Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Ao entrar na casa de dona Lúcia da Silva, na área rural do município de Caetés, agreste de Pernambuco, algo chama a atenção de imediato. Na sua sala, todas as janelas foram cimentadas. Quando perguntada sobre o porquê, dona Lúcia aponta, com o olhar, para um imenso aerogerador - torre com hélices acopladas que converte energia eólica em energia elétrica - localizado a poucos metros de sua casa.


Mesmo não estando dentro de sua propriedade, o aerogerador causa grandes transtornos à família de dona Lúcia. Ela explica que decidiu cimentar suas janelas porque o barulho ininterrupto provocado pela máquina lhes fez chegar a um grau de perturbação alarmante.
 
   
Imagens: Casa de Dona Lúcia, com as janelas cimentadas. Crédito: Renata Albuquerque/CPT NE2 
 
 
A situação enfrentada por dona Lúcia se repete com outras centenas de famílias camponesas da região. De acordo com o Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Caetés estima-se que atualmente existam cerca de 144 famílias atingidas pela energia eólica na área. O número, no entanto, tem sido crescente, pois, com o passar do tempo, cada vez mais famílias relatam ao Sindicado situações de impactos provocados pela presença dos aerogeradores.
 

Imagem: Simão Salgado apresenta prêmios que sua família conquistou com a realização de práticas agroecológicas. 
Crédito: Renata Albuquerque/CPT NE2
 
 
A família do camponês e integrante do Sindicado de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Caetés, Simão Salgado, também é uma das atingidas pelo parque eólico no município. A família possui um sítio na área rural de Caetés onde desenvolve dezenas de experiências agroecológicas. A terra em que vive está cercada por onze aerogeradores instalados em uma propriedade vizinha.


Assim como dona Lúcia, o agricultor conta que sua família também não tem suportado o barulho constante provocado pelas máquinas, que se assemelha ao ruído de uma turbina de avião. Não é para menos. Pesquisas sobre os impactos da energia eólica apontam que tal situação pode provocar: enjoo, náusea, tontura, dores de cabeça, taquicardia, tremores pelo corpo, perda parcial da audição, distúrbios do sono, lapsos de memória, dificuldades de concentração, irritabilidade, depressão, transtornos de ansiedade e crises de pânico. E, além desses danos, os/as agricultores/as temem que outras enfermidades surjam em decorrência da longa exposição aos ruídos das maquinas. “Quando chegou o aerogerador, a vida ficou insuportável”, conclui uma das trabalhadoras rurais entrevistadas pela CPT que preferiu não se identificar.


 Não somente os seres humanos sentem os impactos causados pela presença dos aerogeradores. As famílias entrevistadas relatam que os animais - pássaros, galinhas, cabritos e outros - demonstram perturbação com o ruído emitido pelas turbinas e hélices, havendo alteração do seu comportamento.
 
“As famílias foram pegas de surpresa, sem informação do que iria acontecer” - Os aerogeradores próximos às casas da família de dona Lúcia e de seu Simão fazem parte do chamado Complexo eólico Vendo de São Clemente, pertencente à empresa Echoenergia. O complexo é composto por um total de 126 máquinas, distribuídas em oito parques eólicos espalhados na área rural de Caetés e também na dos municípios de Capoeiras, Pedra e Venturosa. São cerca de 4 mil hectares destinados para a produção de energia eólica nestas localidades. 


Em funcionamento desde 2016, o Complexo de energia eólica pertencia inicialmente à empresa Casa dos Ventos, passando em 2017 para o controle da Echoenergia. Os aerogeradores foram erguidos em pedaços de terras arrendados à empresa pelas famílias camponesas por meio de contratos que duram em média 20 anos. À época, conforme ressalta o Sindicato, a população da área rural não teve acesso à informação sobre os danos que sofreriam, tampouco tiveram conhecimento se estudos e avaliações desses danos chegaram a ser realizados, o que configura grave violação aos direitos das populações locais.


Simão Salgado lembra que o parque eólico quando chegou à região, há cerca de quatro anos, trouxe muita ilusão para as famílias. “Trouxe algumas vantagens imediatas porque gerou emprego e renda, aqueceu o comércio, mas só temporariamente. Com o término da instalação da rede eólica, as pessoas ficaram desempregadas, deixaram de ter o rendimento e o comércio esfriou, e ai veio o impacto ambiental, destruindo a natureza e veio também outra situação muito grave, que é o impacto na vida das famílias. Hoje, as famílias não têm mais sossego, não dormem normalmente, têm problemas de audição, as pessoas estão ficando agitadas, com nervosismo. Causou um grande problema e estamos na luta para resolvê-los”, ressalta.


Há cerca de dois anos, muitas dessas famílias atingidas decidiram enfrentar os problemas de frente. Com a ajuda do Sindicado, da Cáritas Regional, da Comissão Pastoral da Terra, além de outras organizações sociais, as famílias passaram a se reunir para partilhar suas situações e reivindicar medidas reparativas para os danos sofridos. As reivindicações eram direcionadas inicialmente à antiga empresa Casa dos Ventos, sendo posteriormente transferidas à Echoenergia. Além das empresas, as famílias chamaram a atenção da prefeitura municipal, do governo estadual, da Assembleia Legislativa e do Ministério Público.
 

Crédito: Renata Albuquerque/CPT NE2
 
Eurenice da Silva, agente pastoral da CPT no agreste pernambucano, destaca que essas famílias provocaram a realização de muitas reuniões com a participação de representantes da empresa e de órgãos públicos, a fim de cobrar medidas de reparação aos direitos violados. Em maio deste ano, uma audiência pública ocorreu na Comissão de Agricultura da Assembleia Legislativa de Pernambuco (ALEPE) para tratar sobre o tema. Estiveram presentes representantes do poder legislativo estadual, famílias atingidas pelo empreendimento, representantes da empresa Echoenergia, além de entidades e organizações sociais que acompanham o caso. Na ocasião, ficou encaminhado que o colegiado da Casa acompanhará as negociações para implementação de medidas de reparação dos impactos e que atuará para consolidar leis que regulem de modo mais rigoroso os empreendimentos de energia eólica no estado.

Mais reuniões e audiências públicas sobre o caso foram realizadas em momento posterior, nas quais as famílias conseguiram com que a empresa se comprometesse em implementar algumas medidas reparativas cuja efetivação será monitorada por órgãos competentes. Outras propostas feitas neste processo foi a criação de um grupo de trabalho composto pela Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH), pela Comissão de agricultura da ALEPE, Defensorias Públicas e Promotorias de Justiças envolvidas, entidades municipais, entre outros, para aprofundar os estudos sobre os impactos da implementação de parques eólicos em Pernambuco.


Energia “não tão sustentável assim” – Os ventos têm ocupado cada vez mais espaço na matriz energética brasileira. Conforme aponta a Associação Brasileira de Energia Eólica, a energia produzida a partir da força dos ventos já representa 9,2% da capacidade energética do País. Segundo dados referentes ao ano de 2018, no Brasil existem aproximadamente sete mil aerogeradores distribuídos em 568 parques eólicos. A maioria deles concentra-se, sobretudo, no Nordeste, região considerada de grande potencial para o desenvolvimento deste tipo de energia. Do total de parques eólicos, 472 estão localizados nessa região. Em Pernambuco, estão instalados 34 deles, além de haver a previsão para a chegada de mais três novos empreendimentos deste tipo.
 
Imagens: Aerogeradores no agreste pernambucano. Crédito: Renata Albuquerque/CPT NE2
 
Carregada de um discurso de sustentabilidade, na prática, a energia eólica se revela “não tão sustentável assim”. À ela estão associados ersos impactos sócio-ambientais que colocam em situação limite tanto as famílias camponesas que vivem em seu entorno quanto o meio ambiente. “Estamos criando um problema maior quando afetamos a saúde da população rural em nome de uma energia dita ‘limpa’. E este é um assunto completamente negligenciado pelo Estado. Seguimos a mesma lógica de negação da vida dos povos do campo, que sempre foi visto como uma ‘zona de sacrifícios’ para garantir o ‘desenvolvimento’. Muitas famílias estão saindo de suas terras, porque a vida próxima a estes empreendimentos é insustentável”. Quem afirma é Vanúbia Martins, agente pastoral da CPT em Campina Grande/PB. Vanúbia, que acompanha já há alguns anos comunidades atingidas pelos parques eólicos na Paraíba, ressalta que “o modelo de produção de energia eólica, tal como tem se estruturado no país, não é limpo, tampouco sustentável”.
Além dos impactos diretos causados à saúde da população e dos animais, há uma crescente destruição ambiental da vegetação nativa. “Costuma-se dizer que energia limpa é aquela cujo impacto provocado não está acima da capacidade de resiliência da terra. Este não é o caso da energia eólica. Destrói grande parte da vegetação que existe na localidade. Em se tratando do Nordeste, a Caatinga, já tão sofrida, tem sido devastada para a implementação dos parques eólicos”, ressalta.
A questão central que precisa ser enfrentada, segundo a agente pastoral da CPT, é a do modelo de energia proposto para o país e para o Nordeste.  “Independente da fonte de energia utilizada, a forma concentrada de produção de energia não é limpa ou sustentável, porque acarreta em prejuízos e impactos irreparáveis para a população local e para o meio ambiente. Uma saída que precisa ser urgentemente visibilizada é a produção descentralizada de energia”, destaca. O desafio é que o modelo econômico vigente, e o estimulo ao consumo irrefreável, define o modelo de produção energética. Por esse motivo, opta-se por um modelo predador e fala-se pouco em energia descentralizada. “Precisamos repensar o modelo de produção capitalista e sua imposição ao consumo que até agora só tem provocado a nossa destruição e a destruição do planeta”, conclui.
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