Com a retomada da greve de fome de dom Luiz Flávio Cappio, o presidente Lula e seus áulicos tentam passar a imagem de que ele é um fanático religioso. O ministro da Integração, Geddel Vieira Lima, ousa desrespeitosamente associar a imagem do bispo a uma espécie de fundamentalista islâmico.
Na realidade, d. Cappio é um líder religioso profundamente comprometido com sua principal missão, que é divulgar a fé aos sertanejos e levar a eles os eternos ensinamentos de Deus, mas sem desconectá-los do mundo injusto em que habitam.
Daí por que, convencido de que quem convive com a miséria não tem serenidade para cultivar dignamente a religião, se empenha em extirpar a miséria, defendendo os sertanejos daqueles que tentam legitimá-la com demagogia e promessas enganosas.
Trata-se de um sábio, culto, avesso à demagogia, conhecedor do sertão nas suas entranhas e, em especial, do Velho Chico, cujas margens percorreu a pé denunciando sua degradação bem antes de se falar em transposição. Um estudioso das técnicas de convivência com as secas e equacionamento dos recursos hídricos locais tão simples e baratas que os chineses e os indianos as praticam com sucesso há milênios em regiões de climas bem mais hostis do que o nosso.
D. Cappio tem consciência também de quatro fatos dos quais a nação precisa tomar conhecimento. Primeiro, a transposição não é destinada a salvar os nordestinos da seca, pois apenas uma minoria irrelevante do semi-árido receberá água na porta, mas se destina ao agronegócio, que utilizará uma água caríssima, levada a 700 km, que terá que ser subsidiada a vida inteira. Porém, temos milhões de hectares de terras à beira do rio cuja irrigação, sem subsídio, proporcionaria alimentos baratos e geraria 1 milhão de empregos.
Segundo, o governo, maquiavelicamente, esconde uma realidade que surpreenderia a nação: não há falta de água no Nordeste setentrional, mas, isto sim, ela existe em abundância tal que, teoricamente, daria para abastecer 100% dos nordestinos.
Terceiro, o rio São Francisco está na UTI e a transposição ameaça provocar sua morte, gerando o maior desastre ecológico e socioeconômico da história brasileira.
Quarto, Lula mentiu para conseguir a interrupção da primeira greve de fome de d. Cappio, certamente com receio das conseqüências para a reeleição, com promessas enganosas de que iria parar a obra da transposição para discutir com ele, com membros da sociedade civil e ecologistas que têm propostas alternativas, demonstrando tecnicamente projetos racionais para levar água na porta pela metade dos custos para a totalidade dos dez Estados do semi-árido nordestino e mineiro. Por dois anos, o bispo esperou pacientemente a abertura do prometido diálogo, mas a resposta de Lula foi ameaçadoramente mandar o Exército iniciar a obra.
Por falta de espaço, não posso aqui detalhar o gigantesco manancial de água disponível nos Estados do Ceará, do Rio Grande do Norte e da Paraíba, explicando a simplicidade do supracitado projeto alternativo. Faço, contudo, um convite ao ministro Geddel, que executa a obra que tanto combateu, para um debate aberto, para que a nação saiba de toda a verdade sobre essa obra freneticamente aplaudida pelos empreiteiros, seus felizes apaniguados, pelo agronegócio retrógrado, que pleiteia água subsidiada, e pela indústria da seca, que, após sua conclusão, continuaria abastecendo os famigerados carros-pipas e as latas d'água na cabeça da pobre gente dos próprios quatro Estados "beneficiários" da obra da transposição, que, tardiamente, compreenderia que foi a principal enganada pelo governo Lula, que fomenta a cizânia entre irmãos nordestinos.
Finalmente, uma ponderação final para que o presidente Lula, que, do alto de sua autolouvação, costuma ser infenso a conselhos, avalie melhor o artigo de frei Leonardo Boff, que, com a autoridade de ex-professor do então seminarista dom Cappio, com quem ele já se destacava por "uma aura de simplicidade e santidade", advertiu: "Entre o povo que não quer a transposição e as pressões de autoridades civis e eclesiásticas, dom Luiz ficará do lado do povo. Irá até o fim. Então a transposição será aquela da maldição, feita à custa da vida de um bispo santo e evangélico. Estará o governo disposto a carregar essa pecha pelo futuro afora?".
JOÃO ALVES FILHO, 66, é engenheiro civil. Foi governador de Sergipe por três mandatos (1983-87, 1990-94 e 2003-06) e ministro do Interior (gestão Sarney). É autor de, entre outros livros, "Transposição de Águas do São Francisco: Agressão à Natureza vs. Solução Ecológica".
Fonte: FOLHA DE SP – 07/12/2007, p. A3.