma coisa”, ainda assim encurralam o governo o tempo todo na defesa da ampliação dos seus ganhos seccionais, chegando mesmo a constranger publicamente ministros na Câmara dos Deputados, por que os trabalhadores não animariam a relação com o governo com um upgrade nas lutas em defesa de interesses que, no fim das contas, são de toda a nação?
* Gerson Teixeira é engenheiro agrônomo, especialista em Desenvolvimento Agrícola pela Fundação Getúlio Vargas – FGV/RJ e presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária – ABRA.