SURGENTE – Há anos, no Brasil, fala-se em Reforma Agrária. Entretanto, a realidade é outra, com a grilagem intensificando o processo de concentração de terra.
Ladislau – Eu vou partir da minha própria experiência. Sou de origem polonesa, meus avôs vieram da Polônia, onde houve uma Reforma Agrária entre as duas últimas grandes guerras mundiais. Hoje, na Polônia, mais de 30% da população é rural. No Brasil, com essa imensidão territorial, apenas 18% dos habitantes vivem no campo. Quando eu era pequeno, não podíamos falar a palavra “Reforma Agrária” porque diziam que era atitude de comunista. Entretanto, a Polônia foi salva por essa divisão de terras. Depois, começaram a criminalizar movimentos sociais que lutam por uma reforma efetiva, que é engavetada quando candidatos eleitos tomam posse.
SURGENTE – O senhor publicou uma nota pública comparando a MP 458, agora uma Lei, com o momento histórico da Lei de Terras de 1850. Poderia explicar essa relação?
Ladislau – Em 1850, fecharam as portas para a Reforma Agrária. Apenas grandes proprietários e ruralistas tiveram acesso à terra, pois podiam pagar por ela, ao contrário da maior parte do povo. Agora, a chamada regularização de terras vai beneficiar novamente grandes proprietários e deixar à margem os pequenos agricultores. A não ser aquela pequena porcentagem de propriedades até 100 hectares, na Amazônia, que devem chegar a 5% ou 7%, que pela Constituição seriam as únicas passíveis de regularização.
SURGENTE – A Comissão Pastoral da Terra defende que as propriedades devem ter um limite.
Ladislau – Essa é uma proposta que estamos lutando há muito tempo. Vou resgatar um pouco à memória. Em 1988, foi promulgada a nova Constituição brasileira, conhecida como a Constituição Cidadã. Nessa época, o povo podia participar da elaboração da carta constitucional. A proposta que recebeu mais apoio da população foi justamente a limitação da propriedade, mas o lobie ruralista era muito forte e a rejeitou. Então, hoje, grande parte da violência no campo tem que ser creditada aos ruralistas que impediram o avanço dessa proposta que limitava a extensão de terras. Não existe Reforma Agrária sem um limite para a propriedade.
SURGENTE – Então, nós temos que combater o latifúndio?
Ladislau – Exatamente. As grandes propriedades estão crescendo e, na Amazônia, onde existem terras com mais de um milhão de hectares, surgirão novos latifúndios. Com essa nova Lei, os latifundiários acumularão mais terras, já que o próximo presidente poderá sancionar a regularização das mesmas. Então, fica muito simples impedir a reforma agrária. Se na Constituição fosse introduzida a questão da limitação fundiária, ajudaria o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Incra a implementarem a reforma agrária.
SURGENTE – São 67 milhões de hectares que serão regularizados. É muita coisa.
Ladislau – As propriedades griladas são mais ainda. São 100 milhões de hectares grilados no Brasil. É isso que marginaliza muita gente com vocação para trabalhar na terra, como é o caso dos trabalhadores sem-terra.
SURGENTE – E o que o senhor acha da limitação para 1500 hectares, incluída no texto da Lei?
Ladislau – Vou dar o exemplo que mais conheço, que é o da Polônia. No sul da Polônia, o limite é de 20 hectares de terras muito férteis e, no norte da Polônia, é de até 50 hectares. Isso permitiu que boa parte das pessoas, hoje, continuem a viver no campo. No Brasil, poderia acontecer a mesma coisa. O que está ocorrendo é algo muito terrível, pois o latifúndio não respeita o meio ambiente e suga a terra, com uma produção voltada para a exportação e para geração de biodiesel. Dessa forma, as terras piores ficarão para o cultivo de alimentos, tornando-os mais escassos e caros, o que prejudica novamente os pobres.
SURGENTE – Segundo a ex-ministra Marina Silva, que se posiciona contra a sanção do veto, “o artigo da pessoa jurídica e da ocupação indireta era o bode e a família do bode na sala, e seria uma imoralidade se não tivesse sido vetada”. Gostaria que o senhor comentasse essa afirmação da ex-ministra.
Ladislau – Eu concordo com a Marina, que conhece a questão da terra como ninguém. Eu estava torcendo para que toda medida provisória fosse vetada, esse seria o caminho. Ficou um pouco melhor do que estava proposto, mas ainda estamos muito longe do avanço da Reforma Agrária. Nós continuamos apoiando o presidente Lula, mas não nesse ponto.
SURGENTE – O que essa Lei significa para o pequeno agricultor?
Ladislau – A grande saída é a união dos pequenos agricultores, com a formação de associações e o fortalecimento do movimento e do sindicato dos pequenos agricultores, além do apoio de outros movimentos sociais. Essa é a luz no fim do túnel, que está muito escuro porque o pobre não tem acesso a terra, pois não tem dinheiro para comprá-la. Nessa entrevista, foram apontados 67 milhões de hectares e, no Brasil, há mais de 100 milhões de hectares grilados, o que daria para assentar todos os trabalhadores rurais com incentivos governamentais para uma agricultura familiar. Mas o que se viu, nos últimos anos, é que a maioria dos assentamentos rurais foi conquistada pela luta do Movimento dos Sem-Terra.
SURGENTE – A Lei não faz menção às comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas. Isso não pode prejudicar esses setores da sociedade?
Ladislau – Temos que ver essa situação de diversas perspectivas. Temos que nos colocar no ponto de vista dos quilombolas, dos indígenas, que não têm a noção de terras voltadas para negócio. Eles estão sendo encurralados em muitos lugares, na medida em que são impedidos de manifestar sua cultura quanto à prática na terra.
SURGENTE – Minc afirmou que com os vetos, a Lei é boa. Você enxerga o lado bom dessa medida?
Ladislau – Em alguns aspectos não podemos concordar com ele, sobretudo na questão do meio ambiente, pois suas atitudes não têm sido eficientes. Quanto ao veto, isso ajudará muito pouco. O povo não se intimidará em grilar terras, pois depois serão regularizadas, sendo que aqueles que possuem mais poder ocuparão faixas de terras maiores.
SURGENTE – O governo Lula não avançou na questão da reforma agrária, inclusive com índices menores que o governo passado. Como o senhor vê essa postura do governo atual?
Ladislau – Nessa questão rural, foi uma decepção para os movimentos sociais. Ele apresentou um plano de Reforma Agrária quando candidato e, mesmo com o apoio da população, não teve coragem de enfrentar os conflitos que podiam advir da distribuição de terras, sobretudo, com os latifundiários e a bancada ruralista.
SURGENTE – A senadora Marina Silva denunciou que na região norte do país é muito comum a falsificação de documentos e, por isso, sugeriu que a Comissão de Direitos Humanos acompanhasse a regularização fundiária na Amazônia. Essa pode ser a solução?
Ladislau – A Marina soube acompanhar a questão da Reforma Agrária e das terras no Brasil e sabe que isso não irá solucionar. A falsificação de documentos ocorre em todo o Brasil. Os movimentos sociais devem estar cada vez mais organizados para fiscalizarem melhor o que está acontecendo.
SURGENTE – O Ministério do Meio Ambiente parece não ter funcionários suficientes para acompanhar esse processo de regularização. Então, se essa sugestão da Marina não for adotada, como se dará na prática o processo de legalização? Basta chegar em um cartório e afirmar que é proprietário para oficializar a posse?
Ladislau – Por isso é muito o importante o apoio da Justiça e das universidades para acompanhar esse processo. Hoje, é muito fácil conseguir acesso à terra pagando no cartório ou apresentando documentos falsos.
SURGENTE – Então, um ponto importante é a fiscalização.
Ladislau – Um dos grandes males do Brasil é a fiscalização. É o caso, por exemplo, do trabalho escravo, que é uma chaga no Brasil e está aumentando – antes, eram 18 Estados com trabalho escravo e, agora, já são 21. Muitos desses trabalhadores são libertos pela atuação da Polícia Federal, que ainda é muito pequena. Só existe fiscalização quando alguém faz denúncia. Em geral, a imprensa ou os movimentos sociais.
SURGENTE – O combate ao trabalho escravo parece que não tem a mesma prioridade do governo.
Ladislau – Não tem, mas a fiscalização vem funcionado pela atuação dos movimentos sociais e da Anistia Internacional. E como o trabalho escravo cria uma imagem muito ruim para o país no exterior, há um pouco mais de atenção nessa questão.
SURGENTE – O argumento dos que defendem a nova lei é que ao transferir a propriedade ao posseiro, os órgãos de fiscalização poderão identificar e responsabilizar essas pessoas caso seja constatado algum crime ao meio ambiente. Isso será possível, tendo-se em vista o número de fiscais e os 67 milhões de hectares
que a medida abrange?
Ladislau – Evidentemente, que a grande parte não será fiscalizada. Às vezes pode aparecer algum caso para justificar o trabalho do governo. Se não eram respeitadas as Leis contra a grilagem de terras que,agora, estão sendo regularizada, quem irá respeitar as leis ambientais? Como não temos força para esse tipo de fiscalização, nada mudará.
SURGENTE – Uma decisão como essa deveria ter sido discutida com a sociedade.
Ladislau – Mas o governo foi inflexível, mesmo com a pressão dos movimentos sociais. Deveria ter sido organizado um plebiscito, mas as classes mais baixas ainda possuem voz muito fraca.
SURGENTE – O Lula já está na reta final do seu mandado. Essa questão da Amazônia deveria ter sido pensada mais cedo.
Ladislau – O presidente Lula perdeu uma oportunidade histórica de realizar a Reforma Agrária, como nenhum outro governante. Ele tem o apoio do povo que é a favor da Reforma Agrária e não gosta de ouvir notícias de grilagens e ocupações.
SURGENTE – Mas o presidente ainda tem tempo de beneficiar os pequenos agricultores, realizando uma Reforma Agrária mais ampla.
Ladislau – Ainda pode ser que aconteça, mas se não houver modificações na Constituição poderá ser feito muito pouco nesse sentido. Os índices de produtividade são os mesmos de 30 anos atrás e a função da terra ainda não foi regulamentada. O presidente deveria se reunir com seus parlamentares para modificar essa Lei.
Fonte: Surgente