Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Após a chegada do PT ao poder em 2002, o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) mantém sua importância histórica, mas perdeu adeptos, receitas e, ao comemorar seu aniversário de 25 anos neste mês, busca novas formas de se adaptar ao Brasil da era Lula.
É o que apontam dados levantados pela Folha que coincidem com a opiniões de especialistas sobre o tema da reforma agrária no país e no mundo.
O número de famílias invasoras caiu de 65.552, em 2003 -primeiro ano do governo Lula-, para 49.158, em 2007. O de novas famílias acampadas foi de 59.082 para 6.299-menos 89,34%. No período, a ocorrência de invasões oscilou de 391 para 364, afirma a CPT (Comissão da Pastoral da Terra).
"O pessoal, tendo pequenas ajudas, como a do Bolsa Família, não vai se inscrever nos batalhões de luta pela terra", diz dom Tomás Balduino, bispo de Goiás e conselheiro da CPT. De 2003 a 2008, o número de inscrições no Bolsa Família saltou de 3,5 milhões para 11 milhões.
Uma pesquisa feita pelo Datafolha com membros do MST em 1996 já demonstrava que a principal razão para a entrada no movimento era econômica.
Para 62% dos entrevistados, a vantagem atribuída ao assentamento era "independência financeira", sendo citados como exemplos "deixar de ser empregado", "poder negociar a própria produção" e "lucros com a venda da produção". Os principais problemas sobre os assentamentos eram "falta de infraestrutura" (22%), "falta de ajuda do governo" (19%) e "falta de recursos" (10%).
A despeito do momento de transição, o geógrafo da USP Ariovaldo Umbelino diz que o MST ainda é importante. "Com ele, a luta pela reforma agrária ganhou sua dimensão política e passou a se fazer nos fóruns políticos do país. A história dos primeiros anos mostrou a setores da sociedade que só através da luta é que se conseguiria a reforma agrária no Brasil", diz.
Umbelino também vê uma retração do MST e diz que ele passa por uma mudança de discurso, ao colocar a "luta contra o agronegócio" como principal bandeira. "Lula não cumpriu todas as metas [da reforma agrária], menos de 30% da meta foi atingida. O que fica demonstrado nos primeiros anos do governo Lula é que ele fez a opção pelo agronegócio."
O professor da Unesp Bernardo Fernandes afirma que "o papel atual [do MST] é seguir lutando para o desenvolvimento a partir dos paradigmas que defendem o campo como lugar de vida, onde as pessoas possam produzir alimentos saudáveis, recuperando ambientes degradados pela produção monocultora de grande escala."
Para frei Sérgio Görgen, militante desde a criação do MST, o foco do movimento no agronegócio resulta de uma mudança no perfil de seus participantes. "Hoje o MST mexe com um número significativo de produtores agrícolas e as questões dessa cadeia produtiva estão no movimento". Görgen diz que isso traz a preocupação com empresas transnacionais, como as que "controlam as sementes e insumos", e com questões produtivas mundiais.
Apesar das novas bandeiras do MST, o apoio popular não é expressivo no Brasil. Uma pesquisa feita em 2008 pelo Ibope a pedido da mineradora Vale do Rio Doce, um dos alvos dos sem-terra, mostrou que apenas 31% dos entrevistados diziam confiar no movimento, contra 65% que diziam não confiar.
A desconfiança aumentava quanto maior a escolaridade. Entre os que tinham estudado até a quarta série do ensino fundamental, a confiança era de 35%, e a desconfiança, de 60%. Entre aqueles com ensino superior, a confiança era de 19%, e a desconfiança, de 75%.
Zander Navarro, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul diz que o MST "perdeu a razão de ser". "Seria inevitável que a industrialização e a urbanização reduzissem, fortemente, a demanda social por terra em nosso país. É o que ocorre atualmente. Mas há o lado político, ou seja, o formato organizacional autoritário."
O professor, no entanto, diz que as invasões são um "instrumento de pressão histórico de trabalhadores rurais sem terra, em todo o mundo" e que as realizadas pelo MST são, em geral, pacíficas e não produzem danos materiais consideráveis.

Financiamento
O governo Lula repassou apenas R$ 1,4 milhão às principais entidades ligadas ao MST em 2008, segundo dados do Siafi. O número é muito diferente daquele registrado no primeiro mandato do petista. Entre 2003 e 2006, foram R$ 39,9 milhões repassados às três principais ONGs ligadas ao MST. No segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), foram R$ 9,6 milhões.
Historicamente, as ONGs Anca (Associação Nacional de Cooperação Agrícola), Concrab (Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil) e Iterra (Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária) são apontadas como as que têm maiores ligações com o MST.
O movimento, porém, diz que nunca recebeu dinheiro de nenhum governo e que se sustenta com "a ajuda dos próprios trabalhadores acampados e assentados, com a solidariedade da sociedade brasileira e com o apoio solidário de entidades e comitês de amigos no exterior, que acreditam nas experiências do MST". (FERNANDO BARROS DE MELLO, JOSÉ ALBERTO BOMBIG e ANA FLOR)

Governo assentou famílias longe das bases tradicionais

Entre 2003 e 2007, 68,5% dos sem-terra foram assentados na Amazônia Legal, distante das regiões Sul, Sudeste e Nordeste

Segundo Dataluta, apenas 4% das invasões foram na região Norte; para geógrafo, "essência" do movimento impede ações na Amazônia


EDUARDO SCOLESE
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Quando Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente, no final de 2002, trabalhadores rurais sem terra, em especial do MST, ergueram às pressas acampamentos pelo Brasil afora na expectativa de que a reforma agrária com "uma canetada só", como prometera o petista, enfim aconteceria.
O número de famílias à espera de um lote de terra saltou de 60 mil, no final de 2002, para 150 mil, em meados de 2003.
Revelada com essa corrida aos acampamentos, a esperança dos sem-terra se transformou em frustração: o governo federal priorizou o assentamento de famílias na região amazônica, bem distante das bases do movimento, nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste, principalmente.
Dados do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) obtidos pela Folha revelam que, das 448,9 mil famílias que o governo petista diz ter assentado entre 2003 e 2007, 307,5 mil (68,5%) foram beneficiadas em projetos na Amazônia Legal (região Norte, além de Mato Grosso e parte do Maranhão).
O Pará foi o Estado com o maior número de assentados, com 136,2 mil famílias, o equivalente a 30% do total do país.
A dinâmica atinge em cheio o movimento, com argumentos enfraquecidos para convencer os militantes a esperar um lote de terra. Na Amazônia Legal estão apenas 26% (59 mil) das 225 mil famílias acampadas.
A estratégia de encaixar famílias na Amazônia foi motivada, em parte, pelo avanço do preço da terra (lá existem muitas terras públicas federais disponíveis) e o fato de o governo manter na gaveta desde 2005 uma portaria que atualiza índices de produtividade usados na vistoria de imóveis rurais passíveis de desapropriação.
Como os índices em vigor estão defasados -os números usados são de 1975-, o fazendeiro tem mais facilidade para atingi-lo e, portanto, livrar-se da desapropriação da área pela improdutividade. Com novos índices, avalia o Incra, cresceria o número de imóveis desapropriados no Sul e Sudeste.
A colocação de famílias na Amazônia, onde a infraestrutura e as estradas são precárias, teve como pano de fundo a busca pelo cumprimento das metas oficiais de assentamento.
Lula repetiu os métodos do governo Fernando Henrique Cardoso e inflou os balanços de assentados com a inclusão de famílias que já estavam na terra, além de ter reconhecido como da União projetos de assentamentos criados por governos estaduais. Outra artimanha foi substituir o termo "famílias assentadas" por "famílias com acesso à terra", para que os beneficiados pudessem ser somados aos incluídos nos projetos clássicos da reforma.

Realidades distintas
Um dos principais especialistas em MST no país, o geógrafo Bernardo Mançano Fernandes, da Unesp (Universidade Estadual Paulista), afirma que a "essência" do movimento impede sua entrada na Amazônia.
Das 2.190 invasões de terra organizadas pelo MST entre 2000 e 2007, apenas 91 (4%) ocorreram no Norte do país, de acordo com o Dataluta, banco de dados sobre invasões de terra idealizado e coordenado por Fernandes no departamento de geografia da Unesp.
"Uma das razões para se compreender as dificuldades do MST para se organizar em alguns Estados da Amazônia está na sua essência. A origem do MST está na luta daqueles que foram expropriados da terra. São famílias que acreditam no desenvolvimento da agricultura camponesa e são contra o modelo monocultor agroexportador, que veio a ser denominado de agronegócio", diz.
Ainda de acordo com o Dataluta -que reúne dados da CPT (Comissão Pastoral da Terra) e da Ouvidoria Agrária Nacional, entre outras instituições- das 4.003 invasões no país entre 2000 e 2007, 2.190 foram do MST (55%).
Sobre a dificuldade de o movimento atuar na região Norte, Fernandes destaca a realidade local e a atuação de outros movimentos sociais. O MST não está organizado no Acre, Amapá e Amazonas, e atua de forma tímida no Pará, Tocantins, Rondônia e Roraima. "Nesses Estados predominam as lutas de posseiros de resistência na terra. Outra razão da modesta atuação do MST é a forte atuação de outros movimentos camponeses", diz o geógrafo.

Terra produtiva cresce, mas maior parte continua com poucos

De 1992 a 2003, houve um salto de 73% no número de propriedades com mais de 2.00 hectares; já as áreas médias e pequenas tiveram um aumento de 46%

AFONSO BENITES
DA REDAÇÃO

Mesmo com o aumento na quantidade de assentamentos rurais e a atuação dos movimentos sociais para que o governo crie novos projetos, a maior parte das terras ainda permanece nas mãos de grandes agropecuaristas.
Os últimos dados do Dataluta (banco de dados da luta pela terra) apontam que entre 1992 e 2003, período que consta do último censo agropecuário divulgado pelo IBGE, a área usada para a agricultura e pecuária no país aumentou de 310 milhões de hectares para 418 milhões. No entanto, ela está concentrada nas mãos de um grupo menor de pessoas.
Enquanto em 1992 existiam 2,9 milhões de propriedades rurais com mais de 2.000 hectares, em 2003, esse número saltou para 4,2 milhões, um crescimento de 73%.
Por outro lado, a quantidade de propriedades consideradas médias e pequenas (inferiores a 2.000 hectares) registrou aumento de 46%.
A extensão da fronteira agrícola, a mecanização das atividades rurais e a expulsão dos trabalhadores do campo são alguns dos fatores que, segundo o coordenador-adjunto do Núcleo de Estudos, Projetos e Pesquisas em Reforma Agrária da Unesp, Clifford Andrew Welch, contribuíram para aumentar a concentração de terras.
Para o pesquisador, o governo brasileiro tem falhado no processo de reforma agrária. "Como ainda há milhões de famílias querendo terra, pode-se dizer que o que se chama de reforma agrária hoje é um tipo de programa de assistência social sem o apoio suficiente para realmente viabilizar o pequeno agricultor", analisa.
O cenário poderia ser pior se os movimentos sociais não pressionassem o governo para que mais famílias fossem assentadas, avalia Welch.
"Falamos que a reforma agrária nunca houve e, sem os movimentos, não teria nem 20% das pessoas assentadas como estão hoje. Muito do que foi conseguido em termos de criação de assentamentos é devido a mobilização dos movimentos sociais, como o MST", afirma o pesquisador.
Nos últimos 30 anos, 7.841 assentamentos foram criados, conforme os dados do Dataluta. Em média, o governo federal instituiu 261 projetos por ano no período.
No entanto, entre 1979 e 1984, ano em que surgiu o MST, a quantidade de assentados era bem menor. Durante esse período, foram instituídos 528 novos projetos rurais para pequenos agricultores, uma média anual de 105.


MST diz que não precisa de CNPJ para fazer reforma

Sem o registro jurídico, movimento não é afetado legalmente por denúncias ou ações

Segundo advogado da CPT, a característica do MST é não ter personalidade jurídica, como o movimento garimpeiro ou ruralista


CLAUDIO DANTAS SEQUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

O MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) diz que não precisa ter CNPJ para empunhar a bandeira da reforma agrária, pois é "um movimento social de massa". "Os brasileiros que lutaram contra a escravidão, pela criação da Petrobras, pelas reformas de base e pelas Diretas-Já não precisaram de registro jurídico para sair às ruas", afirma a coordenação nacional do MST.
Sem personalidade jurídica, o movimento não é afetado legalmente por denúncias, processos ou cobranças judiciais.
Não surtiu efeito, por exemplo, a tentativa do Conselho Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul de dissolver o movimento. O conselho aprovou, em 2007, relatório do promotor Gilberto Thums propondo ação civil pública para declarar o MST ilegal. "Como não tem CNPJ [Cadastro Nacional de Pessoal Jurídica], não deu para extingui-lo. Minha ideia era parecida com a de dissolver a Mancha Verde [torcida organizada do Palmeiras extinta pela Justiça em 1996], mas não consegui", disse à Folha.
O promotor, no entanto, comemora "algumas vitórias". "Conseguimos desativar dois acampamentos com mais de 400 acampados, criamos um cadastro dos integrantes do MST e proibimos o uso de foices em marchas."
Thums defende a caracterização do MST como "personalidade judiciária", pela qual o movimento poderia figurar como autor ou réu em processos.
Para o MST, o objetivo de Thums é criminalizar os movimentos sociais. "A característica do movimento é não ter personalidade jurídica, como o movimento garimpeiro ou ruralista. As críticas são parte de um processo de perseguição da direita", diz o advogado José Batista Afonso, da CPT (Comissão Pastoral da Terra).

 

Apoio da sociedade mantém MST atuante, afirma Stedile

Economista diz que, para 2010, sem-terra querem governo "mais à esquerda" do que Lula

Coordenador do movimento afirma que mobilização em invasões diminuiu porque reforma agrária está parada, e ações do Incra, mais lentas


DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Em entrevista à Folha, o economista João Pedro Stedile, 58, coordenador nacional do MST, disse que, sem o apoio da sociedade nesses 25 anos, o movimento teria acabado. Para 2010, afirmou, os sem-terra esperam a eleição de um governo "mais à esquerda" do que a atual gestão de Lula. (EDUARDO SCOLESE)

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FOLHA - Quando o MST foi criado, em 1984, o sr. imaginava que o movimento chegaria aos 25 anos? Quais foram os momentos mais difíceis nessa trajetória?
JOÃO PEDRO STEDILE
- Estávamos apenas preocupados em construir um processo unificado de luta pela reforma agrária. Nesses anos, vivemos muitos momentos difíceis. Os piores foram os dois anos do governo Collor [1990-1992] e, depois, os últimos dois anos do governo FHC [2001 e 2002].

FOLHA - E os méritos?
STEDILE
- Mais de 500 mil famílias foram assentadas. Essas famílias resolveram seus problemas fundamentais, como trabalho, casa e educação para os filhos. Infelizmente, nem todos conseguiram resolver seus problemas de renda.

FOLHA - Por conta de seu novo foco, contra o agronegócio, e da decepção com o governo Lula, o MST passa pelo momento mais delicado?
STEDILE
- Não fomos nós que mudamos, mas o foco do capital na agricultura. A reforma agrária foi bloqueada dentro do neoliberalismo, o que politizou a realidade do campo e o MST. Já tivemos momentos mais ou tão delicados como o atual.

FOLHA - O MST e seus militantes parecem bem mais silenciosos. A consolidação do Bolsa Família contribuiu para enfraquecê-lo?
STEDILE
- A imprensa brasileira é que nos silenciou, embora não tenhamos parado de falar. O Bolsa Família é uma política para diminuir a fome de milhares de brasileiros, que estão na miséria e não fazem lutas. Não é a base social do MST. A mobilização em ocupações massivas diminuiu porque a reforma agrária está parada, e as ações do Incra, mais demoradas. As famílias ficam desanimadas.

FOLHA - Pesquisas de opinião mostram que os brasileiros são favoráveis à reforma agrária, mas contrários às invasões e à destruição de laboratórios e plantações. O apoio da sociedade interessa ao MST?
STEDILE
- O apoio da sociedade ao MST e à reforma agrária continua muito forte. Se não fosse esse suporte, o MST já teria desaparecido.

FOLHA - Alguns analistas dizem que o eventual retorno de um governo de oposição ao atual faria bem ao MST, pois o movimento não ficaria mais nessa "sinuca de bico" entre atacar ou não um governo aliado. O sr. concorda?
STEDILE
- É uma leitura equivocada. Nós sempre votamos em candidatos progressistas e, de preferência, de esquerda.
Queremos que o próximo governo seja mais à esquerda do que o governo Lula, que foi um governo de composição política. Mesmo assim, vamos seguir a nossa política histórica de manutenção da autonomia em relação aos governos.


Para ruralistas, o movimento perdeu espaço

DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Ao falar sobre os 25 anos do MST, representantes de entidades e da bancada ruralista no Congresso consideram que o movimento perdeu espaço na sociedade e criticam o fato de ele não existir juridicamente, o que, segundo eles, impede a prisão de seus dirigentes.
Para Cesário Ramalho da Silva, presidente da SRB (Sociedade Rural Brasileira), o MST perdeu espaço muito por conta da evolução da agricultura. "Perdeu o foco, perdeu a razão de ser. O MST é produto de uma sociedade que estava desorganizada. É produto de um desemprego que existia, é produto da falta de crescimento que o país teve e que deixou de oferecer os empregos adequados às pessoas. Então criou-se um movimento social, que você até pode justificar, só que a forma de atuar deles atrasou o país", afirma.
João Bosco Leal, presidente do MNP (Movimento Nacional dos Produtores), em meio a uma série de críticas ao movimento, consegue encontrar um único ponto positivo: o de ter inibido a ação dos especuladores da terra. "Esse movimento trouxe destruição, baderna, ilegalidade, criminalização. Agora eu realmente penso que muita gente que estava no campo com uma propriedade só para valorizá-la, esse cara ou vendeu a sua propriedade para sair fora ou fez a sua propriedade produzir para não perdê-la", diz: "Esse movimento provocou isso. Foi positivo, não posso negar".
Principal entidade sindical do campo, a CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) diz que os sem-terra têm promovido "chantagem política" e que a reforma agrária tornou-se uma "assombração viva" para os produtores rurais.
"Vista inicialmente como apelo social, [a reforma agrária] tornou-se uma assombração viva e perturbadora da produção da paz", disse a senadora Kátia Abreu (DEM-TO) em sua posse na CNA no mês passado.
Um dos líderes dos ruralistas no Congresso, o deputado Ronaldo Caiado (DEM-GO) critica a falta de CNPJ do MST. "Até hoje eles não constituíram uma entidade. São pessoas que se resguardam na clandestinidade. São pessoas que atacam, invadem e destroem e simplesmente não sofrem as penalidades da lei. Isso dá a eles um conforto inimaginável", diz.
O movimento não tem CNPJ nem direção legalmente constituída, numa estratégia de blindagem bolada desde sua criação.
"O cidadão é recebido pelo presidente, participa de planos de governo e não se preocupa em seguir as normas", completa Caiado, fundador, nos anos 80, da UDR (União Democrática Ruralista), criada para barrar a reforma agrária. (EDUARDO SCOLESE)


Fundadores do MST contam como nasceu o movimento

DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Barulhento, muitas vezes violento, odiado por uns, idolatrado por outros e enraizado como um dos principais atores políticos do país, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) foi criado em 20 de janeiro de 1984 e, um ano depois, no primeiro congresso dos sem-terra, elegeu a sua primeira direção nacional.
Esse primeiro comando dos sem-terra se formou com 18 homens e duas mulheres. Eles e elas representavam os dez Estados nos quais o movimento estava organizado (RS, SC, PR, MS, SP, RJ, MG, ES, BA e RO) e traziam consigo histórias de infância e trabalho na roça, pouco estudo, migrações e, principalmente, militância em sindicatos e em pastorais católicas.
No ano passado, o repórter Eduardo Scolese e o repórter-fotográfico Sérgio Lima, ambos da Sucursal de Brasília da Folha, buscaram localizar e contar a história desse grupo.
No caminho, descobriram o paradeiro de 17 deles, sendo dois mortos e um que preferiu não dar entrevista. Entre os 14 personagens há casos semelhantes e inusitados, como dos que largaram o movimento por conta da família e dos que, por outro lado, sacrificaram a família por conta da militância. Há um ex-diretor do MST agora caminhoneiro, um que virou frentista e um hoje assessor do Planalto. O resultado completo desse projeto aparece no livro "Pioneiros do MST - Caminhos e Descaminhos de Homens e Mulheres que Criaram o Movimento", da editora Record, que estará na semana que vem nas livrarias. A seguir, leia trechos do livro e da trajetória de alguns desses personagens.



INFÂNCIA
Osvaldo [Xavier] começou a trabalhar aos seis anos de idade. De terça a domingo, era acordado pela mãe às 2h para ajudar na fabricação de farinha. Os irmãos mais novos, com 5, 4 e 3 anos, também ajudavam.
Somente o irmão de dois anos era poupado do serviço. Do quarto das crianças à casa de farinha eram cerca de 100 metros. A mãe caminhava na frente, para acender o fogo. Os filhos ajudavam a esfarelar pedaços de mandioca. Apertavam com as mãos até que a massa ficasse solta o suficiente para passar numa peneira. Enquanto isso, o pai cozinhava pacientemente a massa em fogo brando. Às 4h as crianças podiam descansar um pouco. Deitavam ali mesmo, num canto da casa de farinha, em cima de couros de boi usados como esteira. O cochilo era rápido. Duas horas depois tinham de ajudar o pai a puxar os burros para arar a terra e carregar sacos de farinha.
Às segundas-feiras Osvaldo conseguia dormir até mais tarde. Acordava às seis da manhã para ajudar o pai a levar os sacos de farinha ao vilarejo mais próximo. Até o meio-dia, eram duas viagens, num total de 8 quilômetros segurando o cabresto de um burro. Até então, Osvaldo nunca tinha visto um professor. Nunca tinha visto um médico. Os irmãos e as irmãs nasciam nas mãos de parteiras da comunidade.

MILITÂNCIA x FAMÍLIA
Líder nacional do MST, Geraldo [dos Santos] tinha um lote absolutamente improdutivo. Viajava pelo Brasil divulgando a teoria de produção e a organização do movimento, enquanto a sua prática era um desastre.
Os 22 hectares de terra estavam cobertos de capoeira, um tipo de vegetação duro de ser arrancado. O pouco de milho e de feijão plantados havia acabado. Duas vacas soltas no lote garantiam pelo menos o leite das duas meninas.
O local onde Geraldo, a mulher e as filhas dormiam não poderia ser chamado de uma casa convencional. Era um galpãozinho de madeira, parte assoalhada e parte de chão. À noite, a família ficava junta num canto, protegendo-se do frio; outro canto era reservado a um amontoado de milho.
Enquanto isso, Eloni [mulher de Geraldo] via as condições mais favoráveis das demais famílias do assentamento e enxergava também a dominação do marido pelas atividades do movimento. A compreensão dela com aquela rotina estava no limite. Mal conseguia alimentar as filhas. Roupas novas nem pensar. Um dia ela estourou. Longe das crianças, chamou Geraldo para uma conversa e colocou as cartas na mesa: "Se continuar assim, eu vou dar outro jeito. Largue um pouco a luta, se defina, senão vou tomar o meu rumo".

INVASÃO DE TERRA
Naquele fim de tarde chuvoso, dirigindo uma Kombi emprestada pela igreja por 12 municípios vizinhos de Três Passos, [Darci Maschio] enfrentou estradas enlameadas para avisar um a um os líderes sem-terra, sindicalistas e assessores da Pastoral da Terra. Cada um deles teria a tarefa de avisar as demais famílias locais interessadas em participar da ação.
Curto e grosso, efeito da pressão de coordenar uma ação daquele tamanho, Darci pediu que cada um desses emissários enchesse as carrocerias dos caminhões com colonos e, por volta das dez da noite, estivesse estacionado no trevo de saída para Três Passos e Santa Rosa. De dez em dez, os caminhões partiriam em comboios para a Annoni, uma área cujo processo de desapropriação estava travado na Justiça desde 1975, e que se tornou emblemática para o movimento.
Darci ainda deu outra orientação: "Se a fileira com dez caminhões for interceptada em alguma barreira da polícia rodoviária, saltem imediatamente das carrocerias e ergam ali mesmo o acampamento".

TÁTICAS
"E aí, dom José [Gomes], como é que está o tempo?"
"O tempo está bom, Chicão [Dal Chiavon]. Está estrelado, tudo bem", respondeu o bispo [de Chapecó], com voz baixa, demonstrando preocupação com os riscos daquelas ações.
Ainda hoje o sigilo de uma ocupação é fundamental para seu o sucesso. Naquele tempo era primordial. O país acabava de sair de uma ditadura, e os órgãos de repressão ainda estavam com as estruturas de alerta atuantes. Por isso, falar em código era mais do que uma simples precaução. Uma pergunta sobre as condições do tempo, por exemplo, era uma forma de buscar novidades da organização dos sem-terra para as ações. Uma resposta de céu estrelado era sinal de que as coisas caminhavam conforme o combinado. Naquele telefonema [em 1985], o que Chicão menos queria ouvir era uma resposta de tempo ruim.

AMEAÇAS DE MORTE
A viagem começou em silêncio. Santina [Grasseli] não tirava os olhos da janela. Até então, não tinha motivos para desconfiar daquele rapaz sentado no banco ao lado. Alguns minutos se passaram, e o rapaz se levantou. Ao contrário do que faria qualquer passageiro, ele não seguiu em direção ao motorista para solicitar a parada. Ficou de pé, com o corpo virado na direção de Santina.
Angustiada, Santina tirou os olhos da janela e ouviu, pela primeira vez, a voz daquele homem: "Você não tem medo do que anda fazendo por aí?" A resposta de Santina foi para desconversar. "Não sei do que você está falando."
Mas o rapaz foi mais direto. "Sou bem informado, e é bom você lembrar que tem filhos pequenos." Santina se manteve imóvel e ouviu um último recado. "A gente se encontra." O rapaz desembarcou no primeiro povoado, e Santina nunca mais viu o rosto do qual nunca se esqueceu.

ASSENTAMENTO
Olinda [Maria de Oliveira] retornou à Bahia em março de 1999. Deixou a mudança na casa de familiares em Santa Maria da Vitória e percorreu outros 140 quilômetros para visitar o lote de terra, em Sítio do Mato, no assentamento Reunidas José de Rosa, uma homenagem dos sem-terra a Zeca de Rosa. A primeira impressão foi péssima. Com dois anos na terra, as famílias estavam todas ainda no meio do mato e debaixo de barracos de lona preta. A área, uma antiga fazenda de 2.700 hectares devastada por um padre serralheiro, já estava devidamente desapropriada desde dezembro de 1997, restando apenas a liberação dos créditos de instalação. Um fio de arrependimento passou perto de Olinda, mas ela tratou logo de se ajeitar por lá. Enquanto construía seu barraco, passou alguns dias instalada na única casinha de alvenaria do assentamento. Com a chegada de Olinda, esse abrigo se transformou numa escolinha.

VIOLÊNCIA
Sem chamar a atenção da polícia e dos demais acampados, Parafuso [Agnor Bicalho Vieira] recolheu os documentos e algumas peças de roupa de Dirceu [jovem que acabara de matar um fazendeiro] e correu de volta ao matagal daquela fazenda de 2.200 hectares.
Lá, sacou do bolso 250 cruzeiros e entregou tudo a Dirceu. Pediu que ele se acalmasse e seguisse pelos fundos da fazenda, até cair na primeira rodovia. De lá, pegaria carona até a rodoviária de Joinville e, depois, um ônibus direto para São Paulo. "Guarde esse endereço. É o da secretaria do MST lá em São Paulo. Eles vão te ajudar... Agora se manda."
Dirceu sumiu no meio do mato. Parafuso telefonou no mesmo dia para São Paulo e passou as coordenadas daquele jovem sem-terra. Da capital paulista, Dirceu foi enviado pelo movimento ao Pontal do Paranapanema, foco de conflitos de terra no extremo oeste do Estado, onde mudou de nome, virou assentado da reforma agrária, casou e teve filhos.

PÓS-MST
Santos [Luiz Silva] está lá [na empresa de transporte] desde o início de 2006. Com a carteira de trabalho assinada, o ex-motorista de trator, de ônibus escolar e até de ambulância agora comanda um Mercedes-Benz branco, com seis cilindros e dois eixos traseiros. São pelo menos três viagens por mês. Os destinos mais comuns são Brasília, Goiânia e Campo Grande, com a carroceria baú carregada de produtos eletrônicos, eletrodomésticos, medicamentos ou algum tipo de veneno. A viagem mais longa de Santos foi a Alta Floresta, na Amazônia mato-grossense. Foram dez dias longe da família, para levar veneno de matar formiga a uma fazenda no meio da selva, a 2.500 quilômetros de São Paulo.
Santos não se queixa. Não compara essas viagens com aquelas que fazia em tempos de executiva do MST. Agora, uma semana distante da mulher, dos filhos e do neto é como uma obrigação, parte de um serviço que sempre quis fazer. A cada viagem, os trocados restantes das diárias se transformam em alguns retoques a mais na casinha do Parque Imperial.

 

Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

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