Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Em entrevista cedida ao Jornal Brasil de Fato, no fim do ano passado, o integrante da Comissão Pastoral da Terra de Pernambuco (CPT - PE), Plácido Júnior,  faz uma avaliação da expansão do monocultivo da cana-de-açúcar no país, suas causas,  seus impactos e a ameça que  trazem à construção de uma soberania alimentar para o Brasil. A entrevista aborda ainda o relatório sobre  a Expansão da Cana-de-açúcar no Cerrado e na Amazônia, publicado recentemente pela Rede Social de Justiça e Direitos e Humanos e a Comissão Pastoral da Terra.


Brasil de Fato: Como você avalia a expansão do monocultivo de cana no Brasil?

Plácido Júnior: A expansão do monocultivo da cana-de-açúcar no Brasil é devastador como qualquer outro monocultivo. Esse modelo de agricultura que o País carrega desde o período colonial, que se baseia na concentração da terra e na produção agrícola para exportação, cai como uma luva para quem quer acumular capital a custa dos nossos recursos naturais, dos recursos públicos e do nosso povo. As empresas transnacionais que, entre outras coisas, são envolvidas com a produção em larga escala para exportação, encontram um quadro bastante favorável para a expansão do monocultivo da cana no Brasil. Solos férteis, água em abundância, sol o ano todo, mão-de-obra barata e escrava, uma “elite” brasileira e um Governo subserviente aos seus interesses. O modelo de produção baseado no latifúndio e no monocultivo, seja ele de que cultura for, é inerentemente violento e devastador. Só demonstra sinais de “necrotude”, pois a palavra “vitalidade” não se justifica neste modelo.


BF: Em que proporção a expansão da cana ameaça a soberania alimentar?

PJ: A expansão da cana ameaça a Soberania Alimentar em todos os sentidos. Além do monocultivo da cana avançar sobre comunidades camponesas, cometendo um grande crime contra esses trabalhadores rurais, o monocultivo inviabiliza o projeto de Reforma Agrária. Não diríamos que põe fim ao projeto da Reforma Agrária e da agricultura camponesa, pois acreditamos na força do campesinato, mas ocorre que os dois projetos não podem acontecer simultaneamente. Não inventaram ainda uma forma mais barata e eficaz de se produzir alimento de forma sustentável, sem ser através da Reforma Agrária.

Um outro aspecto é que nesse modelo agrícola, que joga para o mercado ditar as regras do jogo, os investimentos se dão naquelas culturas que estão dando mais lucros. As transnacionais não estão preocupadas em encher a barriga do povo, e sim, em lucrar cada vez mais, seja qual for a cultura que tenha que plantar. No momento, são os agrocombustíveis. Quando passar essa euforia, quem vai pagar a conta?


BF: O governo defende que os agrocombustíveis, como o etanol, causam menos impacto na natureza que os combustíveis fosséis. No entanto, o relatório mostra que os impactos causados por eles é bem maior, tanto no meio ambiente como na vida das pessoas. Qual sua opinião a respeito?

PJ: Todo vendedor tem que falar bem da mercadoria. O Governo é um garoto propaganda dos agrocombustíveis, é uma marionete e justifica o incentivo na produção do etanol afirmando que é um combustível mais limpo que os fósseis do cano de escape pra fora. Entretanto, o mito do “combustível limpo”, “energia limpa”, “energia sustentável” já não se sustenta mais. Vários cientistas e estudiosos já provaram que os agrocombustíveis são tão poluentes quanto os combustíveis fósseis. Más não precisa ser cientista para saber disso. Não há como um combustível ser limpo se tem um passivo sócio-ambiental enorme. Em Pernambuco, por exemplo, em julho deste ano, todas as 24 usinas do estado foram autuadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) por crime ambiental. A maioria dos escravos libertados o ano passado, por fiscais do trabalho e polícia federal que compõe o Grupo Móvel, estavam nos canaviais. No período da safra da cana em São Paulo, o Ministério Público tem que proibir as queimadas, pois as mesmas contribuem para baixar a umidade relativa do ar, pondo em risco as vidas das pessoas. Para cada litro de álcool produzido são gastos milhares de litros de água; cada litro álcool produz 20 litros de vinhoto, que uma parte é utilizada como fertirrigação, que se infiltra no solo e contamina o lençol freático e outra parte é jogada nos rios, matando toda população aquática. O monocultivo da cana empurra as moto-serras e botam o boi pra dentro da Amazônia e do Cerrado, causando enormes desmatamentos e destruição ambiental e além de tudo isso, invade os territórios indígenas e quilombolas. Combustível limpo, nem do cano do escape para fora.


BF: O relatório aponta os impactos ambientais e trabalhistas gerados pelo monocultivo da cana. Por que em meio a tantas denúncias e comprovações, o governo continua apostando nesse tipo de produção?

PJ: O Governo brasileiro foi convencido, pelas grandes empresas transnacionais, pelo capital internacional, de que o agronegócio é a solução da lavoura. Além disso, há um misto de arrogância e informações errôneas que são defendidas e divulgadas pelo Governo de acordo com seus interesses. Não há como o Governo negar que exista cana na Amazônia, se a própria Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) reconhece a existência do monocultivo na região. Também não há como o Governo afirmar que não existe trabalho escravo nos canaviais, quando o Ministério do Trabalho (MT), através do Grupo Móvel realiza operações de libertação de trabalhadores escravos nos canaviais do Brasil. A cada ano que passa, tem aumentado o número de trabalhadores rurais que são encontrados em condições de vida e trabalho escravo nos canaviais do país. São nos canaviais que são encontrados a maioria dos trabalhadores escravos. O Governo e a elite brasileira, ligados ao capital internacional, tentam tapar o sol com a peneira.


BF: A agricultura familiar seria uma alternativa ao modelo de produção que temos hoje? Por que?

PJ: O agronegócio coisifica a terra, vê o lucro como ponto de referência e a exportação como alvo da atividade. A agricultura Camponesa não é uma opção ao agronegócio se não está ligada a uma nova forma de vida e de relação entre os seres humanos e com a natureza. É um outro modelo de produção, ligado a uma nova forma de vida, baseado em novos valores, novas relações de trabalho no campo e na cidade.  É um modelo de produção que deve ser encarado, como um modelo capaz de construir nossa soberania alimentar, a partir das nossas diversidades de clima, solo e da cultura de nosso povo, de forma sustentável. O modelo camponês é o modelo de produção. A agricultura camponesa gera comida decente por preço decente. Gera emprego e Soberania Alimentar. Transforma as relações de trabalho e não se baseia na acumulação de capital.


BF: O relatório denuncia a degradação no Cerrado, tanto da vegetação como na contaminação das águas. Como a devastação do cerrado pode interferir em outras regiões do país?

PJ: Assim como a poluição industrial da Inglaterra gera “chuva ácida” na Escandinávia, assim a mesma lógica com a devastação do Cerrado e suas conseqüências para outras regiões do Brasil. Com solos planos, “adequados” para mecanização, e com bastante água, transformaram o Cerrado em uma fronteira agrícola do monocultivo da cana. Mais de quarenta usinas estão projetas para serem construídas no Cerrado Brasileiro. Os impactos já são visíveis: Secagem dos brejos, dos leitos dos rios e das pequenas nascentes já está ocorrendo. O Cerrado é o pai dos rios. As principais bacias hidrográficas do Brasil dependem das águas desta Região. Com certeza esse efeito será um efeito dominó, causando impactos ambientais sem precedentes. Os efeitos não ocorreram apenas localmente, pois os biomas e os ecossistemas fazem parte do corpo vivo da terra, que tem dentre outras funções, controlarem o clima e a química da terra.

 
BF: E na Amazônia, como você avalia a posição do governo em permitir a expansão do monocultivo da cana em regiões de floresta?

PJ: O agronegócio e as transnacionais têm projetos ambiciosos naquela Região, a partir da Iniciativa de Integração da Infra-estrutura Regional Sul - Americana (IIRSA). Com a construção das hidrovias, que estão programadas, será possível escoar a produção de açúcar ou de etanol pelo o pacífico, diminuindo assim os custos de produção. Outro ponto é que essa expansão vem reforçando a histórica grilagem de terras na região. É uma forma de “regularizar” essas grilagens de terras, que são muitas na Região. Com as concessões e grilagem de terras públicas, com o respaldo e incentivo do Governo - através de recursos do BNDES e da Medida Provisória do Governo Federal que amplia para 1.500 hectares áreas passíveis de legalização - o imoral torna-se legal. É um Governo a serviço do grande capital.


BF: Quais os impactos poderão ser causados, a curto e longo prazo?

PJ: Em curto prazo já estamos vendo. Cada vez mais a concentração de terras e águas, a serviço de um modelo de produção explorador, gera o aumento do preço dos alimentos, o desmatamento, a secagem de fontes de água, o trabalho escravo, a poluição do lençol freático etc. Em longo prazo, o fim da experiência humana na terra.  Os prognósticos de James Lovelock (A vingança de Gaia) e Cormac McCarthy (A Estrada), as catástrofes climáticas que estão ocorrendo em toda parte do mundo, a relação de exploração da terra e dos trabalhadores nos mostram bem o que poderá acontecer se não formos capazes de frear ambição, a arrogância e a sede de lucro de uma minoria a custa da mãe terra e da vida dos  trabalhadores. A Reforma Agrária e a Soberania Alimentar são inviáveis dentro deste modelo de produção. É necessário muda-lo. Só com o rompimento deste modelo é que podemos salvar o planeta, onde os camponeses tem papel decisivo para a construção de outras relações de produção e de sociedade.

BF: Além do impacto ambiental, o relatório denuncia que nos canaviais é comum haver trabalho escravo. Como esta prática pode ser combatida?

PJ: Não há possibilidade de extinção do trabalho escravo ou da devastação ambiental dentro desse modelo de produção. A violência contra o trabalhador e a devastação do meio ambiente são inerentes a esse modelo. Para combater, tem-se que extirpar da face da terra esse modelo que se baseia na concentração da terra e nos monocultivos, na exploração. As Fiscalizações do Grupo Móvel, as denúncias em nível nacional e internacional, criações de certificados, listas sujas etc, são ações importantes, porém insuficientes. E são insuficientes por que não combatem as causas que geram todos esses males.

 

* Entrevista realizada pela jornalista Michelle Amaral, do Brasil de Fato, em novembro de 2008,

* José Plácido Júnior – Agente Pastoral da CPT NE

 

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