Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

“A Embrapa sempre foi uma empresa pública pautada pelos interesses das classes dominantes no campo”, critica o agrônomo Horácio Martins de Carvalho na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Horácio  é enfático ao dizer que o trabalho da Embrapa foi tomado pela lógica neocapitalista.

“Os processos de formação do pessoal da Embrapa, desde sua instituição, se colocavam entre os mais ousados do mundo. No entanto, apesar da multiplicidade de escolhas de onde estudar, a natureza da formação tendeu, mesmo que por vezes inconscientemente, para a construção de saberes no âmbito da racionalidade capitalista”, explica.

Horácio Martins de Carvalho é engenheiro agrônomo formado pela Escola Nacional de Agronomia da Universidade Rural do Brasil e especialista em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É membro do Conselho da Associação Brasileira de Reforma Agrária – ABRA, onde também foi presidente.

Confira a entrevista.

De que forma a Embrapa foi envolvida pelo neocapitalismo?

A Embrapa sempre foi uma empresa pública pautada pelos interesses das classes dominantes no campo, ainda que dentro dela tenha havido, desde a sua instituição em 1973, uma grande multiplicidade de opiniões técnico-científicas e linhas de pesquisa que abrangessem não somente a ampla diversidade da agropecuária e florestas do país como as dimensões social e ecológica na proposição de novas tecnologias.

Instituída em plena ditadura militar, ela recebeu ao menos três grandes legados: uma gama de instituições de pesquisa e experimentação agropecuária e florestal do então Departamento Nacional de Pesquisa e Experimentação (DNPEA) com todas as suas qualidades e vícios; uma cultura da pesquisa e desenvolvimento e da inovação tecnológica da denominada “revolução verde”, implantada no país de cima para baixo pelos governos da época e responsável pela modernização conservadora dos latifúndios; e uma racionalidade dominante, logo capitalista, na qual a possibilidade de chamado desenvolvimento rural era, nada menos, do que a expansão capitalista no campo.

O tratamento dado ao pequeno produtor rural – ainda que sempre contemplado nos programas da empresa – tem sido o de apoio ao enjeitado, semelhante à lógica de todos os governos federais e estaduais e de diversos setores de centro-esquerda política brasileira. Isso não significa que todos os pesquisadores e administradores da Embrapa tenham assim se comportado no seu dia a dia técnico-científico e administrativo. Porém, o referencial básico da percepção do mundo é a racionalidade da empresa capitalista. A questão mais relevante, a meu ver, é que essa lógica dominante da economia rebuçada pelo pensamento único neoliberal tenha se tornado hegemônica e base da visão estratégica da empresa em relação à geração de tecnologia.

Como isso muda o processo de trabalho e pesquisa da Embrapa?

Mesmo se considerando os esforços em alguns setores da empresa para dar conta da geração de tecnologias que contemplem a manutenção e ou a ampliação da biodiversidade nas ações antrópicas da produção rural, o que predominou foi a opção por uma lógica de gestão rural centrada na empresa capitalista, portanto, altamente predadora do social e dos recursos naturais.

Essa alternativa dominante induziu a oferta de novas tecnologias que fossem adequadas, por exemplo, à economia de escala, ao monocultivo, à motomecanização pesada, ao uso intensivo de insumos e à padronização final do produto. Enveredou-se, em conseqüência, por proposições muito além das sementes hídricas, caminhando-se celeremente pelos quintais metodológicos da geração de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs).

Duas forças internas relacionadas com o paradigma de agricultura no país aparentam se conflitarem entre si: a oferta de tecnologias que resgate e amplie a biodiversidade e aquelas que são favoráveis à manutenção dos monocultivos, monocriações e ao oligopólio privado das sementes, base da erosão genética. A própria construção da problemática de pesquisa segue, nessa perspectiva, paradigmas distintos.

Os processos de formação do pessoal (recursos humanos) da Embrapa, desde sua instituição, se colocavam entre os mais ousados do mundo. No entanto, apesar da multiplicidade de escolhas de onde estudar, a natureza da formação tendeu, mesmo que por vezes inconscientemente, para a construção de saberes no âmbito da racionalidade capitalista. A diversidade deu-se no interior dessa lógica, não contemplando outras possibilidades ou formas de se fazer agricultura, amplo senso.  E nesse sentido, e para não ficar fora do contexto mundial, que se enveredou para a engenharia genética contemporânea, para o registro de patentes das inovações tecnológicas e para as parcerias público-privado.

Não suponho que os pesquisadores fiquem à margem dos novos e complexos processos e métodos de pesquisa, entre eles a engenharia genética. Mas, uma coisa é se ser capaz de gerar OGMs que sejam de interesse social dos produtores e consumidores, ainda que na agricultura estejamos muito longe disso.

Outra coisa são as parcerias duvidosas com empresas transnacionais da indústria química que usufruem da capacidade instalada física e de recursos humanos da Embrapa e as usam para legitimar suas decisões de Pesquisa e Desenvolvimento que favorecem seus lucros, em detrimento de outras dimensões como a social e a ecológica.

A questão central das minhas observações não é, por exemplo, sobre a necessidade de ampliação de conhecimentos científicos os mais distintos, mas sim o uso que se fará dele. Nem mesmo o patenteamento é um viés, no mundo contemporâneo. O viés está no quem é e com quem se produz a tecnologia a ser patenteada. E, mais ainda, o que se faz com a patente concedida.

Onde vemos a presença desse neocapitalismo no trabalho desenvolvido pela Embrapa hoje?

Principalmente nas parcerias público-privadas com as grandes empresas transnacionais como Monsanto, Bayer, Basf, Syngenta e outras; na disponibilização do seu estoque de genomas, como o caso da soja, para empresas privadas; na sua presença no âmbito da cooperação internacional tendo como eixo central o processo (historicamente autoritário) de transferência de tecnologias para povos e sociedades com menor conhecimento técnico-científico organizado e instituições de produção de novas tecnologias, sem considerar as dimensões sócio-antropológicas e étnicas em presença; a própria natureza da tecnologia a ser “transferida”, quando nela se pode constatar e presença de OGMs, numa explícita afronta aos saberes populares de outros povos e à sua potencial capacidade de melhorar o desempenho da agricultura a partir das sementes convencionais melhoradas e de aprimoramento de seus processos de cultivos tradicionais criticamente considerados.

Neste sentido, a pressa de transferência tecnológica para povos de outros paises latinoamericanos e africanos, em nome do aumento da oferta de alimentos, reproduz as mesmices neocolonialistas do Banco Mundial, da FAO (sigla para Food and Agriculture Organization of the United Nations), do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), da Organização Mundial do Comércio (OMC) e das grandes empresas oligopolistas transnacionais. E porque não dizer do próprio governo brasileiro.

Essa opção concorre para a negação da importante história construída por amplas parcelas dos pesquisadores da Embrapa, tornando-a um instrumento acrítico de novas formas nada sutis de imperialismo técnico-científico, bem ao modo de ser das grandes empresas transnacionais oligopolizadoras de sementes, de insumos de origem industrial, de saberem técnico-científicos. E mais do que tudo, de concepções de mundo que favorecem as práticas de ampliação da acumulação oligopolizada do capital e o incremento indireto das desigualdades sociais.

A Embrapa, enquanto empresa governamental, portanto, prestadora de serviços ao público, não deveria se deixar conduzir pela lógica liberal que tem no mercado o guia supremo do que-fazer. O que se espera de uma grande empresa pública de pesquisa é ser capaz de evoluir no âmbito das contradições, inclusive indo no sentido contrário aos interesses dominantes que tem sido anti-sociais e anti-ecológicos. Deixar-se levar pela cultura de inovações tecnológicas das empresas multinacionais, mesmo que seus saberes técnico-científicos sejam considerados como ‘avançados’ do ponto de vista da geração tecnológica, é se alinhar com a cultura do atraso em relação à construção de uma sociedade que se deseja mais igualitária e harmoniosa.

O governo de uma sociedade não pode ser conduzido pelo mercado, menos ainda a geração de conhecimentos científicos e tecnológicos.  O mercado, de fato, é apenas um elemento que aí está, necessário em parte, e na maioria das vezes nem sempre relevante no governo de uma sociedade complexa.

Quem se beneficia com isso?

Quando a inovação tecnológica obedece aos interesses do lucro, quem se beneficia são os acionistas das empresas privadas. Retira-se da geração tecnológica pelas empresas estatais o caráter de serviço ao público para se tornarem - os seus negócios e os seus produtos, apenas mercadorias, sem qualquer compromisso com a democratização e universalização desejável da produção científica e tecnológica.

Esse “que-fazer” da produção tecnológica das empresas privadas é um que-fazer que se submete à competição doentia da geração de novidades que lhes permitam auferir uma taxa de lucro superior à de seus concorrentes, também possuídos pela patológica capacidade de ter mais destruindo seus concorrentes. O progresso técnico e as patentes que lhes permitem o usufruto da venda dos inventos e dos processos são indispensáveis para a realização da empresa capitalista. E, repetindo-se na história, os mercados tornaram-se cada vez subordinados aos interesses dos grandes grupos financeiros mundiais.

A oligopolização dos mercados agrícolas mundiais evidencia que o crescimento dos impérios setoriais de alimentos, fibras e agroenergia está diretamente associado ao da geração de inovações tecnológicas, de tendência em evidência para a consolidação do oligopólio do saber científico e tecnológico pelas grandes empresas transnacionais da indústria química, tais como exemplos, a Bayer, Basf, Syngenta, Dow, DuPont, Monsanto, articulados a outros conglomerados como Cargill, Bunge, ADM, Yara, Mosaic, Wall Mart, Souza Cruz, Nestlé, JBS, Marfrig, Unilever, entre outros poucos.

A crescente privatização da produção científica e tecnológica evidencia a natureza autoritária e discriminatória das sociedades contemporâneas, onde as pessoas são tornadas consumidores compulsivos das inovações tecnológicas, na sua maior parte socialmente inúteis, que garantem maiores e mais constantes lucros para os grupos privados multinacionais.

A Embrapa, ainda que no seu interior fermente a idéia e a proposta da sua abertura formal a capitais privados, não deveria ser objeto, enquanto instituição pública, dos mercados privados de saberes. Caso isso ocorra, pois é patente a tendência privatizadora dos governos, se confirmará, mais ainda, que o conhecimento e seu uso formal nos processos de pesquisa como a agropecuária e florestal, tornou-se uma mercadoria que é e será mais ainda monopolizada por alguns grupos econômicos de âmbito mundial. Contribuirá, em nome de uma modernidade absolutamente decadente, para a consolidação dos impérios de saberes, já caminhando em largos passos nas universidades direta ou indiretamente privatizadas.

Negar-se-á, nesse modo de ser atual da Embrapa, o que Hilton Japiassu denominou --- e sob outra perspectiva também o fez Paulo Freire, o papel de ser “educador da inteligência”, arrastando para os cantos encardidos da história a concepção libertadora de que o conhecimento é uma procura e não uma posse. Nessa dimensão o saber não deve se tornar uma mercadoria.

Que consequências o neocapitalismo pode trazer para o trabalho da Embrapa?

Já trouxe diversas conseqüências, inclusive a perda relativa da sua autonomia enquanto empresa pública geradora de tecnologias para os produtores rurais.  Mas, creio eu, que o mais indelével efeito é a dependência da Embrapa perante os interesses do grande capital multinacional da indústria química relacionada com a agricultura, expresso nas parcerias público-privado com empresas tipo Monsanto e outras, anteriormente citadas. Tais parcerias representam, assim como os OGMs que geram, o que há de mais condenável a partir da opinião pública esclarecida nacional e internacional. Significa, antes de tudo, que se concorda com o monopólio privado das sementes e dos genes, assim como com a mercantilização da vida.

Há uma conseqüência geral mais drástica, embora não envolva a todos os pesquisadores, que é a corrosiva perda de ética da ação pública, sendo gradativamente substituída pela ética do negócio privado.

A questão dos biocombustíveis tem a ver com esse processo dentro da Embrapa?

A Embrapa sempre dedicou linhas de pesquisas para a melhoria da matéria prima necessária à agroenergia. A onda dos agrocombustíveis, entre eles o etanol a partir da cana-de-açúcar, é relativamente recente, uma década, talvez. Mas, a pesquisa e experimentação com cana-de-açúcar e ou com outras matérias primas para a produção de etanol e mesmo de óleos combustíveis já possui muitas décadas, bem anterior mesmo à implantação do Próalcool em 1975.

A produção de energia a partir da biomassa é da maior relevância no âmbito da matriz energética brasileira. E a Embrapa assume seu papel de geradora de tecnologias para melhor produzir a matéria prima, assim como de determinadas tecnologias que contribuam para alguns processos de agroindustrialização.

O que representa um desvio político nessa oferta de tecnologias é a ênfase dada na geração de variedades de cana e outros cultivos para a agroenergia no âmbito dos OGMs. E a aceitação relativamente passiva desse modelo de produção de agroenergia a partir da biomassa dominante no país onde a grande empresa privada nacional e estrangeira decide o que é melhor para nossa sociedade.

A Embrapa, com a massa de talentos científicos e tecnológicos que possui, deveria ter sido a primeira a contestar esse modelo. Afinal, como coordenadora do Sistema Nacional de Pesquisa Agropecuária – SNPA, ela poderia apresentar outros paradigmas para o componente energia a partir da biomassa na matriz energética brasileira.  Mas, diga-me com quem andas que direi... o que serás capaz de fazer.

O agrocombustível tornou-se uma questão polêmica internacional em função da disputa entre terras destinadas para a produção de biomassa e aquelas terras destinadas à produção de alimentos. Essa questão em princípio não é a básica no Brasil em relação aos agrocombustíveis, ainda que a cada dia se reveste de maior relevância. O fundamental nessa temática é o modelo de produção e tecnológico adotado para tal iniciativa. Ele reproduz, com pequenos matizes distintos, a lógica escravagista na relação capital-trabalho, assim como no trato predatório com o meio ambiente.

Entre os seus diversos desvios, a política nacional de produção de etanol combustível estimulou a concentração e a desnacionalização das terras, o monocultivo, a concentração corporativa das usinas produtoras e, ainda que não generalizado, mas com relativa incidência de relações de trabalho similares ao do trabalho escravo.

Tanto os programas governamentais Próalcool I como o atual (Próalcool II) poderiam ter optado por um outro paradigma na oferta de matérias primas e a sua industrialização a partir de uma nova organização dos pequenos e médios produtores rurais, ampliando o processo de democratização do acesso à terra e do seu uso. Todavia, na prática, terminaram por consolidar, com recursos públicos, a grande empresa capitalista, a maior parte das quais nas mãos de usineiros tradicionais portadores de mentalidade escravagista e desgraçadamente alçados a “heróis nacionais” por um populismo de rodapé.

A Embrapa fez e faz parte desse movimento geral do governo federal com relação ao modelo de produção e tecnológico adotado no país e que contribui, em nome das parcerias científicas e da cooperação internacional, para a desnacionalização do saber científico e tecnológico nacional.

Quem esta por trás desse processo dentro da Embrapa?

Sem dúvida alguma que é o governo federal e o Congresso Nacional, enquanto responsáveis pela definição das macroestratégias nacionais e as de cooperação internacional de seus organismos de geração de tecnologias para a agricultura, entre outros. E, nesses contextos históricos, a concepção hegemônica reinante no interior da Embrapa. Além, evidentemente, das grandes empresas transnacionais ligadas direta e indiretamente ao agronegócio.

Mas há contradições internas na Embrapa. Há parcelas de pesquisadores e administradores que não aceitam esse “retalhamento interno da empresa” para se oferecer nos mercados, pela troca por melhores saberes e a obtenção dos melhores preços de conveniência, a massa de conhecimentos e resultados obtidos e acumulados pelo trabalho de seus pesquisadores e que foram gerados com recursos públicos nacionais.

Para que esse processo não se agrave, que medidas precisam ser tomadas dentro do instituto de pesquisa?

Na Embrapa, caso se exercite a democracia interna e se rompa com o corporativismo agônico, ela mesma poderá encontrar nos seus próprios quadros, na massa crítica que eles constituem – desde que os medos crônicos devidos a uma história interna eivada de mandonismos sejam sobrepujados, os melhores caminhos para se superar a tendência dominante de ser subserviente ao grande capital agrário e industrial.

A defesa do nacional não pressupõe o isolamento dos nossos cientistas, pesquisadores e professores do que se faz no mundo. Muito ao contrário, só pode haver identidade nacional perante os outros, quando se supõe que os outros são conhecidos.

Porém, a universalização do conhecimento vem enfrentando diversas barreiras econômicas, políticas e ideológicas devidas, sobretudo, à privatização crescente dos saberem científicos e tecnológicos. Não há uma inovação tecnológica gerada por empresas privadas que não tenha nela embutida a intenção explícita de monopolização temporária do segredo industrial e um preço de venda capaz de gerar lucros continuados, os mais altos sempre que possível. Daí a oligopolização dos saberes e fazeres na área da produção científica e tecnológica das empresas privadas.

Quem sabe a Embrapa, enquanto empresa que se deseja cada vez mais estatal e prestadora de serviços públicos, assim como pela qualidade de parte substancial de seus quadros, seja capaz de purgar suas deficiências e tornar-se cada vez melhor sem continuar sendo, por um lado,  submissa aos grandes grupos privados multinacionais e, por outro, arrogante perante os povos supostamente mais débeis como os das jovens repúblicas africanas.

1 de janeiro de 2011



Do IHU On-Line

 

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