Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

O Brasil agrário é um mundo ainda marcado por grandes fluxos migratórios, disputas territoriais e contradições. O moderno e o arcaico convivem nessa parte do País, que abriga 16,4 milhões de pessoas e onde a concentração da propriedade permanece alta, apesar das políticas de redistribuição de terras. É isso o que sinaliza o recém-lançado Atlas da Questão Agrária Brasileira - conjunto de quase 300 mapas, acompanhados de análises, resultante da tese de doutorado do geógrafo Eduardo Girardi, desenvolvida no Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera), da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

ESTADÃO – 13/04/2009

Roldão Arruda

Poucas vezes um conjunto tão abrangente de informações sobre a questão foi reunido num estudo. Ele mostra que em determinadas partes do Brasil predominam relações trabalhistas avançadas, em termos capitalistas, envolvendo assalariados com altas rendas, enquanto em outras é possível encontrar empregados submetidos a condições de trabalho sub-humanas, semelhantes às da escravidão. Existem zonas de alta produtividade agrícola, com notável índice tecnológico, ao lado de terras sub-exploradas, mantidas como reserva de valor.

A movimentação de dinheiro, tecnologias e pessoas é tão grande que, em dez anos, entre 1996 e 2006, a área de agropecuária na Amazônia Legal cresceu 23 milhões de hectares - vastidão maior que a do território do Paraná. No mesmo período, os assentamentos da reforma agrária receberam 3,2 milhões de pessoas; e, no sentido inverso, 1,5 milhão de brasileiros foram obrigados a deixar o campo, por causa do desaparecimento de seus empregos.

É uma realidade complexa, difícil de ajustar num retrato. Mas é justamente essa a proposta do Atlas, cuja feitura contou com recursos da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Combinando informações conhecidas com outras inéditas e utilizando, exaustivamente, técnicas cartográficas, ele procura flagrar o que ocorre nesse mundo, que abrigava 44% da população do País 30 anos atrás e hoje contém o equivalente a apenas 8,2% do total.

O foco principal de Girardi, que defende franca e abertamente a reforma agrária, é a questão da propriedade da terra. Um dos capítulos mais detalhados do Atlas é o que trata da estrutura fundiária do País - com mapas inéditos sobre a situação dos Estados e municípios. Fica-se sabendo ali que, ao contrário do que acreditam líderes dos movimentos de sem-terra, a propriedade da terra não ficou mais concentrada nos últimos anos. Utilizando os dados disponíveis, Girardi mostra que houve até uma alteração para menos no chamado índice de Gini - critério de avaliação que varia 0 a 1, sendo que quanto mais alto maior é o grau de concentração de terras. Entre 1992 e 2003, o índice nacional baixou de 0,826 para 0,816 - uma variação de -0,010.

Não se trata, porém, de motivo para comemorar. Segundo Girardi, a marca de 0,816 é das mais altas, sinalizando que a terra continua concentrada nas mãos de poucos proprietários. Por outro lado, ela indica também o fracasso das políticas de reforma agrária desenvolvidas por sucessivos governos.

Entre 1979 e 2006, foram criados 7.666 assentamentos da reforma agrária, cobrindo uma área de 64,5 milhões de hectares. Era de se esperar que isso tivesse um impacto maior do que o registrado nos índices de concentração fundiária. Por que não teve? Em entrevista ao Estado, Girardi observou que nenhum dos governos esteve realmente interessado na reforma agrária, preocupando-se sobretudo em conter as pressões dos movimentos sociais e os conflitos no campo.

"Eles fazem isso sem alterar a estrutura fundiária", disse Girardi. Como é possível? Segundo o pesquisador, quem olhar o mapa da estrutura agrária verá que as ocupações de terras ocorrem numa área do País, no Centro-Sul e Nordeste, enquanto os assentamentos são concentrados na Região Norte: "Desde o regime militar, assentam-se pessoas nos confins da Amazônia, com o objetivo de não alterar a estrutura do Centro-Sul."

Outro objetivo dos governos, ao fincar assentamentos na Região Norte, seria engordar estatísticas: "O reconhecimento de posses, antigos projetos de colonização e unidades de conservação de uso sustentável são contados como assentamentos."

Girardi se opõe ao modelo agrário baseado no agronegócio, especialmente o da monocultura de soja, que atingiu seu ápice em Estados como Mato Grosso e Goiás. Recomenda uma intervenção maior do Estado, para impedir que terras continuem a ser usadas com fins especulativos e para incentivar o que chama de agricultura camponesa - aquela baseada no sistema familiar de produção.

 

Estudioso avalia que expansão agrícola dispensa Amazônia

Entre as projeções do geógrafo Eduardo Girardi em sua tese de doutorado, chama a atenção a de que o Brasil pode continuar expandindo a produção agropecuária por um período de mais 20 anos, a uma taxa de 4% ao ano, sem precisar tocar na floresta amazônica.

Ele se baseia em dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que apontavam em 1998 a existência de 55,8 milhões de hectares de terras da Amazônia Legal que poderiam ser exploradas mas não eram. Também considera que, entre 1998 e 2007, foram desflorestados na região 54,5 milhões de hectares - terras que se tornaram exploráveis - e que, entre 1996 e 2006, a área total de lavouras e de pastagens na mesma região foi ampliada em 23 milhões de hectares.

"Esses três dados nos permitem contradizer todo discurso que mencione a necessidade de desflorestamento na Amazônia, ou em qualquer outra região, para a obtenção de novas terras para a produção agropecuária", diz Girardi. Para ele, a agropecuária pode continuar se expandindo com a melhor exploração das áreas já abertas. Essa deveria ser a preocupação deste e dos próximos governos, afirma: "Devem criar alternativas para o desenvolvimento da agropecuária na Amazônia Legal que evitem ocupação de novas terras. O único objetivo da abertura de novas terras é a exploração de madeira e a apropriação de novas terras por grandes posseiros como reserva de valor".

 

Para analista, Nordeste requer política especial

 

Média de pessoas que vivem na zona rural é maior que a do País e rendimento agrícola é baixo

 

Para alguns estudiosos da questão agrária, a redistribuição de terras deveria se limitar a algumas áreas mais problemáticas do País - como a região nordestina. A tese de Eduardo Girardi, da Unesp, não endossa esse ponto de vista. Mas seus mapas apontam para a necessidade de políticas especiais para o Nordeste, onde persiste um alto grau de ruralização (a média de pessoas que vivem na zona rural é maior que a do País), mas com baixos salários, baixo rendimento agrícola, índice tecnológico sofrível.

"A questão agrária no Nordeste necessita, acima de tudo, de uma intervenção que auxilie a produção agropecuária camponesa - o que permitirá a melhoria de vida dessa população significativa", diz Girardi.

Observando os mapas, percebe-se que é impossível tratar o Nordeste da mesma maneira que outras regiões. Do Rio Grande do Sul a Goiás, passando por Santa Catarina, Paraná, São Paulo e parte de Minas, verifica-se a existência de um bolsão de riqueza, caracterizado pela diversificação agropecuária, alta produtividade, bons salários para os trabalhadores, intensa atividade familiar. "Os maiores rendimentos do pessoal envolvido na agropecuária coincidem com a região do agronegócio especializado", diz Girardi.

A questão do combate à violência também deveria ter tratamento diferenciado, segundo indicações de Girardi. De acordo com números da Comissão Pastoral da Terra (CPT), uma das fontes do Atlas da Questão Agrária, entre 1986 e 2006 verificou-se que 1.100 trabalhadores rurais e pequenos proprietários foram assassinados e 3.200 ameaçados de morte. O principal foco dessa violência é o Pará, onde a presença da máquina do Estado é fraca.

Vale notar que o assassinato da religiosa americana Dorothy Stang, o crime que mais chamou a atenção do País e teve repercussão internacional, em 2005, ocorreu no Pará. Outra observação sobre o Estado, contida no capítulo sobre estrutura fundiária do Atlas: fica no Sul do Pará uma das faixas com maior concentração de terras no País.

Girardi inclui o trabalho escravo entre as formas de violência no campo. Cita que, entre 1986 e 2006, a CPT registrou denúncias de escravidão em 368 municípios, envolvendo 140 mil trabalhadores.

"Para agravar o quadro", diz o pesquisador, "parte significativa desses trabalhadores tende a permanecer nos municípios onde foram escravizados, o que aumenta as chances de reincidência da prática".

 

 

 

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