Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

\"\"É certo que as eleições do dia 5 de outubro contribuíram para passar desapercebido um "aniversariante" da véspera – o Rio São Francisco. No dia 4, há 507 anos, a expedição portuguesa de reconhecimento comandada por Américo Vespúcio batizou o "Opará" (algo como "rio sem contornos definidos"), dos índios Kaetés, com o nome do santo do dia. Apesar da idade, há outros motivos para o esquecimento, além da ignorância de sempre. Dirão que ultimamente o rio freqüenta o noticiário, no rastro da polêmica em torno da transposição de águas para outra parte do Nordeste "seco" ("de clima seco", porque água tem e muita). Outros preferirão dizer que é notícia boa pelas obras que, diz o ministro Geddel, o estão "revitalizando"...


* Ruben Siqueira Em Juazeiro, jovens não deixaram o dia passar em branco; fizeram-no passar em preto! Penduraram panos pretos pelo cais e na ponte e colocaram vendas e mordaças nas estátuas do Nego D’Água e do Remeiro. Quiseram gritar o silêncio. Figuras fortes da tradição cultural ribeirinha, as estátuas se tornam vestígios de um mundo não só a modificar, se não também a destruir. Porque falam do incompatível com o mundo globalitário (expressão de Ignacio Ramonet, do Le Monde, para o totalitarismo que comanda a globalização dos mercados e de tudo o mais, agora em polvorosa com a crise dos Estados Unidos).

Do outro lado do rio, em Petrolina, no dia 1º, faleceu Ana das Carrancas, aos 85 anos, e com ela sua arte de tirar do barro do rio as assustadoras caras que afugentam os males que afligem os habitantes do São Francisco. Perdas que se acumulam, males que não fogem...

O discurso sobre o Rio São Francisco tem mudado. Tem sido eloqüente também pelo que se cala. Não obstante as resistências populares e de boa parte da academia, o rio tem sido tratado como mero "recurso hídrico" para novos usos econômicos que se sobrepõem aos antigos. E aí a comemorar é qualquer data, melhor a das mais altas cotações nas bolsas de commodities agrícolas...

É o que sugerem as notícias cada vez mais freqüentes dos empreendimentos que aportam na bacia do velho rio. Coreanos "compram" 27 mil hectares às margens do Rio Grande para cana de etanol (que era de açúcar); líbios se associam à Odebrecht no projeto de irrigação Baixio do Irecê; carvoarias mineiras levam o Cerrado em carvão para suas siderúrgicas; mineroduto de 400 km levará minério de ferro de Caetité para o Porto de Ilhéus com água do rio... E o governo Wagner oferecendo, no BahiaBio, 530 mil hectares para cana de etanol irrigada na bacia! Haverá tanta água para tanta sede de lucros?

E o esquecido São Francisco, só assim lembrado, segue seu caminho moribundo cada vez mais distante da foz de exuberante vida no tempo em que foi "batizado". Incomoda a inevitável e herética pergunta: se só deste tipo de "desenvolvimento" somos capazes, não seria melhor ter ficado "pagão"?


* Ruben Siqueira - Sociólogo, membro da Comissão Pastoral da Terra / Bahia


Fonte:

[Primeiro Caderno] - 11 de Outubro de 2008



 

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