Artigo
Minha terra e a minha identidade estão seriamente ameaçadas pela ADI nº 3239/2004, que questiona o direito de propriedade das comunidades quilombolas
Nasci em um território quilombola no Estado de São Paulo. O Quilombo Ivaporunduva é de 1630: sua história se confunde com a do Brasil. Ele está encravado no Vale do Ribeira, o último remanescente de área contínua de Mata Atlântica no Brasil. E se está preservado, isso em muito se deve à nossa presença, pois a cultura quilombola preza o uso racional dos recursos naturais.
Nossos antepassados vieram para cá contra a vontade. Mas, em algum momento, começaram a reconhecer como sendo sua terra o lugar onde viviam em liberdade. E a amá-la. O quilombo refazia vidas, porque essa liberdade não lhes era dada, mas conquistada. Ao longo dos anos, nós, descendentes de Zumbi, Ganga Zumba, Acotirene, Tereza de Benguela e Dandara, lutamos para assegurar o direito às terras que eles fizeram por merecer. Dependemos delas para sobreviver física e culturalmente. Em 1995, criamos a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Mas até o direito de lutar querem nos tomar. Porque em pleno século XXI ainda há quem nos meça em arrobas.
Minha terra e a minha identidade estão seriamente ameaçadas pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3239/2004, que questiona o direito de propriedade das comunidades quilombolas, bem como o seu acesso a políticas públicas, garantidos pelo Decreto nº 4.887 de 20 de novembro de 2003. Hoje, a Conaq representa mais de 3.500 quilombos em todas as regiões do país. Mais de 2.400 foram reconhecidos pela Fundação Palmares e aguardam sua titulação definitiva pelo Incra. Enquanto isso, só a Medida Provisória 759, recentemente sancionada pelo presidente Temer, pode regularizar de uma vez 2.376 terras públicas invadidas. É praticamente a institucionalização da grilagem de terras. São 4,3 milhões de hectares, o que dá quase um Estado do Rio de Janeiro. Os quilombos também estão na alça de mira de invasores. E eles têm agido com violência. Só na semana passada, dois líderes quilombolas foram assassinados na Bahia.
Quase 75% da população quilombola vivem em situação de extrema pobreza. Descendemos de pessoas que não nasceram aqui, chegaram ao Brasil acorrentadas em porões de navios. Portanto, não consideram nossos direitos originários, como os dos povos indígenas. Mas eles são garantidos por uma série de dispositivos. O principal é o Decreto 4.887, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. Mas também temos o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e 215 e 216 da Constituição da República, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, de 7 de junho de 1989, o Decreto Legislativo nº 143 de 20 de junho de 2002, o Decreto 5.051 de 19 de abril de 2004, a Instrução Normativa nº 49 do Incra e a Portaria n.º 98 da Fundação Cultural Palmares. Temos a lei.
A ADI 3.239 foi entregue ao Supremo Tribunal Federal em 25 de junho de 2004, pelo antigo Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas (DEM). Uma decisão do STF pela inconstitucionalidade do Decreto 4.887 pode paralisar o andamento dos processos para titulação de terras quilombolas no Incra, além de ameaçar os já titulados. O julgamento vem se arrastando desde 2012 e será retomado agora, em 16 de agosto. A rapidez com que a população brasileira tem perdido direitos nos últimos tempos nos deixa bastante apreensivos. A manutenção do Decreto 4.887 é imprescindível para as comunidades quilombolas do Brasil.
Denildo Rodrigues de Moraes é coordenador nacional da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas
Artigo publicado originalmente no jornal "O Globo" de 24 de julho de 2017