Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Entrevista

“Quando um ano de baixa precipitação assusta a sociedade e os governos, isso é um sinal de que até hoje o semiárido é uma região mal compreendida”. É com essa declaração que Haroldo Schistek comenta as notícias de que o semiárido brasileiro enfrenta a maior seca dos últimos 50 anos. Idealizador do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada - IRPAA, ele esclarece que “anos de mais baixa precipitação não devem assustar a ninguém, ao contrário, devem ser considerados como fator de produção”.


Para ele, as dificuldades do semiárido brasileiro estão relacionadas à falta de investimento dos governos estaduais e federal, que não propõe alternativas eficazes para assegurar uma vida digna no sertão. “Uma catástrofe, isto sim, é a falta de preparo dos nossos governos. Tiveram três décadas, deste a última grande seca, para não, mais uma vez, serem apanhados de surpresa. Porém, precisam mais uma vez tomar medidas de emergência, gastar somas vultuosas para evitar maiores prejuízos econômicos e mortes da população”.

Diante das dificuldades enfrentadas pelos sertanejos que dispõem de pouca terra e não têm infraestrutura para enfrentar os períodos mais críticos, Schistek lamenta: “Sabemos que para o povo, agora é a hora de cuidar da vida, ter carro-pipa, achar preço bom para os animais, procurar emprego para alimentar a família. Ir atrás de subsídios do governo. Serão longos meses de sol quente, de poeira e de muitas caminhadas e viagens. Será uma luta, uma batalha, até alcançar a próxima chuva”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Schistek destaca que o semiárido está sendo invadido por “mineradoras” e “projetos que expulsam a população, destroem a caatinga, explorando os bens naturais, sem maiores benefícios para as populações locais, causando desertificação”.

A preservação da Caatinga, enfatiza, é fundamental para garantir a regularidade da temperatura, das chuvas e a fertilidade do solo do semiárido. Citando a frase dita por morador da região, ele é enfático ao comentar o projeto de transposição do rio São Francisco: “Para resolver os problemas do semiárido, não precisamos apelar para o São Francisco. O São Pedro dispõe de água mais do que o suficiente para sermos uma região próspera”.

Na avaliação do agrônomo, a mudança no semiárido brasileiro também depende de uma educação contextualizada, que integre o semiárido e a Caatinga. “Ainda recentemente, encontramos um livro didático, no capítulo sobre os biomas brasileiros, que mostrava uma foto da Caatinga nos meses da estiagem, com a legenda inacreditável: ‘Caatinga morta’. Na verdade, os arbustos e árvores retratados somente estavam em hibernação, cheios de seiva e nutrientes, esperando apenas a primeira chuva para se vestirem novamente em abundantes roupas de folhas e flores”, explica.

Haroldo Schistek é teólogo pela Universidade de Salzburgo, Áustria, agrônomo pela Universidade de Agricultura em Viena e da Faculdade de Agronomia do Médio São Francisco em Juazeiro, na Bahia. É idealizador do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada - IRPAA, com sede em Juazeiro, fundado em 1990. Trabalha com assessoria relacionada a recursos hídricos, desenvolvimento rural, beneficiamento de frutas nativas, questões agrárias, entre outras áreas. É elaborador de apostilas, livros, relatórios. Além disso, acompanha e coordena programas junto de agricultores, dentro do conceito da Convivência com o Semi Árido. Atualmente integra a Coordenação Coletiva do IRPAA como coordenador administrativo.

Confira a entrevista:

A imprensa tem informado que a atual seca do semiárido brasileiro é a maior dos últimos 50 anos. É possível fazer distinções entre a seca atual e a de outros momentos, mesmo considerando que este é um processo natural do semiárido brasileiro?

O termo “seca”, a meu ver, não cabe bem no contexto climático do semiárido. A palavra “seca” quer caracterizar uma situação climática excepcional, de baixa pluviosidade, numa região que normalmente apresenta chuvas regulares. Esta definição não se aplica ao semiárido brasileiro. Anos de mais baixa precipitação não devem assustar a ninguém, ao contrário, devem ser considerados como fator de produção. Quando um ano de baixa precipitação assusta a sociedade e os governos, isso é um sinal de que até hoje o semiárido é uma região mal compreendida. Para a natureza, os seus animais e plantas, um ano como este não é nenhuma catástrofe. Em milhares de anos souberam se adaptar e criar resistência. Uma catástrofe, isto sim, é a falta de preparo dos nossos governos. Tiveram três décadas, deste a última grande seca, para não, mais uma vez, serem apanhados de surpresa. Porém, precisam mais uma vez tomar medidas de emergência, gastar somas vultuosas para evitar maiores prejuízos econômicos e mortes da população.

Como as populações do semiárido brasileiro convivem com a seca e com as demais características do semiárido?

Na última grande seca de 1979 a 1983, fui convidado a acompanhar uma equipe de reportagem para retratar os acontecimentos no Sertão nordestino. Partimos de Recife, viajamos longitudinalmente pelo estado da Paraíba e atravessamos Pernambuco, em direção à Bahia. Foi assustador o que vimos. Levas de gente nas estradas, fogões de lenha nas casas, sem nenhuma brasa, armazéns da Cobal saqueados, e frentes de serviço fazendo estradas, que foram levadas pela primeira chuva. Mas quando atravessamos a ponte sobre o rio São Francisco e nos dirigimos para o Distrito de Massaroca, município de Juazeiro, parecia que tínhamos mergulhados em outro mundo. A feira abastecida de tudo que se precisa, farinha, feijão e rapadura, roupas e chocalhos. As árvores em torno eram ocupadas pelas cordas dos jegues e cavalos amarrados e o povo alegremente tomando sua pinga.

Um dos agricultores nos convidou para almoçar. Perguntamos: “Aqui choveu?”, porque por onde passamos só vimos fome e miséria. “Choveu nada”, foi a resposta, “só sobrou um pouco de mandioca na roça. Nem milho, nem feijão. Mas temos o criatório (cabras e ovelhas) e o pasto para eles é a Caatinga. Aqui é uma grande área de Fundo de Pasto. Aqui ninguém passa necessidade”, disse ele.

Momentos como esse fizeram descobrir e definir o novo paradigma da convivência com semiárido, jogando para o lixo da história o “combate à seca”.

E não foi muito diferente agora, com a seca atual: telefonei para a cooperativa de beneficiamento de frutas nativas, como umbu e maracujá do mato, a Coopercuc, que atende aos municípios de Canudos, Uauá e Curaçá, e o presidente me contou que conseguiram facilmente alcançar e até ultrapassar a meta visada, atendendo assim a todas as encomendas. Foram 190.000 toneladas de frutas nativas da Caatinga. E mais: nestas duas semanas passadas inauguraram três minifábricas para beneficiar frutas nativas, dentro das medidas do nosso programa de Recaatingamento. Foram eventos muito festivos, com churrasco de carne de bode, reunindo toda vizinhança do povoado interioriano. Os de fora se admiraram: onde está a seca de que tanto se fala? São comunidades tradicionais, que tiram seu sustento básico da criação de animais de médio porte e onde a Caatinga preservada é o fundamento.

Não podemos generalizar esta situação benigna. Pois a maioria dos agricultores, por circunstâncias históricas e políticas, são obrigados a sobreviver em cima de uma terra pequena e dependendo principalmente do plantio da roça.

A que atribui os impactos ambientais do semiárido brasileiro e a dificuldade de desenvolver a região? Há risco de desertificação no semiárido brasileiro?

Para entender mais sobre nossa região, o que ela oferece, onde ficam os limites e quais são as propostas para uma vida econômica estável, quero destacar alguns elementos.

Sobre o clima no Semiárido

A estiagem recente no semiárido brasileiro se enquadra no comportamento previsível do tipo climático, com suas chuvas irregulares, no tempo e no espaço geográfico. Quer dizer, nunca se sabe quando se terá outra chuva nem em que área ela cairá. Nem se sabe quando iniciará o período chu-voso, nem quando será a última chuva. E tem mais: a irregularidade é muito mais acentuada em certos anos. Não é novidade desde a grande seca dos anos 1980, que a cada 26 anos há uma estiagem forte.

São muitos os “ingredientes” que fazem chover ou que impedem a chuva no semiárido brasileiro: A Zona de Convergência Intertropical, el niño, la niña, frentes frias do sul, a temperatura da água da porção do Oceano Atlântico que se encontra entre o Nordeste do Brasil e África. Além das contribuições feitas pelos humanos, através de desmatamentos, plantios extensos de pastos e grãos inadequados, trazendo consequências, uma vez que, a terra despida da sua roupa de Caatinga aquece o ar demasiadamente e, por sua vez, empurra as nuvens em alturas inadequadas. Podemos dizer, que a cobertura intacta da Caatinga é o regulador da temperatura e da chuva, man-tendo a fertilidade das terras e amenizando as influências naturais sobre o clima.

O clima semiárido se instalou entre oito e dez mil anos atrás, e o comportamento das chuvas é mais do que documentado pelos viajantes e padres portugueses. A população nativa, porém, adaptou-se perfeitamente às chuvas irregulares, cobrindo toda área do semiárido com suas aldeias e caminhos migratórios.

Sobre a ocupação do Semiárido

A vida da população indígena integrada ao ambiente semiárido foi brutalmente interrompida pela invasão dos portugueses. Assim, o grande mal que se fez ao semiárido não vem de agora, ou do século passado. Vem desde a primeira invasão pelos portugueses e tem tudo a ver com a monocultura de cana-de-açúcar no litoral nordestino. O gado, indispensável para o manejo da cana-de-açúcar e para a alimentação da população humana, num certo momento, numa época em que não existia o arame farpado, não podia mais ficar próximo às plantações e foi, por decreto governamental, mandado para o interior. Já em 1640 se estabeleceu o primeiro curral para gado bovino no médio São Francisco, dando assim início a uma sequência até hoje mantida: uma política concebida fora da região, introduzindo algo não adaptado ao clima, servindo a interesses estranhos. Não demorou e se formaram dois imensos latifúndios que ocuparam toda a região desde o Maranhão até Minas Gerais: os morgados da Casa da Torre e outro da Casa da Ponte. Para o povo, só existia lugar como vaqueiro, que mantinha sua rocinha para alimentar a família, mas ele nunca poderia ser dono daquele pedaço de chão. Essa é a origem da agricultura familiar na região.

Estamos numa fase de nova invasão do semiárido, que é mais devastadora que a dos portugueses. São os grandes projetos que expulsam a população, destroem a caatinga, explorando os bens naturais, sem maiores benefícios para as populações locais, causando desertificação. A exemplo das mineradoras, grandes projetos energético e de irrigação. Tais projetos ampliam a concentração de renda, o êxodo rural. Para os grandes fica o lucro, e para o povo ficam as “bolsas”. Prometem “emprego” para um povo que não necessita de emprego, pois já tem seu ganho de vida, como homem livre, na agricultura e criação de animais, mas necessita de segurança na terra, e terra, em tamanho adequado para as condições de semiaridez.

O que tem impedido o desenvolvimento social e econômico do semiárido? Pode-se dizer que é a má distribuição de água e não a seca?

O problema não é a má distribuição da água, mas da terra. Precisamos assim, mais uma vez, insistir num fato que muitos preferem não mencionar, por ser incômodo, por tocar em privilégios de uma minoria e de ser perigoso e, em muitos casos, até mortal. Trata-se da questão da terra, ou melhor, do tamanho dela. A Embrapa Semiárido afirma que nas áreas da grande Depressão Sertaneja, as mais secas do Semiárido, uma propriedade necessita de até 300 hectares de terra para ser sustentável, sendo a atividade principal a criação de caprinos e ovinos. Assim, a principal forma de preservar o nosso bioma, a Caatinga, é garantir às famílias um ta-manho de terra adequado às condições de semiaridez. Quanto menor a quantidade de chuva na região, mais terra se precisa.

Enquanto isso, qual é a realidade? Propriedades de dois, três, dez hectares, enquanto no outro lado da cerca uma única pessoa possui dois, três, dez mil hectares. É preciso elaborar uma proposta de reforma agrária apropriada às condições socioambientais do semiárido. Em muitos casos as famílias possuem terra, são da terra, mas só precisam dela em tamanho suficiente para ter uma produção estável, podendo garantir reservas e assim suportar as instabilidades climáticas. Sendo assim, poderemos esquecer para sempre os programas famigerados como O Bolsa Família, carros-pipa, cestas de alimentos e, ultimamente, O “Bolsa Estiagem”.

Evidentemente, o tamanho da terra necessário para viver bem no semiárido varia de região para região, depende da chuva, da fertilidade do solo, da formação topográfica. Mas sempre é maior do que de fato as famílias possuem, ou o que o Incra disponibiliza nos seus assentamentos e é alcançável financeiramente pela cédula da terra.

Como avalia o desenvolvimento do semiárido nos últimos anos? Como os sertanejos convivem com os períodos de seca?

Um jeito que o povo encontrou de viver bem no semiárido é se organizando em comunidades de Fundo de Pasto, forma tradicional de posse de terra no semiárido, remota desde as Sesmarias, e atende a esta característica: preservação e viabilidade econômica. As áreas de pasto não são individualizadas, não possuem cercas para separar cada propriedade. Os animais de todos os proprietários pastam livremente em toda a área, deslocando-se sempre para aquelas manchas verdes onde choveu recentemente. Com isso eles evitam superpastoreio e garantem animais bem alimentados. Organizando dessa maneira a terra, de forma coletiva, a área necessária por família pode ser bem menor, mesmo na Depressão Sertaneja: entre 80 e 100 hectares. A área do Fundo de Pasto fica sob a responsabilidade de uma associação, dos próprios donos. Temos belos exemplos de como essa forma organizacional eleva a consciência ambiental e protege a Caatinga, como na região de Canudos, por exemplo.

E no que se refere à distribuição da água, como resolver essa questão?

Uma região semiárida precisa diversificar as fontes de água, conforme sua utilização final. Mas precisa estar atenta à formação geológica. É teimosia escavar reservatórios profundos em áreas de calcário ou arenito e querer poços com água em quantidade com subsolo cristalino, onde não há lençol freático. Mas as cinco linhas de luta pela água valem para o semiárido, observando as variações conforme a geologia. A realização das cinco linhas de luta pela água precisa ser acompanhada pela preocupação de conquistar o tamanho de terra adequada às condições de semiaridez.

São estas as linhas:

– Água de beber, deve vir de preferência da captação da água da chuva em cisternas, que é construída no pé da casa, dando um acesso confortável à água aos moradores.

– Água para a comunidade para uso doméstico, banho, lavar louça e roupas, e para os animais, fornecida por meio de tanques, barreiros trincheira, estreitos, mas profundos, cacimbas, poços.

– Água para a agricultura, suprida por meio de barragens subterrâneas, irrigação de salvação (cisterna ou barreiro), captação em estradas para irrigação de árvores frutíferas, aração em curva de nível, com sulcos para armazenar água de chuva in situ; uso de esterco e cobertura seca para re-ter a umidade do solo para as plantas; cultivo de variedades adaptadas às condições climáticas.

– Água de emergência para os anos de longa estiagem, fornecida por poços profundos e pequenas barragens estrategicamente distribuídas. Este ponto é uma solução transitória, enquanto os três pontos anteriores não foram completamente alcançados.

– Água para o meio ambiente: proteção de olhos d’ água e da mata ciliar, prevenção de poluição de aguadas, não desmatar a Caatinga, nem queimar as roças. Pois a Caatinga intacta e o solo gru-moso proporcionam uma boa infiltração da água chuva, evitando erosão. Além disso, o tratamento do esgoto, o reuso e a reciclagem da água para irrigação de capineiras e fruteiras, por exemplo.

Propostas

Essa visão deve ser a base para elaboração de Planos de Água Municipais, realizado em todos os municípios do Semiárido, elaborados pela sociedade civil e administração pública. É preciso construir propostas adequadas para abastecimento hídrico dos núcleos urbanos do Semiárido.

É importante, neste ponto, falar da transposição do rio São Francisco: é uma obra que visa beneficiar grandes empresas e empreendimentos, abastecer cidades litorâneas, mas não tem nada a ver com “matar a sede do nordestino” como a propaganda oficial martela. A divulgação dos supostos benefícios (que não fala da situação do rio São Francisco) parece muito eficiente: recebemos um tempo atrás um e-mail de gente do Sul nos chamando de “fora da realidade”, pois como podemos ser contra uma obra que finamente vai resolver o problema da água para o nordestino. Melhor do que muitas palavras para explicar e responder, vou citar um lavrador de Pernambuco que falou mais ou menos assim: “Para resolver os problemas do semiárido, não precisamos apelar para o São Francisco. O São Pedro dispõe de água mais do que o suficiente para sermos uma região próspera”.

Que políticas públicas são necessárias para garantir o desenvolvimento do social, econômico e ambiental do semiárido?

O bioma Caatinga é a garantia para a vida do povo, é o patrimônio nativo do Brasil e é um bem que deve ser herdado de maneira intacta pelos filhos e netos. Onde a Caatinga não existe mais, os efeitos de estiagens são muito mais devastadores. Portanto, menciono oito preceitos da produção apropriada para o semiárido.

1. Perseguir a sustentabilidade para não ocorrer desertificação: criação de animais de maneira inadequada, animais impróprios para o semiárido, desnudação de grandes áreas e plantas que não suportam o clima, além da concentração fundiária, são as causas da desertificação.

2. Recaatingamento para repor a vegetação e riqueza da Caatinga perdida.

3. Tamanho da terra: os zoneamentos agroecológicos realizados pela Embrapa precisam, além de mostrar o uso correto da terra, conforme a configuração edafoclimático, indicar também a área mínima para que uma propriedade seja viável, mesmo em anos mais secos. Esses dados devem ser a base para titulação de terras e assentamentos do Incra.

4. Priorizar a produção animal de pequeno e médio porte, pois o semiárido é por excelência uma re-gião pecuária.

5. Para manter a riqueza da Caatinga e seu aproveitamento racional para a criação de animais e extrativismo, precisa-se do manejo correto, fazer reservas alimentares para os meses sem chuva e maiores do que para um ano, para não precisar comprar “farelos” na cidade. Isso deve ser o ponto de partida, para a Assistência Técnica e Extensão Rural.

6. Em regiões, microclimas/nichos climáticos, onde a agricultura pode ser indicada, é indispensável a escolha de plantas que consigam lidar com a grande irregularidade das chuvas. Porém, para que o agricultor tenha depois sucesso na venda dos seus produtos, espera-se mais flexibilidade dos ór-gãos estaduais na promoção de sua comercialização. Assim, o Seguro Safra pode ser algo do pas-sado ou então existirá somente para anos extremos.

7. O extrativismo e consequente beneficiamento e comercialização a exemplo do Umbu, do maracujá do mato e outros, tem mostrado o grande potencial financeiro e também em termos de preservação do bioma, quando a agricultura familiar assume a etapa da transformação dos produtos primários. A inclusão destes produtos nos programas locais de alimentação deve ser prioridade de todos os níveis governamentais. Não há como tolerar que uma prefeitura compre doce de goiaba, de péssima qualidade, de um fornecedor do Rio Grande do Sul, enquanto na porta são disponíveis produtos locais, orgânicos e reconhecidos pela qualidade.

8. Devido ao grande potencial da Caatinga e a pouquíssima expressividade de áreas irrigadas, somente em torno de 2% do semiárido são economicamente aptos para a irrigação, as universidades de agronomia e escolas técnicas do Semiárido devem concentrar esforços para um ensino agronômico dirigido para a região.

A educação contextualizada

O mais importante é a educação contextualizada. Não se pode pensar o semiárido brasileiro com seu bioma Caatinga de forma isolada, com propostas setoriais. A educação escolar tradicional tem contribuído muito para divulgar uma imagem de inviabilidade econômica, feiura e morte. Ainda re-centemente encontramos um livro didático, no capítulo sobre os biomas brasileiros, que mostrava uma foto da Caatinga nos meses da estiagem, com a legenda inacreditável: “Caatinga morta”. Na verdade, os arbustos e árvores retratados somente estavam em hibernação, cheios de seiva e nutrientes, esperando apenas a primeira chuva para se vestirem novamente em abundantes roupas de folhas e flores.

Ou seja, precisamos de uma educação contextualizada, que leve o contexto da vida dos alunos, as plantas da Caatinga, a sua casa de adobe, para dentro da sala de aula. Tivemos experiências magníficas nesse sentido com os alunos, prestando atenção de maneira inacreditável, sendo as faltas às aulas quase não registradas. Materiais didáticos nesse sentido já existem. Precisamos que o Ministério da Educação e Cultura faça uma volta de 180 graus em termos de políticas educacionais, pois não é somente necessário que exista material didático apropriado: é indispensável que a formação de professores nas universidades seja, desde o início, no sentido da contextualização e que a formação continuada do corpo docente acompanhe a proposta. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nos dá respaldo total nesse sentido.

É importante ressaltar que a educação contextualizada tem princípios universais e deve ser traba-lhada em todas as realidades, não somente restrita aos ambientes rurais, mas deve alcançar também as escolas nas cidades, sedes dos municípios. Muitos dos alunos da área rural hoje em dia estudam nas cidades, por força da legislação das escolas nucleadas. Além disso, o bioma da Caatinga circunda todas estas aglomerações urbanas. Muitos dos alunos possuem raízes nele e precisam ter a oportunidade de receber as informações corretas. Outro aspecto importante e necessário é que a educação contextualizada seja pautada pelas universidades, e em todos os espaços educacionais.

Deseja acrescentar algo?

Fica a pergunta: como vamo-nos prevenir contra a próxima grande estiagem?

Assistimos, mais uma vez, o desfile dos carros-pipa, o ressurgimento com toda força da indústria da seca, agora enriquecida com novos elementos perversos, e lamentamos, mais uma vez, décadas perdidas pelos governos, nas quais poderia ter dotado o semiárido com infraestruturas e políticas corajosas para que nunca mais se repetisse algo como a seca dos anos 1980.

Mas sabemos que, para o povo, agora é a hora de cuidar da vida, ter carro-pipa, achar preço bom para os animais, procurar emprego para alimentar a família. Ir atrás de subsídios do governo. Serão longos meses de sol quente, de poeira e de muitas caminhadas e viagens. Será uma luta, uma batalha, até alcançar a próxima chuva.

Mas como em toda batalha, existe sempre o pensamento sobre o que será depois, e o que podemos e devemos fazer para que nunca mais sejamos surpreendidos por uma situação com esta agora. Ou será que depois das primeiras chuvas encherem as cisternas e os campos se tingirem de verde, pensemos que nunca mais se repetirá uma estiagem como esta?

Com certeza se repetirá e pode ser pior, desde que o processo de desmatamento e a concentração da terra continuem. Provavelmente se junte até um novo ingrediente: pode ser que o aquecimento global acentue a irregularidade e aumente a evaporação da água.

Os conceitos acima ainda são incompletos, mas básicos e propõem uma meta a alcançar nestes próximos 26 anos. Eles se enquadram no paradigma da Convivência com o Semiárido. São propostas estruturantes, que garantem a autonomia dos agricultores familiares. Pois é, querendo combater a seca, nunca ganharemos. A convivência com o semiárido procura entender a natureza cada vez mais e organizar a vida e a produção conforme os parâmetros encontrados.

 

Fonte: Da IHU On-Line

 

Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Rua Esperanto, 490, Ilha do Leite, CEP: 50070-390 – RECIFE – PE

Fone: (81) 3231-4445 E-mail: cpt@cptne2.org.br