Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Ministério Público Federal apresenta provas incontestáveis contra agente da Polícia Federa

Com a testa encostada junto à parede e servindo de sustentação ao corpo ajoelhado, o Tupinambá José Otávio Freitas Filho não podia esfregar os olhos, queimados, depois que um agente da Polícia Federal de Ilhéus, Bahia, lançou jatos de spray de pimenta no indígena, que estava com as mãos algemadas. “Onde estão as armas?”, gritavam os policiais enquanto davam choques elétricos pelo corpo do Tupinambá, incluindo a região genital.           

 

Tapas, chutes, pisões, puxões de cabelo. No dia 2 de junho de 2009, José Otávio e outros quatro Tupinambá da Serra do Padeiro – Osmário de Oliveira Barbosa, Carmerindo Batista da Silva, Ailza Silva Barbosa e Alzenar Oliveira da Silva – sofreram agressões de agentes do Estado na Fazenda Santa Rosa, área retomada pelos indígenas e motivo de intenso conflito com latifundiários e alvo de investidas da Polícia Federal. A situação ficou mais tensa depois que as terras integraram o relatório de demarcação publicado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) meses antes.    

Porém, mais do que vítimas do habitual abuso de poder das autoridades policiais brasileiras, os cinco fazem parte de uma longa lista de indígenas Tupinambá que, desde meados dos anos 1930, sofrem com um crime que não é registrado apenas em regimes ditatoriais, mas também em plena democracia: a tortura – que de acordo com as leis brasileiras é a imposição de dor física ou psicológica por crueldade, intimidação, punição ou para a obtenção de uma confissão ou informação e até mesmo por puro sadismo.      

       
       

“Toda vida foi assim. Antigamente eles pegavam a gente e arrancavam as unhas, rasgavam a carne devagar na faca. Estupravam as mulheres e batiam com facão. Isso não faz muito tempo não; foi agora, umas décadas atrás e continua”, explica o cacique Rosivaldo Ferreira dos Santos Tupinambá, mas conhecido como Babau. Desde a época rememorada por Babau, para além de antes do século 19 até o descobrimento, os Tupinambá nunca se entregaram à dominação. Todavia, o passado parece se repetir – brotando à flor da pele em tortura.    

Inquérito amigo

No Fórum de Itabuna (BA), no último dia 18 de outubro, as cinco vítimas prestaram depoimento ao juiz Federal em parte do procedimento da Ação Civil Pública por Dano Moral Coletivo e Individual movida pelo Ministério Público Federal (MPF) da Bahia contra a União. Os procuradores abriram inquérito também para apurar os responsáveis pela tortura, atestada e comprovada por laudos do Instituto Médico Legal (IML). No entanto, quem investigou a conduta dos agentes federais foi a própria Polícia Federal e o inquérito concluiu o contrário, sendo que nenhum agente envolvido nas torturas do dia 2 de junho de 2009 foi preso.       

Para a procuradora da República Flávia Galvão Arruti, tendo por base o relato dos indígenas e laudos periciais, “é incontroverso que a aplicação de choques elétricos e utilização de spray de pimenta não passaram de violência policial, tortura e desrespeito aos direitos fundamentais. Em outras palavras, a atuação policial foi totalmente contrária aos ditames legais, configurando-se verdadeira tortura”. Os procuradores concluíram que existe tortura quando a autoridade e seus agentes reduzem ou anulam as liberdades individuais, ferindo direitos constitucionalmente assegurados dos cidadãos.  

“Chegaram atirando”

O histórico recente de violências por parte do Estado contra os Tupinambá é vasto. A Polícia Federal sistematicamente tentou, por ordem de decisões judiciais ou outras motivações nem tão claras para os indígenas, despejar os Tupinambá das áreas retomadas. No dia 2 de junho de 2009, a alegação da Polícia Federal é que a ação dos agentes que culminou na denúncia de tortura era para constatar em flagrante que a comunidade estava praticando o delito de esbulho possessório – invasão e expulsão violenta de pessoa de sua propriedade.   

Os indígenas afirmam que os policiais chegaram atirando. A comunidade, por sua vez, não esperava pelo ataque. Ao contrário, aguardava a emissora de televisão para reportagem sobre as lutas do povo. Quando viram carros se aproximando, entenderam que era a equipe de reportagem. Só deu tempo de todos correrem para o mato. Os cinco não conseguiram e nas casas/barcaças de cacau foram pegos pelos policiais. A tortura, conforme depoimentos dos indígenas conseguidos pelo jornal Brasil de Fato, começou ainda no local.    

Torturas

No andar superior estavam José Otávio, Osmário, Carmerindo e Ailza; Alzenar estava no térreo. Quando chegaram, os agentes federais gritaram para que os indígenas colocassem as mãos na parede. Logo após, pediram para que os cinco se deitassem no chão. Um a um foi algemado. Ailza afirmou que os policiais os xingavam de “peste”, “ladrões” e “desgraças”. Por mais de quatro vezes os cabelos da indígena foram puxados, com força. Os homens recebiam tapas na nuca, no rosto, nos ouvidos e nas costas, além de chutes nas costelas e pisões enquanto estavam algemados no chão.   

Conforme Alzenar, depois que foi retirado da barcaça de cacau foi levado por três policiais para uma estufa. Colocado de joelho, passou a ouvir as repetidas perguntas dos policiais sobre a localização das armas dos indígenas. Como a resposta não era satisfatória, passou a receber choques na nuca, na lateral do corpo e abaixo do braço direito. Com os demais não foi diferente. Carmerindo, depois de algemado, apanhou e teve os olhos inundados por spray de pimenta. No chão, foi pisado pelos agentes. Osmário relatou que enquanto faziam perguntas, os policiais mantinham grudado em seu corpo a arma de choque, que o fazia tremer da cabeça aos pés. No laudo do IML, não faltam registros de marcas de queimaduras elétricas nos corpos dos dois indígenas que sofreram o choque: José Otávio e Osmário. Nos demais, hematomas variados.    

Ao final da sessão de tortura, os indígenas foram colocados na carroceria das caminhonetes e levados para a Delegacia da Polícia Federal de Ilhéus. De acordo com a análise dos peritos médicos, presente na denúncia do MPF, “a multiplicidade e a topografia das lesões sugerem terem sido causadas por meio cruel”. “As provas são contundentes. Não resta dúvida de que a tortura de fato ocorreu. Os agentes mesmo assumem terem usado o choque, por exemplo. Porém, dizem que os indígenas reagiram. Como pode cinco indígenas apresentar tamanho perigo para uma quantidade expressiva de policiais muito bem armados, equipados, preparados e que chegaram de surpresa?”, questiona Adelar Cupsinski, advogado que acompanha o caso e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).   

Em análise dos dados periciais, a procuradora Flávia concluiu que o tempo necessário para imobilizar um suspeito por agentes policiais é de 20 segundos. Os agentes utilizaram as armas de choque por quatro minutos. “É evidente que esse excesso (ou que a tortura) ocorreu em razão dos ocupantes serem índios, minoria já perseguida e vista com péssimos olhos pela Polícia Federal”, apontou a procuradora.  

Versão contestada

A Polícia Federal, então, refuta tortura alegando legítima defesa e justifica que foi ao local para averiguar o esbulho possessório, pois se tratava de uma retomada dos Tupinambá das terras fazenda, mesmo que o território estivesse entrado na Portaria Declaratória da Funai como parte da ocupação tradicional indígena comprovada por estudos antropológicos, fundiários e ambientais. O que os Tupinambá apontam vai de encontro com a tese dos policiais.    

No dia 30 de maio de 2009, os indígenas afirmam que policiais federais entraram na área e atearam fogo nas casas. A comunidade correu para a mata e conseguiu permanecer na fazenda. Dias depois acontece o novo ataque que culmina na tortura dos cinco. “Já é de conhecimento público que a Polícia Federal muitas vezes atua com violência excessiva nos problemas envolvendo retomadas das fazendas integrantes de áreas historicamente ocupadas por indígenas. E o presente caso, configura-se como mais uma atuação desarrazoada da Polícia Federal”, conclui a procuradora do MPF/BA.     

Caso a União seja condenada, deverá pagar indenização de R$ 500 mil para a comunidade da Serra do Padeiro e aos indígenas vítimas da denúncia de tortura. “Além da indenização e muito embora ainda não se tenha identificado os responsáveis, essa ação é importante para mostrar que a tortura ainda é praticada pelo Estado e que ela precisa ser banida. Isso é inaceitável”, pondera Cupsinski. 

 

 

fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/11068

 

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