Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

\"\" O modo de produção da cana de açúcar e do etanol comprometem a soberania nacional

Considero que a oferta de cana de açúcar, e do etanol dela derivado, faz parte de um complexo agroquímico que engloba e/ou se articula com outros setores da economia, tais como o de alimentos, o petroleiro, o químico, o madeireiro, o da celulose, o automobilístico, o da construção da infraestrutura de transportes e o do armazenamento de combustíveis líquidos, além do conjunto de instituições públicas e privadas responsáveis pela pesquisa relacionada com a biotecnologia para a obtenção de energia a partir da biomassa. Tanto o complexo agroquímico como os setores com quem se relaciona são dependentes do capital financeiro mundial.

Horacio Martins de Carvalho *

Esse complexo agroquímico está vivenciando um grande salto nas inovações tecnológicas no campo das biotecnologias dos organismos geneticamente modificados (OGMs) e dos processamentos bioquímicos industriais, em particular com a geração e aplicação de tecnologias relacionadas com os enzimas (fermentos) capazes de obterem o etanol tradicional e o de segunda geração (etanol celulósico), assim como o biodiesel e outros produtos para as indústrias químicas (como a de plásticos) a partir da sacarose, da lignina e ou da celulose.

A opção dos governos nacionais no Brasil, a partir do início deste século, foi a de expandir o tradicional e oligárquico setor sucroalcooleiro do país modernizando-o com a adoção das premissas do padrão dominante da economia, ou seja, abrindo o setor para o capital estrangeiro, facilitando a compra de usinas e terras pelas grandes empresas transnacionais, ofertando crédito subsidiado em abundância pelo BNDES, ignorando a concentração e centralização das terras e o monocultivo em larga escala da cana de açúcar, exercitando a indiferença pelo desmatamento, adotando política e ideologicamente comportamento altamente favorável a tornar o país o maior produtor mundial de etanol, enfim, atuando organicamente como agente dinamizador da expansão da economia canavieira e das usinas de etanol no país.

Essa estratégia de expansão da oferta de energia a partir da biomassa, em especial do etanol, ao reproduzir o modelo dominante da economia neoliberal negou explicitamente a alternativa de se realizar no país uma ampla e massiva reforma agrária que, por um lado, eliminasse o latifúndio (o tradicional e o moderno) e permitisse que milhões de famílias de camponeses com pouca terra e trabalhadores rurais sem terra pudessem ter acesso à terra e repovoasse o rural brasileiro com elevada qualidade de vida e de produção; e, por outro lado, implementasse dois eixos básicos de interesse nacional e popular: a oferta massiva de alimentos e a produção de energia a partir da biomassa. A opção dominante de expansão da oferta do etanol no país se deu pelo alto, à revelia dos interesses populares, ou seja, se efetivou a partir da articulação das ações governamentais com os interesses exclusivos dos grandes capitais nacionais e estrangeiros.

Ao se reafirmar nesse processo de expansão da oferta de etanol no Brasil o paradigma da sociedade capitalista liberal do tipo "norteamericana", politicamente conservadora, economicamente concentradora e socialmente excludente, se mantém e se impulsiona o tipo de sociedade que é negada pela maioria da população mundial: uma sociedade onde impera o consumismo, o individualismo, a competição e o desperdício. E, nela, um modo de produção no qual tanto as pessoas como o meio ambiente são simplesmente objetos de realização do lucro, e cuja ética é guiada pela idolatria do lucro.

É nesse sentido que o complexo agroquímico, onde se insere a produção de cana de açúcar e de seus derivados, ao reafirmar um modelo de produção economicamente concentrador e dependente do capital estrangeiro afeta muito mais do que a soberania alimentar e nutricional do povo brasileiro. Ele subordina a política de alimentos do país e a oferta de energia a partir das fontes renováveis como a biomassa aos interesses dominantes dos oligopólios das empresas transnacionais de insumos e produtos agropecuários, apoiados irrestritamente pelas agências multilaterais como a OMC, o FMI, o Banco Mundial, o BID, a FAO e os grandes bancos privados.

Consolidando essa tendência à exclusão social continuada e à afirmação da sociedade do consumismo e do desperdício, o etanol, em particular, seja o tradicional ou o de segunda geração, afirma-se tão somente como fonte estratégica de combustível líquido complementar ao petróleo. Amplia, dessa maneira, as margens de negócios dos grandes grupos econômicos detentores das fontes de energia não renováveis --- e agora das renováveis, em todo o mundo.

Devo ressaltar que 85% do etanol brasileiro é consumido no mercado interno.(1) Contribui para isso dois fatores: o aumento de 23% para 25% na proporção de álcool anidro na gasolina "C" (gasolina com mistura de etanol) em julho de 2007, e a expansão dos veículos "flex fuel", os quais representam na atualidade 90% das vendas de carros novos.(2)

A produção de etanol em 2007 foi de 20,1 bilhões de litros; em 2008 foi de 27,1 bilhões de litros e se estima que em 2030 alcance a 66,6 bilhões de litros (3). Em 2007 foram plantados 7,08 milhões de hectares de cana, e em 2008 um total 9,0 milhões de hectares Um aumento de 1,9 milhões de hectares plantados com cana em apenas um ano.

O Brasil conta hoje com 370 unidades sucroalcooleiras (usinas) e deverá chegar a 409 até o final da safra 2012/2013. Em 2007 a previsão era de 140 novas usinas até 2015. Essa previsão caiu para 93.(4) A tendência recente é a da concentração e centralização da produção de etanol (e da cana de açúcar).

A ampliação do monocultivo da cana de açúcar ocasiona forte pressão sobre o preço das terras e, consequentemente, sobre o preço dos alimentos e o acesso popular a eles. Estamos nos confrontando não apenas com a expansão acelerada da cana de açúcar e da produção de etanol, mas com um complexo agroquímico mundial de grande envergadura, sob o controle das grandes empresas transnacionais do agronegócio e do capital financeiro.

Para enfrentar esse complexo agroquímico deveremos inovar nos processos de luta social. Um aspecto dessa inovação seria a construção de uma contracultura ao capitalismo monopolista. Propor explicitamente a concepção de sociedade que queremos. Quem sabe precisaríamos repetir, num novo contexto, seja 1917 seja 1968.

Notas:

(1) Inaê Riveras (2008). Demanda interna deve guiar produção de etanol no Brasil,  São Paulo (Reuters). http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2008/01/14
(2) Ibidem.
(3) Fonte: PNE 2030, MME 2007.
(4) Elvira Lobato e Pedro Soares (sucursal da FSP no Rio) (2008). Crise freia projetos de expansão de álcool. In Folha de São Paulo 11 de novembro.


[Este texto é um sumário do meu artigo A ameaça à soberania nacional pela expansão do complexo agroquímico a partir da cana de açúcar e do etanol. São Paulo, 17-11-2008].


* Professor. Engenheiro agrônomo e especialista em ciências sociais, atualmente membro da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA) e assessor da Via Campesina
 

 

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