O governo Lula encontra-se num dilema hamletiano: respeitar a Constituição e desagradar o maior partido de sua coligação eleitoral, o PMDB, ou agradar os correligionários de José Sarney e desrespeitar a Constituição.A Constituição Brasileira de 1988 traz, no seu bojo, inegável caráter social. Falta ao Executivo e ao Legislativo passá-lo do papel à realidade. Uma das exigências constitucionais é a revisão periódica - a cada 10 anos - dos índices de produtividade da terra. Eles são utilizados para classificar como produtivo ou improdutivo um imóvel rural e agilizar, com transparência, a desapropriação das terras para efeito de reforma agrária.
* Frei Betto
Na quarta, 12 de agosto, dirigentes do MST e ministros do governo Lula reuniram-se em Brasília. O MST havia promovido, no dias anteriores, uma série de manifestações, consciente de que governo é que nem feijão, só funciona na panela de pressão. Além de reivindicar a revisão dos índices de produtividade da terra, o MST, a Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) e a Fetraf (Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar) querem a reposição do corte de R$ 550 milhões feito este ano no orçamento do Incra, quantia destinada à obtenção de terras para a reforma agrária.
O representante do Ministério da Fazenda declarou que a crise é grave, a arrecadação diminuiu entre 30 e 50% no primeiro semestre deste ano, e que o governo tem dificuldades de repor o orçamento do Incra, embora conste da lei orçamentária aprovada pelo Congresso.
Os trabalhadores rurais querem apenas que se cumpra a lei. É impossível acreditar que o Ministério da Fazenda não tenha recursos. Se fosse verdade, não teria desonerado impostos de outros setores da sociedade, como a indústria automobilística, cujo IPI mereceu desoneração de cerca de R$ 20 bilhões, e o depósito à vista dos bancos, que possibilitou a eles reter, em seus cofres, R$ 80 bilhões. O governo tem dinheiro, mas reluta em investir na reforma agrária e na pequena agricultura.
A reforma agrária viria modernizar o capitalismo brasileiro. Inclusive conter os reflexos da crise financeira mundial no setor agrícola. No Brasil, a crise afetou a produção de soja, algodão e milho, e reduziu o preço das commodities e a taxa de lucro dos produtores rurais. Mas quem pagou a conta foram os trabalhadores rurais assalariados. Cerca de 300 mil ficaram desempregados.
O agronegócio é o modelo de produção que expulsa mão de obra porque adota a mecanização intensiva. Que rumo tomaram os desempregados? Vieram engrossar o cinturão de favelas em torno das cidades, viver de bicos, enquanto seus filhos são tentados e assediados pela criminalidade. Por que o governo não assentou essa gente?
O Brasil é, hoje, o maior consumidor mundial de agrotóxicos. Na safra passada, jogaram 713 milhões de toneladas de veneno sobre o nosso solo, a nossa água e os nossos alimentos. Enquanto aumentam as exportações, aumenta também a produção de alimentos contaminados, responsáveis pela maior incidência de enfermidades letais, como o câncer. É preciso mudar o atual modelo agrícola, prejudicial ao meio ambiente e à agricultura familiar.
O prazo dado pelo presidente Lula para a revisão dos índices de produtividade da terra expirou a 2 de setembro, sem que o Planalto se posicionasse. A decisão sobre a atualização havia sido tomada em 18 de agosto http://noticias.uol.com.br/politica/2009/08/18/ult5773u2116.jhtm, numa reunião de Lula com ministros, da qual não participou o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes. Na ocasião, foi estipulado um prazo de 15 dias.
A Portaria de revisão dos índices precisa ser assinada por Stephanes e pelo ministro Guilherme Cassel, do Desenvolvimento Agrário, a tempo de entrar em vigor em 2010. Segundo a assessoria do ministério do Desenvolvimento Agrário, Cassel rubricou a medida um dia após a promessa feita por Lula, e a encaminhou a Stephanes.
O ministro da Agricultura, pressionado pela bancada do seu partido, o PMDB, já se manifestou publicamente contrário à proposta e não assinou a portaria.
Resta ao presidente Lula decidir-se entre Constituição, que ele assinou como constituinte e tem por obrigação respeitar, e o setor do PMDB que ainda encara o Brasil como um imenso latifúndio ainda dividido entre a casa-grande e a senzala.
[Autor de "Calendário do Poder" (Rocco), entre outros livros.
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* Escritor e assessor de movimentos sociais
Fonte: Adital Notícias