Entrevista
Milhares de atingidos por barragens se mobilizarão em diversas capitais brasileiras para reivindicar seus direitos, denunciar o atual modelo energético e apoiar a luta dos trabalhadores do setor elétrico. É a jornada nacional de lutas de 14 de Março: Dia internacional de luta contra as barragens, pelos rios, pela água e pela vida.
De acordo com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o modelo energético brasileiro, pautado na produção de energia através da construção de grandes barragens, tem causado imensuráveis prejuízos sociais e ambientais para as populações atingidas e a toda a classe trabalhadora.
O resultado é que a construção de barragens no Brasil vem deixando um rastro de violações. Um relatório do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, ligado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, registrou 16 tipos de violações de direitos humanos que ocorrem de maneira recorrente na construção de barragens. Em todo o mundo, mais de um milhão de pessoas já foram expulsas de suas terras.
Entre as reivindicações do Movimento dos Atingidos por Barragens estão a criação de uma política adequada de reparação das perdas e prejuízos da população atingida; a não construção de Belo Monte; a não à privatização da água e da energia; e mudanças na política energética para baixar as tarifas para todas residências brasileiras.
Leia, a seguir, a entrevista com Joceli Andriolli, da coordenação do MAB.
Às empresas de energia, garantia de lucros extraordinários. À população, tarifas altíssimas. Às famílias atingidas pela construção de barragens, a dívida social do governo federal. Sob esses e outros pontos, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), ao lado de pastorais, redes, ativistas e movimentos sociais reunirá a população para o Dia Internacional de Lutas Contra as Barragens, pelos rios, pela água e pela vida, na jornada do dia 14 de março.
Populações atingidas por barragens em todo o mundo denunciarão o modelo energético que, historicamente, tem causado graves consequências sociais, econômicas, culturais e ambientais. Joceli Andriolli, da coordenação do movimento, destaca a necessidade da participação dos atingidos, trabalhadores do setor, e da população em geral, que paga injustamente pelo alto preço da energia.
Brasil de Fato – Que balanço você faz do primeiro ano do governo Dilma em relação à questão da regulação do setor?
Joceli Andriolli – O governo Dilma vem dando continuidade à implementação de um plano que começa a partir de 2002, onde o Estado tem uma intervenção maior no controle do setor elétrico brasileiro. No entanto, o Estado brasileiro imprime a continuidade de uma política de privatização com a construção de novas usinas, a construção de consórcios que atuam de maneira privada, por meio da Parceria-Público-Privada. Geralmente o Estado ficando com 49% das ações e o capital privado com 51%.
Além disso, o Estado tem sido o grande garantidor nessa lógica do financiamento da construção das grandes obras, bem como a flexibilização das regras para a implementação desses projetos. Por exemplo, há vários decretos da presidenta Dilma que visam à eliminação de áreas de preservação ambiental na Amazônia para garantir a presença dos canteiros de obras das hidrelétricas, como em Belo Monte.
Há outra questão em relação à lógica da energia na sociedade. É também o Estado que garante o equilíbrio financeiro das empresas. Ou seja, quem determina as regras para as empresas distribuidoras de energia é o Estado, a partir da agência reguladora, e que também têm aprontado bastante no último período ao vir facilitando o encarecimento da vida da população pelas altas taxas cobradas nas tarifas de energia.
Equilíbrio financeiro quer dizer manutenção do lucro dessas empresas?
É a garantia hoje de lucros extraordinários, porque a tarifa do setor elétrico, na época do Fernando Henrique, era padronizada internacionalmente. No Brasil, pelo fato de nossa matriz ser hidroenergética, ela é considerada mais barata que as outras fontes e proporciona lucros extraordinários. Quem paga isso é a população, o setor residencial, também pequenas e médias indústrias e comércios. Esses setores acabam bancando a conta em nome do enriquecimento das empresas, a grande parte delas transnacionais, da Bélgica, Estados Unidos.
Há uma dívida social com os atingidos? Qual a postura do governo federal? Não só o MAB tem dito, como o próprio Estado admitiu, no Conselho de Defesa do Direito à Pessoa Humana, ligada à Secretaria de Direitos Humanos, a violação constante de vários direitos dos atingidos por barragens no Brasil. O ex-presidente Lula, no final de seu mandato veio a público reconhecendo a dívida que o Estado brasileiro tem para com os atingidos por barragens porque nunca teve políticas que se preocupassem com a população. No período militar, a remoção foi feita pela força bruta. Depois, nos anos 1990 foram as empresas que se responsabilizaram por essa expulsão, não tendo nenhuma política de tratamento aos atingidos. O próprio Lula assinou o Decreto 7342/2010 no final de seu mandato que até hoje não foi regulamentado, e por sua vez, o “massacre” continua acontecendo, tem o Rio Madeira, em Rondônia (onde se localizam as usinas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio) para mostrar isso.
O que significa a regulamentação do Decreto nº 7.342/2010?
Esse decreto tem em sua essência o conceito do atingido (pela construção de uma barragem). Ele visa reconhecer quem é, de fato, o atingido. Várias empresas têm negado que essas populações estão sendo atingidas. Nesse Decreto há itens muito claros capazes de impedir o impacto causado por uma hidrelétrica, e também cadastrar essa população. Estabelece uma política de tratamento à população atingida, com políticas claras de recuperação dos direitos das famílias já atingidas, e as futuras; indenização justa, prevendo toda a questão cultural, assistência técnica, itens que garantam a reinserção das famílias ao trabalho. Hoje, grande parte das populações atingidas tem ficado sem emprego, sem trabalho, sem sua fonte de renda e isso tem desestruturado totalmente o modo de vida das pessoas. Além disso não basta ter uma política e não ter um órgão do Estado responsável que promova essa política. Até hoje os atingidos não têm um órgão de referência. Um órgão que tenha o recurso previsto para pagamento tanto da dívida para com as famílias já atingidas como para os futuros atingidos.
Para a mobilização de 14 de março quais são as outras pautas imediatas?
Do ponto de vista dos direitos aos atingidos, essas três são as principais pautas: pagamento da dívida que o Estado tem com os atingidos, criação de um órgão responsável pela política e de um fundo de recursos para isso.
Há outro ponto: o grande risco que corre o setor elétrico de ter, novamente, uma onda de privatização. Atualmente, boa parte da geração se encontra nas mãos das estatais. Mas hoje está muito claro uma tendência da privatização desse setor. A Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) tem uma campanha que vai nesse sentido.
O terceiro ponto é o da não-privatização da água. Ocorre hoje um forte processo de privatização da água no Brasil a partir de parcerias público-privadas.
Estamos numa campanha nacional contra a privatização do saneamento que também será discutida no 14 de março. Prevemos em Brasília fazermos o lançamento dessa campanha, de termos água pública, de qualidade, a serviço da população brasileira, e não como mercadoria.
Ocorre que na fase de elaboração de planos diretores dentro dos municípios está havendo a assessoria de grupos ligados principalmente a empresas como a Odebrecht, que apresentam consultorias a municípios. A questão é que essas empresas preveem assumir, por meio de consórcios público-privados a expansão do sistema de abastecimento de água. Isso com certeza vai influenciar na tarifa da população, aumentar o preço da água.
Em Belo Horizonte estamos num processo forte com a empresa Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais) que prevê também uma parceria público privada com a Odebrecht, com a ampliação do sistema a gente sabe que logo tem a transferência da parte pública à iniciativa privada. Tendo em vista que os municípios têm um processo de endividamento, em virtude da lei de responsabilidade fiscal, cria-se um clima propício para a empresa privada chegar, até mesmo com o financiamento do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).
Como a estrutura organizativa do setor dialoga com o preço da energia?
Há hoje dois grandes interessados no negócio da energia elétrica no Brasil. Um é o grande consumidor de energia composto por cerca de 700 empresas no Brasil, os considerados consumidores livres. Eles têm uma tarifa diferenciada. Podem fazer o contrato direto com o sistema elétrico e, por sua vez, pagam o custo de produção de energia no Brasil, que é baratíssimo. A Vale, por exemplo, paga apenas 3,3 centavos o KW/h de energia, enquanto a população residencial, em Minas Gerais paga 70 centavos.
Por sua vez, há os consumidores cativos, que é a grande parte da população obrigada a comprar das distribuidoras de energia elétrica de seus estados. Há uma grande desigualdade porque a grande maioria da população, principalmente a parte mais pobre, paga a diferença para as grandes eletro-intensivas, que aqui no Brasil estão levando embora matérias-primas de alta densidade energética, gerando pouco emprego e prejudicando o meio ambiente.
Outros grandes interessados são as empresas que controlam o negócio da energia no Brasil. E que tem aumentado suas taxas de lucro enormemente após a privatização, parte das estatais, federais inclusive, tem partes de suas ações já privadas. A privatização por dentro das empresas públicas hoje é um problema bem sério no Brasil, que faz com que a receita dessas empresas seja repartida depois por acionistas privados. O caso da Cemig (Companhia Energética de Minas Gerais), por exemplo, ela transfere na faixa de R$ 2 bilhões de lucro anualmente, aos acionistas, que na grande maioria são privados.
Ou seja, esses dois grandes atores do negócio da energia encarecem a vida do povo brasileiro que, quando não paga sua conta, logo tem ela cortada.
Vocês denunciam as armadilhas das novas regras da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) que entrarão em vigor a partir de 2014. Quais são elas?
Querendo muito mais lucro, essas empresas estão por trás de um novo golpe na população brasileira. Esse golpe se dará por meio da elevação das tarifas. Para elevar as tarifas de energia, eles prevêem a substituição de todos os medidores de energia elétrica no Brasil, trocando o mecânico por um medidor eletrônico. Isso significa já encarecer a tarifa porque esse custo vai principalmente para o consumidor residencial. Com esse medidor eletrônico eles prevêem instituir preços diferenciados durante o dia de consumo de energia. Esse preços taxarão a população principalmente porque o momento que será mais elevado é justamente o momento que a maior parte da população utiliza a energia, por volta do meio-dia e no início da noite, das 17h até as 21h. Estes serão os períodos mais caros, chegando a três vezes mais do que é hoje a tarifa de energia. Isso significa colocar novamente o trabalhador brasileiro como refém da ganância e do lucro privado das empresas.
Além dos medidores eletrônicos, que influenciarão diretamente na conta da família, querem mudar as regras para definir se a empresa pode ou não aumentar os preços das tarifas.
Fonte: Eduardo Sales de Lima
Jornal Brasil de Fato