Em audiência pública em 1º de julho na Câmara, o deputado Luiz Carlos Heinze (PP-RS) fez uma defesa ao mesmo tempo apaixonada e saudosa da ditadura militar no Brasil. Segundo ele, vivemos hoje em outro tipo de regime, muito pior do que o dos militares. É o regime da “ditadura de certos órgãos de imprensa”, disse Heinze, “que vendem para o mundo uma imagem errada do Brasil”. A imagem correta, para ele, deve ser a de um país de alienados, em que a população não deve ser informada de nada e muito menos sobre o que come.
* Rafael Cruz
Heinze age do jeito que fala. Em 16 de outubro do ano passado, ironicamente a data em que se celebra o Dia da Alimentação, o deputado apresentou um projeto de lei que foi apelidado de “rotulagem, zero”. Basicamente, sua proposta é banir dos rótulos da comida dos brasileiros qualquer informação sobre se os produtos contêm ou não transgênicos. O projeto de Heinze está tramitando com uma celeridade incomum para os padrões legislativos brasileiros. Já passou pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, nem sequer foi debatido nas Comissões de Agricultura e Meio Ambiente e, no momento, aguarda uma decisão de líderes partidários para ser submetido à votação em plenário.
Se o projeto for aprovado, o Brasil vai dar um passo atrás e condenar sua população à mais completa ignorância alimentar. Grandes serão as chances de que qualquer um de nós, mesmo que seja contra transgênicos, acabe engolindo uma engenharia genética da Monsanto achando que está consumido um produto criado pela natureza. Aprovada no Brasil em 2005, mas plantada clandestinamente desde 1997, a soja transgênica representa hoje cerca de 60% de toda a produção brasileira do grão. Transformada em lecitina, óleo e gordura, entre outros derivados, a soja é parte de inúmeros tipos de produtos da indústria da alimentação, de biscoitos a cereais, de margarinas a papinhas para criança.
Segundo o atual decreto de rotulagem, se 1% ou mais dos ingredientes que compõem esses produtos forem transgênicos, o produto final deve ser rotulado com um T preto dentro de um triângulo amarelo (símbolo da rotulagem definido pelo Ministério da Justiça após consulta pública). O decreto define que a informação sobre a natureza transgênica do grão “deverá constar do documento fiscal, de modo que essa informação acompanhe o produto ou ingrediente em todas as etapas da cadeia”. Ou seja, deve-se rastrear o produto, saber de onde ele veio e como foi produzido.
O projeto do deputado Luiz Carlos Heinze retira essa necessidade com a sutileza de quem quer mascarar suas meas intenções. Ele mantém a rotulagem para alimentos com 1% ou mais de transgênicos, mas define que para isso os testes devem ser feitos nos produtos finais, já processados, e cuja detecção é impossível de ser obtida na grande maioria dos casos. A ausência de rastreabilidade prejudica não só o direito de todos os brasileiros de saberem o que consomem, mas também a liberdade de parte da indústria que queira trabalhar com alimentos livres de transgênicos por princípio ou por pura estratégia de negócio.
O desconhecimento da origem e natureza de qualquer produto é incompatível com a noção de consumo que tem se construído ao longo dos últimos anos. Tal mudança de paradigma, que valoriza os bons métodos de produção, é uma tendência não só no Brasil, mas no mundo todo, inclusive nos países que hoje compram soja, carne, etanol e outros produtos brasileiros.
Não por acaso a França, a Alemanha e outros países europeus possuem claras leis de rotulagem de transgênicos baseadas na rastreabilidade do grão, inclusive da nossa própria produção que é exportada para a Europa. Essa prática não deveria ser um privilégio dos compradores internacionais, mas garantida também para os consumidores brasileiros.
O projeto “rotulagem zero” de Heinze se torna ainda mais nocivo neste momento em que o Brasil colheu sua primeira safra de milho transgênico, sob total descontrole acerca de contaminação na cadeia produtiva, conforme contou reportagem da Folha de S. Paulo publicada em 10 de maio. A exemplo da soja, o milho é parte de inúmeros produtos, como o cereal matinal ou os salgadinhos que as crianças consomem diariamente, e sobre os quais se deve garantir o direito de escolha.
A tendência a cultivar a desinformação demonstrada pelo deputado Luiz Carlos Heinze pode colocar o Brasil na contramão da nova lógica econômica do século 21, que preza cada vez mais pela informação e preservação ambiental. Neste contexto, seu Projeto de Lei n º 4148/2008 representa uma espécie de “ditadura transgênica”, na qual perderá o Brasil, com portas fechadas no mercado internacional, e os brasileiros, desprovidos do direito de escolher o que querem comer.
* Coordenador da campanha de transgênicos do Greenpeace
Fonte: Correio Braziliense