A unidade dos movimentos de trabalhadores rurais e a definição de reivindicações consensuais em favor da Reforma Agrária e do combate ao latifúndio transformaram o 1º Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, realizado em Belo Horizonte no dia 17 de novembro de 1961, em marco histórico do processo de lutas sociais no campo.
Por Dênis de Moraes
Professor da Universidade Federal Fluminense e
autor de A esquerda e o golpe de 1964 (Expressão Popular, 2011)
Especial para a Página do MST
Pela primeira vez, organismos e entidades que atuavam no meio rural aprovaram uma declaração conjunta de prioridades e visões críticas, em sintonia com as mobilizações pelos direitos da cidadania que caracterizaram o governo do presidente João Goulart (1961-1964). Presentes 1.600 delegados de todo o país, o Congresso terminou indicando os principais pontos para a Reforma Agrária: desapropriação de terras não-aproveitáveis com área superior a 500 hectares; pagamento de indenização mediante títulos da dívida pública; concessão gratuita das terras devolutas aos camponeses; entrega de títulos de propriedade aos atuais posseiros; estímulo à produção cooperativa.
Essa pauta de reivindicações foi construída a partir de avaliações convergentes sobre a dramática situação de concentração da terra. Os contrastes eram alarmantes. Para uma população rural de 38 milhões de habitantes, existiam apenas dois milhões de propriedades agrícolas. Neste número, incluíam-se 70 mil propriedades latifundiárias, que representavam 3,39% do total dos estabelecimentos agrícolas existentes e acumulavam nada menos do que 62,33% da área total ocupada. Tal cenário foi denunciado no documento final do Congresso: “É o monopólio da terra, vinculado ao capital colonizador estrangeiro, notadamente o norte-americano, que nele se apóia, para dominar a vida política brasileira e melhor explorar a riqueza do Brasil. É ainda o monopólio da terra o responsável pela baixa produtividade de nossa agricultura, pelo alto custo de vida e por todas as formas atrasadas, retrógradas, e extremamente penosas de exploração semifeudal, que escravizam e brutalizam milhões de camponeses sem terra. Essa estrutura agrária caduca, atrasada, bárbara e desumana constitui um entrave decisivo ao desenvolvimento nacional e é uma das formas mais evidentes do processo espoliativo interno.”
As barreiras burocráticas ao reconhecimento dos sindicatos rurais foram removidas ainda na fase parlamentarista do governo João Goulart, através de portaria do ministro do Trabalho, Franco Montoro, de 26 de junho de 1962. Jango também criou a Superintendência da Reforma Agrária (Supra), conseguiu aprovar o Estatuto do Trabalhador Rural (espécie de CLT para os assalariados do campo) e estendeu benefícios da previdência social aos camponeses. Em Pernambuco, o governador Miguel Arraes obrigou os usineiros da Zona da Mata a pagarem salário mínimo.
Ao discursar em Belo Horizonte, Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas (organização surgida no interior de Pernambuco em fins dos anos 1950 e que logo se expandiu a estados vizinhos), arrancou demorados aplausos da plateia com uma célebre frase, que seria a partir daí repetida pelos setores mais aguerridos: “A reforma agrária será feita na lei ou na marra, com flores ou com sangue.” A palavra de ordem de Julião o distanciava da União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (Ultab), entidade hegemonizada pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). O choque de estratégias se traduzia na insistência dos comunistas em prosseguirem no trabalho de sindicalização rural e de negociação com o governo para a ampliação dos direitos trabalhistas e sociais ao homem do campo. Já as Ligas Camponesas sob influência de Julião exigiam uma Reforma Agrária profunda e rápida, capaz de acelerar o que imaginavam ser possível naquela quadra histórica: a transição para o socialismo.
De 1961 à eclosão do golpe militar de 1964, os movimentos no campo seguiram juntos na luta mais geral contra o latifúndio e pela socialização da terra, mas divididos quanto aos rumos e intensidades que deveria ter para concretizar seus objetivos.
De qualquer forma, o Congresso de Belo Horizonte significou um forte estímulo à organização dos camponeses no Brasil. Em fins de 1963, o Ministério do Trabalho já registrava 270 sindicatos de trabalhadores rurais reconhecidos e 557 em processo de legalização. No mesmo período, levantamento do 2º Exército indicava a existência de 218 Ligas Camponesas em 20 Estados, sendo 64 em Pernambuco.
A problemática agrária era questão decisiva na sucessão presidencial prevista para 1965. Francisco Julião chegou a idealizar uma grande marcha de 50 mil camponeses a Brasília, às vésperas do pleito. A multidão cercaria o Congresso Nacional com o intuito de pressionar os parlamentares a aprovarem uma emenda que modificasse a Constituição, permitindo o pagamento das desapropriações de terra em títulos da dívida pública. “Era o momento adequado, pois o candidato a Presidente que se opusesse perderia o apoio de centenas de milhares de votos no campo”, explicaria Julião duas décadas depois. A marcha jamais pôde ser realizada, porque a brutalidade do golpe militar impediu.