O Governo tem, na realidade, é que enquadrar os proprietários na lei, e desapropriar as propriedades que não cumprem a sua função social, destinando-as à reforma agrária
O Jornal do Commercio publicou, neste domingo, mais um editorial contendo ataques ao MST: “Governo tem de enquadrar MST na lei”. O posicionamento dá-se num momento bastante propício encontrado pela mídia para a criminalização do movimento, com a morte de quatro seguranças particulares num conflito fundiário em São Joaquim do Monte, agreste pernambucano, no dia 21/02. A partir do ocorrido, os veículos conservadores aproveitaram para levantar todos os ataques possíveis ao MST, passando pela defesa irrestrita da propriedade privada, pela crítica aos repasses de verbas públicas para entidades de apoio aos assentamentos, concluindo de forma simplista pela ilegalidade do movimento.
Dois pesos, duas medidas.
O jornal segue a linha política da grande mídia, de proteger o agronegócio e combater os movimentos sociais de luta pela terra. A propaganda ideológica coloca o agronegócio como o modelo moderno de desenvolvimento do campo e de geração de divisas para o país. O MST, por seu turno, ao combater este sistema, seria o portador do atraso, o conservador. Neste sentido, coloca o editorial que o movimento “Definiu por conta própria que o grande agronegócio, a pesquisa de grãos geneticamente modificados, a agricultura e a pecuária voltadas para a exportação e, por conseguinte, para a criação de divisas constituem um mal para o País.” O jornal silencia sobre a concentração fundiária e a exclusão social aprofundadas por tal modelo, que pressupõe grandes propriedades e mecanização do processo produtivo. Silencia sobre os danos ambientais causados com a expansão agropecuária em reservas naturais e pela monocultura.
Não trata da problemática dos transgênicos, proibidos nos EUA e União Européia, mas utilizados em larga escala pelo “moderno” agrobusiness no Brasil. Não foi o MST que decidiu, pois, por contra própria pela problemática deste sistema, mas diversos estudos técnicos de entidades ambientalistas, além da própria realidade excludente do campo a denunciar diariamente as contradições desse sistema.
Outro reflexo dessa diferença de tratamento é notada pela cobertura da morte dos capangas em São Joaquim do Monte. Os conflitos fundiários fazem parte do contexto agrário brasileiro. Nunca se realizou uma reforma agrária no país. Os poucos avanços até hoje foram conquistados com as ocupações de terras, de forma que não resta outra opção aos movimentos sociais que não a da ação direta, da reivindicação constante por reforma agrária. Cotidianamente morrem trabalhadores rurais nesses conflitos, e a cobertura midiática é sempre tímida. Afinal, os latifundiários estão “protegendo” a sua propriedade, sendo, pois, legítimos quaisquer meios utilizados. Até mesmo em casos de massacres, como Eldorado dos Carajás, em 1997, no qual morreram 19 sem-terras, a mídia não se mobiliza para cobrar o fim da impunidade e a prisão dos envolvidos, e até hoje o massacre segue impune.
Dados da Comissão Pastoral da Terra colocam que, de 1985 a 2006, registraram-se 1.104 ocorrências de conflitos com assassinato. Nestes conflitos morreram 1.464 trabalhadores. Destas ocorrências somente 85 foram levadas a julgamento. Foram condenados 71 executores e somente 19 mandantes. Não se vê a indignação da mídia e de outros setores a esse quadro. No entanto, quando a morte é dos representantes dos proprietários, os veículos de todo o país se manifestam, o presidente do STF, Gilmar Mendes, se pronuncia, os suspeitos são logo detidos.
Qual propriedade?
Em outra passagem do editorial, o JC publicou que “O importante é proteger o direito à vida e à propriedade, coibir as ilegalidades e colocar o MST e movimentos similares no seu devido lugar.” A Constituição Federal protege, é verdade, a propriedade privada. Mas o que o jornal omite é que tal proteção pressupõe o cumprimento da função social da propriedade. A Carta Magna consagrou o instituto, incluindo-o no rol dos direitos e garantias fundamentais, e estipulando critérios claros para o seu atendimento. A art. 186 estipulou os critérios econômico, social e ambiental para o seu cumprimento. (I – aproveitamento racional e adequado; II – aproveitamento adequado dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.) Não basta à propriedade ser produtiva. Para ser protegida pelo ordenamento jurídico ela deve ser explorada de acordo com os parâmetros da função social.
Ao se omitir sobre a função social, o JC defende a propriedade absoluta liberal, que não demanda nenhuma conduta positiva do seu titular, modelo ultrapassado no mundo inteiro, ainda mais num país de propriedade concentrada e exclusão social como o nosso. Tal modelo é, inclusive, ilegal. O proprietário que não dá à sua terra uma destinação que atenda à função descumpre à lei, perde a legitimidade de seu domínio.
O MST e a legitimidade da luta pela reforma agrária
Por fim, o jornal ataca a legitimidade do MST para lutar pela reforma agrária, afirmando que as estratégia de luta estão “conduzindo um movimento de início popular e apoiado pela sociedade para o caminho da presunção, da autosuficiência e da ilegalidade.” Tal afirmação faz parte de um retórica que vem sendo muito utilizada, de colocar o veículo como sensível à reforma agrária, aos movimentos sociais, mas contrário às formas de atuação desses movimentos, que “deturpariam” a luta pela terra. Nada mais falacioso. O MST nunca teve a simpatia e o apoio dos grandes veículos de mídia, representantes da classe dominante, da propriedade. O jornal se utiliza ainda da afirmação de que “até marginais e presos foragidos” fazem parte do movimento, sem apresentar, no entanto, nenhuma prova de tal ocorrência.
Diante da inércia dos poderes públicos na realização de uma verdadeira reforma agrária, com a desapropriação das propriedades que não cumprem a sua função social, limitação do tamanho das propriedades, garantia de estrutura para os assentamentos, valorização da cooperação agrícola; enfim, com a construção de um modelo agrícola que garanta desenvolvimento social para todos, e não para uns poucos privilegiados, uma modernidade includente, não será possível a “indispensável tranquilidade e segurança necessárias aos trabalhos no campo” pregada pelo jornal. O Governo tem, na realidade, é que enquadrar os proprietários na lei, e desapropriar as propriedades que não cumprem a sua função social, destinando-as à reforma agrária. O MST se coloca como uma importante força de transformação dessa realidade, e, em decorrência disso, enfrenta a oposição dos diversos setores conservadores, dentre eles o Jornal do Commercio.* Rodolfo Cabral é Mestre em Direito e professor da Faculdade de Direito da UFPE