Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

 

Nesta entrevista ao Jornal Sem Terra de janeiro, o engenheiro agrônomo e cientista social Horácio Martins de Carvalho faz uma profunda análise sobre a organização do agronegócio no mundo hoje e o lugar do Brasil nesse cenário. País com o maior estoque de terras agricultáveis, clima favorável à produção e governos entreguistas, o Brasil se configura, segundo Horácio, como o terceiro país na lista de prioridades dos planos de investimentos das grandes empresas transnacionais, que controlam os mercados de alimentos e agroenergia.

 

25 de janeiro de 2011, Do Jornal Sem Terra

Joana Tavares

JST – Como se explica o aumento da busca por terras em todo o mundo e quais as consequências no controle estrangeiro sobre as terras agricultáveis?

 

HC – O Incra estima que 4,34 milhões de hectares em todo o Brasil já estejam em mãos de capitalistas de outros países. Essa é uma estatística modesta devido à camuflagem que a concepção vigente de ‘empresa nacional’ proporciona, ao tolerar servilmente na sua composição societária a participação de mais 90% de capital estrangeiro. O que motiva a apropriação privada de terras agricultáveis pelas empresas transnacionais é a possibilidade efetiva de poucas dessas empresas exercerem o controle mundial sobre a oferta, comercialização e beneficiamento de alimentos e agrocombustíveis, além de se afirmarem como um império setorial sobre um setor fundamental da vida dos povos. A apropriação privada das terras agricultáveis passou a ser considerada pelas agências multilaterais Banco Mundial, FAO, UNCTAD e FIDA como investimentos agrícolas para o ‘desenvolvimento econômico nacional’. Para acobertar essa ocupação neocolonial das terras agricultáveis no mundo, foi elaborado, pelas agências acima citadas, um Código de Conduta, apresentado em abril de 2010 em Washington, capital dos Estados Unidos, durante a conferência anual de terras do Banco Mundial. O código objetiva a legitimação do mercado mundial de terras agricultáveis pelas grandes empresas transnacionais privadas e estatais. E como o recurso terra é limitado, o seu controle pela apropriação privada e ou pelo arrendamento das terras agricultáveis em todo o mundo se tornou prioridade geopolítica estratégica do agronegócio internacional. O Brasil é o país que possui o maior estoque de terras agricultáveis, um clima favorável à produção agrícola e governos entreguistas. Essa conjugação de fatores tem facilitado a aquisição de terras por estrangeiros e contribuído decisivamente para a negação da soberania alimentar e a nacional, submetendo os destinos do país às estratégias de negócios das grandes empresas nacionais e transnacionais.

 

JST – Calcula-se que o agronegócio tenha recebido cerca de R$ 90 bilhões de crédito para gerar um PIB de R$ 120 bi em 2010. Como se explica essa pouca produtividade?

 

HC – A regra na lógica do agronegócio é a reprodução dos interesses privados na agricultura a partir de recursos públicos, na sua maior parte a fundos politicamente perdidos para o contribuinte brasileiro. Isso inclui não apenas o crédito rural subsidiado e constantemente renegociado como as renúncias fiscais, redução de alíquotas e isenções de impostos. Sob essa lógica, ser grande empresário do agronegócio não é difícil, ainda que suas lideranças apregoem ideologicamente o livre mercado, a concorrência e a ausência do Estado na condução dos seus negócios. Não fazem mais do que sempre fizeram as classes dominantes no campo desde o período do Brasil colonial: falar contra a presença do Estado na economia e usufruir dele o máximo possível, sempre em detrimento da maioria da população. Nessas condições se explica, mesmo sendo imoral, que o agronegócio receba cerca de R$ 90 bilhões de crédito para gerar um PIB de R$ 120, de um total do PIB agrícola de R$ 160 bilhões. Não é de se estranhar, portanto, que o Brasil seja o terceiro país na lista de prioridades nos planos de investimentos no exterior das grandes empresas transnacionais.

 

JST – Por que se favorece o agronegócio quando a pequena agricultura produz mais alimentos para o mercado interno?

 

HC – O agronegócio se constitui numa fração importante da classe dominante no país: se apropriou privadamente da maior parte do território rural. A ‘modernização e a artificialização’ da agricultura, iniciada na década de 1950, tornou a burguesia agrária no Brasil forte compradora de produtos (insumos agrícolas, máquinas) de outras frações da burguesia. E os principais fornecedores desses insumos têm sido as empresas transnacionais do ramo da indústria química como a Bayer, Basf, Aventis, Dow, Monsanto e Syngenta. Os camponeses produzem mais alimentos do que o agronegócio, representam 84,4% do total de estabelecimentos rurais do país e defendem a soberania alimentar e popular. No entanto, não faz parte da concepção de mundo hegemônica no Brasil a proposta social de soberania alimentar e, menos ainda, de soberania popular. É mais fácil para os governos e para as empresas do agronegócio garantirem a segurança alimentar (não a soberania alimentar) pela importação de alimentos do que destinar recursos públicos para a melhoria da produção e da produtividade dos camponeses. Essa tendência se consolida quando os alimentos básicos como arroz, feijão, mandioca e leite, entre outros, se constituem em mercadorias, com preços definidos nos mercados. Esses produtos, outrora produzidos predominantemente pelos camponeses, passam a se constituir, também, em objeto de cobiça do agronegócio pelas margens de lucro que podem e poderão obter nas condições oligopolistas, tanto no mercado nacional como internacional. Ora, como poderia o governo liberal brasileiro deixar de fornecer acesso facilitado aos recursos públicos para o agronegócio se este é um dos elos fundamentais da cadeia de interesses do complexo mundial da indústria química,

de alimentos e de agroenergia? E se no ano de 2010 o Brasil passou a ser o maior

consumidor de agrotóxicos do mundo?

 

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