João Pedro Stédile, fundador e um dos coordenadores nacionais do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), passou na última terça-feira por Fortaleza. Coisa rápida, para cumprir agenda intensa, que incluiu uma série de reuniões internas, uma audiência com o governador Cid Ferreira Gomes (PSB) e palestra no auditório do Centro de Formação Frei Humberto, no Pio XII.
Tudo em poucas horas, apertando-se entre um compromisso e outro. No meio de tudo isso, encaixar um tempo para ele conversar com O POVO demandou paciência do repórter e alguma engenharia dos assessores. Finalmente conseguiu-se “15, 20 minutos”, para um bate-papo rápido, que terminaria exigindo um complemento posterior, via email, para ser transformado em entrevista.
Stédile é duro com o agronegócio, crítico da imprensa, irônico e firme com os Estados Unidos, mas cuidadoso quando fala do que foi o governo Lula e do que poderá vir a ser a gestão Dilma Rousseff. Mesmo que reafirme, enfaticamente, que o MST não recebe dinheiro do governo e nem se considera partícipe dele. Admite decepções, mas tenta explicá-las, e se diz esperançoso com as perspectivas de futuro.
O resultado final da conversa com João Pedro Stédile, a parte presencial e a que se deu através da internet, pode ser conferido a seguir.
Por que a reforma agrária não parece ter avançado no Brasil mesmo após oito anos de um governo dito de esquerda, com o petista Luiz Inácio Lula da Silva a comandá-lo?
De fato a reforma agrária, compreendida como um processo de democratização da propriedade da terra e maior acesso à terra dos trabalhadores e diminuição das grandes propriedades, não avançou. Ao contrário, segundo os dados do IBGE do Censo de 2006, o índice de concentração da propriedade da terra em 2006 é maior do que em 1920, quando recém havíamos saído da escravidão e do monopólio quase total da propriedade da terra.
Isso aconteceu, primeiro, porque a lógica de atuação do capital, através das empresas e dos grandes proprietários. é ir acumulando e comprando cada vez mais terras, independente do governo. Quanto maior é o lucro das atividades agrícolas, maior será o preço das terras e maior será a concentração da propriedade da terra.
Segundo, há uma disputa na sociedade brasileira entre dois modelos de organização da produção agrícola. De um lado o agronegócio que é a junção dos grandes proprietários com as empresas transnacionais, querendo impor o monocultivo, os agrotóxicos, a mecanização e expulsam os trabalhadores do campo. É um modelo sem gente, sem agricultores. E de outro o modelo de agricultura familiar, camponesa que defende a produção de alimentos, com uso intensivo de mão de obra, para o mercado interno, sem veneno e criando condições de fixação do homem no meio rural.
Infelizmente, com a internacionalização do capital e com aumento do poder das grandes empresas transnacionais sobre a agricultura, o modelo do agronegócio tem hegemonia e consegue iludir até setores do governo.
Preocupa ao MST a demora em indicar o novo presidente do Incra? O ritmo geral do novo governo não parece ainda muito lento?
Infelizmente, há ainda muitas disputas medíocres de correntes partidárias, que ficam apenas se preocupando com a pequena política de disputa de cargos. Nós precisamos discutir e disputar programas de políticas públicas. E essas disputas medíocres acabam atrapalhando o governo como um todo.
Espero que a presidente tenha coragem de tomar uma decisão mais adequada, para que os novos dirigentes da reforma agrária combinem conhecimento técnico com compromisso político com o combate à pobreza. E que haja mudanças claras na forma de atuação do Incra e das empresas do setor publico agrícola, como a Conab e a Embrapa.
O MST, que existe e atua desde 1984, faz que tipo de autocrítica quando analisa sua trajetória?
Desde a sua fundação como um movimento social, amplo, nós procuramos ir construindo princípios organizativos em nosso movimento a partir da experiência organizativa da classe trabalhadora ao longo da história. Sempre adotamos o principio de direções colegiadas, sem presidentes ou disputas de cargos. Todas as instâncias são coletivas e com ampla participação de mulheres e jovens.
Defendemos o principio do estudo, do conhecimento da realidade e da necessidade permanente de formar militantes e quadros. E também sempre adotamos o principio da critica e autocrítica. Internamente sempre fazemos avaliação de nossos erros e acertos. Em toda trajetória que fizemos procuramos apreender com os erros. Cometemos muitos e vamos procurando ajustar nossa linha política e nossa forma de atuar para superá-los.
Por que a pobreza não parece ter sido reduzida nos assentamentos?
A pobreza se reduziu muitos nos assentamentos. Acontece que a grande imprensa sempre procura comparar uma família assentada, com o fazendeiro, que toma milhões do BNB e do Banco do Brasil, para sua fazenda e mora numa praia no litoral. Mas não compara o assentado, com sua condição anterior, de sem-terra, de sem-nada. Hoje, as condições de vida num assentamento garantem a todas as famílias: terra, trabalho o ano todo, escola para os filhos e comida na mesa.
Mas ainda não conseguimos mudar o padrão da renda. E por isso, apresentaremos ao novo governo uma proposta de mudanças que esteja fundado na organização de cooperativas e agroindústria, única maneira de aumentar a renda agrícola. Quem vende matéria prima, nunca vai melhorar de vida. Então o sem terra era miserável, conquistou a terra e agora é um pobre com dignidade.
A violência, que muitos acusam de ser praticada pelo MST nas suas atuações de invasão, é um instrumento aceitável na luta pelo acesso á terra no Brasil?
O MST é contra qualquer forma de violência. No campo quem pratica a violência histórica, estrutural e até física contra os trabalhadores, sempre foram os grandes proprietários e seus prepostos. Organizar os trabalhadores e fazer lutas massivas é, pelo contrário, uma forma de proteger os trabalhadores da violência , que os exclui de todos os direitos democráticos. E é uma forma de transformar a luta contra opressão e exploração, não um caso pessoal ou de violência, mas uma luta social.
A mobilização social, em passeatas, em ocupações de terra, não é um ato violento, é uma necessidade, é um direito social. Por isso seguiremos organizando os trabalhadores para que façam a luta social, para que continuem ocupando os latifúndios improdutivos. E com isso pressionamos e ajudamos ao governo a cumprir a lei maior que é a Constituição. Sem luta social jamais haverá justiça social.
O MST pode, um dia, se transformar em partido político?
Jamais.
Por quê?
O dia que o movimento virasse partido acabaria. Pois sua natureza é organizar trabalhadores para lutarem pela reforma agrária, combater a pobreza no campo e construir uma sociedade mais justa. Os partidos têm outra natureza, justa, de disputa de programas, de disputa dos espaços públicos.
O MST está rachado? O que representa o movimento liderado por José Rainha, especialmente no interior de São Paulo?
De forma alguma (está rachado). Mas o MST não é um movimento monolítico. Nem queremos ter a exclusividade da luta pela terra e pela reforma agrária. Quanto mais trabalhadores se organizarem e lutarem pela terra e pela reforma agrária, melhor. No caso do Zé rainha, ele era nosso militante no Pontal do Paranapanema, mas em determinado momento da vida achou melhor se separar e organizar seu próprio movimento, que ele agora chama de MST pela Base. Nós achamos que ele tem todo direito.
A agricultura, no conceito que é pensada pelo MST, é incompatível com o agronegócio? Há chances de os interesses de ambos convergirem algum dia e em alguma situação?
O agronegócio e a agricultura familiar são incompatíveis, enquanto proposta de formas de você organizar a produção de alimentos. Eles são incompatíveis, porque o agronegócio defende o monocultivo, nós a policultura. Eles usam venenos, cada vez mais, nós defendemos a agroecologia. Eles usam máquina, nós queremos usar pequenas máquinas e fixar a mão-de-obra no campo. Eles praticam técnicas agressoras do meio ambiente, nós defendemos técnicas em equilibro com o meio ambiente. Eles querem lucro, nós queremos produzir alimentos saudáveis. Eles querem produzir commodities para entregar para as empresas transnacionais exportarem, nós queremos priorizar cooperativas, a Conab e o mercado interno. Eles concentram a renda. Nós distribuímos entre todos pequenos agricultores. Os proprietários do agronegócio moram na cidade, longe do campo. Os camponeses moram em cima de sua terra. Essa é a incompatibilidade de projetos de sociedade.
Haverá ‘Abril Vermelho’ em 2011?
Nossa luta pela reforma agrária deve ser permanente. No entanto, em abril de 1996, houve o massacre de Carajás em que foram assassinados 19 companheiros, e alguns meses depois perdemos mais dois, além de outros 69 feridos que ficaram incapacitados para o trabalho agrícola. Até hoje não houve nenhuma punição. Ninguém foi preso. É uma obrigação honrarmos a memória desses mártires do campo, com mais mobilizações.
E o próprio governo Fernando Henrique Cardoso, envergonhado com o massacre que as forças conservadoras fizeram no seu governo, antes de deixar o cargo assinou um decreto instituindo dia 17 de abril, dia nacional de luta pela reforma agrária. De modo que agora é até lei, uma obrigação em abril aumentarmos a luta pela reforma agrária. E certamente nos mobilizaremos em todo País, e até no exterior, pois a Via Campesina transformou dia 17 de abril no dia internacional de luta camponesa.
Qual a expectativa de mudança com Dilma Rousseff, que o MST, sendo anti-Serra, acabou apoiando na última campanha eleitoral?
Nossa expectativa é positiva, porque houve uma disputa nas últimas eleições entre os dois blocos de classe e de programa político. De um lado um setor da burguesia aliado com os interesses do capital americano, queria a volta do neoliberalismo, o neocolonialismo. E tinha como porta-vozes a candidatura José Serra (do PSDB).
A vitória da Dilma foi a vitória de uma coalizão de classes que reuniu setores da burguesia brasileira, da classe média e a ampla maioria da classe trabalhadora e dos pobres. Então, a disputa ideológica que houve nas eleições e a derrota do projeto das elites construiu uma correlação de forças para o governo Dilma avançar mais rapidamente para um projeto, que ela mesmo chamou de neo-desenvolvimentismo, que seria a combinação de políticas de desenvolvimento nacional com o combate a pobreza.
Qual reforma política o MST defende? Se é que defende alguma...
É evidente que a democracia e, sobretudo, o regime político no Brasil é capenga e manipulado. Precisamos aperfeiçoá-lo permanentemente. O MST, e os movimentos sociais do campo, estamos articulados com outros movimentos, com as centrais sindicais, com a OAB e com a CNBB, para apresentar uma proposta ampla de reforma política. E nessa proposta um dos elementos centrais deve ser criar mecanismos em que o povo tenha de fato o maior poder possível para decidir.
Assim, o povo precisa ter o direito de convocar plebiscitos sobre qualquer tema que considerar importante para a sociedade, por exemplo, para revogação de mandatos de qualquer eleito que traiu o programa. Temos que ter fidelidade partidária e votação em lista dos partidos, para que o povo vote em programas e não em pessoas, iludidos pela propaganda ou pelo dinheiro. Ter unicamente financiamento público de campanha e proibir qualquer doação privada com pena de cassação da candidatura.
Enfim, há muitas propostas interessantes sendo recolhidas e esperamos que nesse ano haja um debate intenso na sociedade. E depois que as propostas sejam consolidadas, deve haver um plebiscito nacional, para que o povo voto sobre cada um das propostas.
Existe algum temor de retrocesso, com Dilma, na política brasileira para América Latina e, em especial, a América do Sul?
De forma alguma. Acho até que o governo Dilma, como disse antes, pela correlação das forças que o apoia, pode fazer uma política externa ainda mais ousada. A imprensa burguesa é que vem pautando esse tema, dizendo que a Dilma está recuando em relação a política do Lula, como uma forma de pressioná-la a recuar mesmo. Já que toda grande imprensa brasileira, como a Globo, Estadão, revistas semanais como a Veja, estão alinhados com os interesses do imperialismo americano. E são opositores da política externa desenvolvida pelo governo brasileiro nos últimos oito anos.
Qual avaliação o senhor faz da recente visita do presidente dos EUA, Barack Obama?
Uma vergonha. O governo dos Estados Unidos perdeu muito espaço na América Latina e no Brasil nos últimos dez anos, desde a eleição do Chavez em 1999 na Venezuela. Bush era um idiota e militarista. Agora, Obama quer usar seu carisma, para recolonizar as ex-colônias. Mas acho que é tarde. O mundo mudou. A correlação de forças internacionais mudou. O império americano começou a descer a ladeira. Se sustenta apenas no dólar e na força militar.
Sua viagem foi uma tentativa de disputar aqui no Brasil apenas as reservas de pré-sal e o etanol para as empresas e os interesses americanos.. Mas o povo brasileiro não é bobo. E o governo Dilma tampouco. Eles queriam, por exemplo, reunir 500 mil puxa-sacos para ouvir um discurso em inglês em plena Cinelândia. Tiveram que cancelar, quando as pesquisas de opinião revelaram que ele era apenas mais um. E teve que se contentar em falar para apenas 500 puxa-sacos da elite carioca que foram no teatro municipal.
Os governos e os povos da América Latina, ao contrário, estamos construindo mecanismo de integração continental e popular, cada vez mais importantes, para fugir da dependência dos Estados unidos. E nosso maior parceiro comercial, por exemplo, agora é a China... e a América Latina.
Perfil
Natural de Lagoa Vermelha, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 25 de dezembro de 1953, é formado em economia pela PUC, de Porto Alegre, além de ter pós-graduação na Universidade Autônoma do México. Um dos fundadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), até hoje se mantém como um dos seus coordenadores nacionais. Filho de pequenos agricultores originários da província de Trento, Itália, reside atualmente em São Paulo. Participa desde o ano de 1979 das atividades da luta pela reforma agrária, no MST e na Via Campesina Brasil.
Números
24 Estados
O MST está organizado em quase todo o território brasileiro.
27 anos
O MST foi criado no ano de 1984, no interior do Paraná.
Jornal O Povo, Fortaleza, Ceará, 31-03-2011