Famílias agricultoras do agreste pernambucano relatam infertilidade de animais, mortes e desaparição de espécies nativas. Atualmente existem 33 parques eólicos em funcionamento no Estado de Pernambuco e quatro estão em fase de instalação.
Em 2016, com a instalação de parques eólicos nos municípios de Caetés, Venturosa, Pedra e Capoeiras, todos no agreste meridional, região semiárida de Pernambuco, dezenas de famílias rurais achavam que a atividade que era propagandeada como uma energia “limpa, sustentável e sem impactos ambientais” poderia ser uma boa fonte de renda com pagamentos entre R$ 1.500 e R$2 mil por cada aerogerador instalado.
Cinco anos depois, o cenário é desolador: Noites em claro, antidepressivos e casas destruídas fazem parte da rotina das famílias, que também tem visto a produtividade da terra cair junto com o aumento da mortalidade das criações de caprinos, suínos, aves, ovinos e outros animais que dividem território com os aerogeradores.
Desde agosto deste ano, uma comitiva formada por entidades, movimentos sociais e sindicais e parlamentares está visitando as áreas de parques eólicos no agreste do Estado para ouvir depoimentos de agricultores e agricultoras familiares sobre os impactos desses grandes empreendimentos na vida dessas famílias. O Brasil de Fato Pernambuco acompanhou uma dessas visitas, que deram base a uma série de duas reportagens sobre as consequências da instalação de parques eólicos na saúde das famílias, na produção e no meio ambiente.
Além dos impactos na saúde física e mental e até na estrutura das casas, outro impacto relatado por todos os entrevistados foi na produção de suas criações de animais. Claudivânia Salgado, 42 anos, agricultora, conta que nos últimos anos “os animais ficam estressados, diminuíram a produção de leite [de vaca] e de ovos [de galinha]. A galinha sai do ninho antes da hora, não choca os ovos o tempo necessário, os ovos goram”, diz ela, que também percebeu que a sombra das hélices se movendo no chão assusta os animais.
Pai de Claudivânia, o também agricultor Simão Salgado, 73 anos, sentiu diferenças em todas as criações do seu sítio, na divisa entre Caetés e Venturosa. “Caiu a produção de leite e também tive uma grande perda de filhotes de ovelha. As mães parem e abandonam. Criei cinco na mamadeira. Fora os abortos, por causa do estresse dos animais”, lamenta o agricultor. A criação de galinhas também reduziu. “Agora, de 18 ovos, só dá 4 pintos. Outros agricultores estão com o mesmo problema”, relata. O barulho também tem afetado outras espécies da caatinga. “Aqui tinha muita abelha nativa e eu pretendia fazer apiário, mas agora elas desapareceram, não querem viver aqui por causa desse ruído”, avalia.
O sítio de Simão é uma referência de agroecologia na região Agreste de Pernambuco, mas com o impacto dos geradores na saúde de sua esposa e na produção, ele decidiu ir morar na cidade. Deve se mudar nos próximos meses. Ele pretende ficar indo ao sítio diariamente, tentando manter a estrutura agroecológica construída ao longo de 13 anos, mas o tempo de dedicação é diferente quando não se vive mais no local. “A gente se desanimou. Não sou de desistir, mas não sei se vou conseguir manter”, lamenta.
Agricultores afirmam que o barulho dos aerogeradores perturba também os animais, que tem vivido e produzido menos / Vinícius Sobreira/Brasil de Fato
O agricultor João Araújo observa que seu gado “fica se assustando, não se adaptou a esse barulho. E as galinhas um bocado morreram”. O que sobreviveu, ele vendeu antes que perdesse todos. Maria Neuma criava porcos. “Eu tinha muitas porcas parideiras, mas elas começaram a abortar ou a comer os filhotes”, diz ela. “Só continuo aqui porque não tenho dinheiro para comprar outro terreno e ir embora. Nossas terras perderam o valor”, conta ela.
Ainda sobre o impacto ambiental, Milena Fraga, assessora técnica em meio ambiente da Federação dos Trabalhadores da Agricultura de Pernambuco (Fetape), chama atenção para o avanço de parques eólicos em Pernambuco, alguns colocando sob ameaça nascentes de rios importantes do estado. “Aqui no Agreste há muitas áreas de brejo, onde há mais vento e também nascentes de rio. Aqui próximo, em Belo Jardim, há uma área com 1.195 nascentes, que fornecem água para as bacias dos rios Ipojuca e Capibaribe e abastecem quatro municípios da região”, explica. “Já escutamos que estão estudando instalar um parque eólico nessa área. E no momento não há qualquer regulamentação estadual que impeça isso”, diz a assessora técnica.
Ela destaca não ser contra a energia eólica, mas considera a estrutura de produção massiva danosa ao meio ambiente. “Não podemos mais considerar essa estrutura como energia limpa. Várias cidades na Europa já identificaram os impactos causados por esse tipo de estrutura de aerogerador. Mas o que iriam fazer com isso lá? Cada hélice tem 52 metros, não é um descarte fácil”, destaca Milena. “É esse material que está sendo encaminhado para a América Latina e para o Nordeste brasileiro, justamente porque temos taxas de compra de terra e nenhuma regulação”, conclui.
Fraga considera melhor e menos danosos modelos adequados à produção familiar. “Existem turbinas no preço de iPhones. Elas são menores, montadas em cima das casas e são apropriadas para pequenas propriedades de terra, mas não dão conta desse modelo empresarial de larga escala, que visa o lucro”, diz ela, que compara com a questão das placas de geração de energia solar: boas alternativas para a agricultura familiar, mas quando monta-se usinas do tipo, também há impactos negativos.
Processo Judicial
A agricultora é uma das que deu os braços a Simão Salgado e outras seis famílias e abriram um processo judicial contra a Casa dos Ventos. “Entramos na Justiça porque queremos uma melhora. Não dá para ficar assim”, diz ela. João Araújo não é parte no processo, mas apoia a luta. “Não quero dinheiro, que isso não vai me dar sossego. Só quero meu sossego de volta”, conta à reportagem.
Das sete famílias no processo, apenas uma tem aerogerador em suas terras. As famílias cujas terras possuem geradores, apesar de estarem sentindo os impactos, não querem dar entrevistas ou muito menos entrar na disputa judicial, por medo de perderem a renda gerada pelo arrendamento de terra ao parque eólico.
Outras famílias, mesmo sem as máquinas em suas propriedades, receberam reformas em seus imóveis e também temem a briga. “É uma estratégia da empresa e isso é preocupante, porque muitas famílias estão sofrendo caladas”, adiciona. “Os que estão recebendo foram recomendados a não dar depoimento. As famílias não querem falar, porque o contrato de reforma assinado com a empresa também indica isso”, diz Simão.
Segundo ele, o número de mortes nas famílias rurais da região aumentou nos últimos anos e ele vê relação com as eólicas. “Tem gente que já morreu, gente que está doente, com depressão. Mas a empresa não faz nada para ajudar. Das [sete] famílias que estão no processo “quatro tiveram mortes recentemente. Queremos apoio do Estado para falar a nosso favor”, cobra ele. Muitas famílias que estão recebendo recursos da empresa de energia acusam Simão e os demais de estarem com inveja. “Eu estou é com problema na família”, se queixa.
Parte da lentidão no processo o agricultor atribui à mudança de CNPJ. A Casa dos Ventos vendeu em 2017 o parque eólico “Ventos de São Clemente” para a Echoenergia, empresa de São Paulo. “A nova empresa diz que não tinha conhecimento dos problemas, prometem resolver, mas até hoje não resolveram nada. E daqui a pouco mudam para um terceiro nome, enquanto os agricultores seguem no prejuízo”, reclama Simão Salgado.
Compensações
Como é comum quando é anunciado um empreendimento de médio ou grande porte, a chegada do parque eólico foi acompanhada de promessas de emprego e desenvolvimento para a região. “Falaram que iriam investir no município, nas comunidades, mas é uma vergonha. Colocaram em cada escola uma pia que mal cabia as mãos das crianças, muito frágil; e fizeram uma praça para as crianças, mas é outra vergonha”, acrescenta.
A reportagem visitou a praça em questão, que fica no município de Venturosa. Com exceção de uma única casa que fica em frente à praça, as demais residências ficam a 1km ou mais de distância. “Esse parque não era para ter sido construído aqui, mas 1km para dentro, onde tem uma vila, igreja, sede da associação, escola, posto de saúde, campo de futebol, onde as pessoas frequentam e levam os filhos. Mas fizeram aqui no meio do nada, nenhuma mãe de família vai andar 4km para trazer seu filho para brincar nesse negócio. Isso daqui foi dinheiro jogado fora”, analisa o agricultor.
Propagandeada como forma de reparação, praça construída pela empresa fica a 4km da comunidade mais próxima / Vinícius Sobreira/Brasil de Fato
Para completar, fios de alta tensão passam poucos metros acima dos brinquedos de metal. “Aqui perto tiveram que remover o curral do gado de um cidadão, porque a empresa disse que se um fio partisse e caísse nos gados, perderia todo o rebanho. Mas ela mesma constrói o parque aqui. Então as vacas não podem morrer eletrocutadas, mas os filhos dos agricultores podem?”, provoca Simão.
Mais recente, já com a Echoenergia, a empresa está buscando fazer outras compensações para as famílias. “Estão trazendo algumas cisternas para famílias que ainda não têm. Isso é realmente bom”, diz Simão. Mas ele aponta que a empresa ainda está cometendo muitos erros. “Estão investindo em perfuração de poços, mas Caetés é seco, não tem água. Quando acham é 20 litros, 70 litros, mesmo assim de má qualidade. Já perfuraram 20 poços e nenhum deu água. Só se forem no São Francisco buscar e guardar no poço deles”, ironiza o agricultor.
Produção de alimentos e vida rural
A agricultora Uedislaine de Santana, vice-presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Caetés, conta que os aerogeradores, que chegaram com esperança, hoje são símbolo de um impacto negativo na vida rural da região. “As propriedades dessas famílias não eram só fonte de renda, mas havia uma ligação afetiva, muitos nasceram nesses lugares ou vivem há décadas. Sempre foi um lugar de paz, onde produziam seus alimentos e descansavam”, diz ela. “Tudo mudou desde a chegada das eólicas, que têm contribuído para a saída dessas famílias do campo, tanto as que receberam indenização como as que não receberam”, pontua.
A sindicalista afirma que a queda na produção e a saída do povo do campo já está sendo sentida no município. “Aqui produzimos feijão, feijão de corda, fava, gandu, milho, mandioca e animais de pequeno porte. A maior parte é consumida aqui ou no PAA [Programa de Aquisição de Alimentos, do Governo Federal], mas tem a feira e também parte da produção vai para Capoeiras ou para outros estados”, explica ela. “O município já está sentindo. Além da seca, famílias reduziram a produção de feijão e milho, muitas dessas famílias agora só produzem para o próprio consumo. Outras não produzem mais nada por terem deixado o campo”. Ela adiciona que o arrendamento de terra descaracteriza a agricultura familiar e tira o direito dessas famílias acessarem algumas políticas públicas.
Uedislaine, que também é vice-presidenta estadual da Central Única dos Trabalhadores (CUT), afirma que o STR está buscando formas de amenizar os impactos, mas avalia a situação como “complexa e desgastante”. “A gente tenta trabalhar outras formas de conviver com o Semiárido. Aí chega uma fonte de energia considerada limpa, mas as empresas violam direitos dessas famílias, não respeitam a distância mínima e deslocam a população de suas moradias”, aponta a agricultora.
O STR buscou ajuda no campus da Universidade de Pernambuco (UPE) de Garanhuns para que os agricultores afetados tenham suporte dos residentes de saúde mental. A Casa dos Ventos havia se comprometido a oferecer um acompanhamento médico, mas Uedislaine diz que isso não está ocorrendo.
O sindicato também está com um acompanhamento jurídico da situação. “A primeira coisa errada foi a empresa não apresentar os contratos às famílias. Eles chegaram oferecendo dinheiro num momento em que as famílias enfrentavam seca e baixa produção. Muitas famílias assinaram sem nem ler”, diz ela. "Mas o contrato diz que a distância de 300 metros é suficiente em relação ao barulho. Estamos vendo que nesse raio o barulho é quase o mesmo que estar a 50 metros do aerogerador. Ainda assim há alguns aerogeradores a menos de 300 metros de residências”, conta a vice-presidenta do sindicato rural.
Ela também destaca a variação de valores pagos às famílias que têm aerogeradores em suas terras. “Eles pagam menos alegando que a produção de energia foi menor, mas as famílias não têm acesso a quanta energia foi gerada, só têm que acreditar”, diz ela. Sobre as reformas das casas, ela diz que as obras não sanaram a situação. “Muitas famílias aceitaram a reforma pelo cansaço de não encontrar solução. Apesar de amenizar, a reforma não solucionou o barulho”, diz ela. E acrescenta: “o homem e mulher do campo não vivem dentro de casa, passam a maior parte do dia nas terras”.
Uedislaine conta que outros municípios estão vivendo a mesma situação. Já foram instalados parques eólicos em iati, Paranatama e Saloá, todos no agreste meridional. E com o mesmo método: abordagem individual com as famílias, sem diálogo com entidades representativas ou coletivas. A vice-presidenta da CUT faz um alerta: “sindicatos, quando tiverem a notícia ou ouvirem boatos sobre instalação de parques eólicos na sua região, procurem a prefeitura, a empresa e os agricultores para entender os riscos, debater e exigir o cumprimento das regras”.
A equipe do Brasil de Fato Pernambuco tentou contato com a Echoenergia para saber como anda a negociação com as famílias sobre as reformas e construção de novas casas, se há alguma atividade ou projeto voltado à promoção da saúde dos agricultores e agricultoras e a reparação de danos causados à proução de alimentos e criação de animais. A Echoenergia não respondeu os questionamentos até o fechamento desta matéria.
Em nota, a Agência Estadual de Meio Ambiente do Estado de Pernambuco (CPRH) informou em nota que atualmente existem 33 parques eólicos em funcionamento no Estado de Pernambuco e que todos os empreendimentos de geração e transmissão de energia eólica são licenciados pelo órgão “seguindo o que preconiza a Lei Estadual n. 14.249/2010, as Resoluções CONAMA n. 279/01 e 462/14, entre outras. O estudo exigido é o RAS - Relatório Ambiental Simplificado, conforme as resoluções citadas".
Vinícius Sobreira
Brasil de Fato | Recife (PE) |
21 de Outubro de 2021 às 15:19
Edição: Vanessa Gonzaga