Peluso considera inconstitucional o decreto que regulamenta a regularização fundiária dos territórios quilombolas. O julgamento foi suspenso em seguida, após pedido de vista da ministra Rosa Weber
Em julgamento iniciado ontem (18/4), no STF (Supremo Tribunal Federal), em Brasília, o desembargador Cezar Peluso, relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239, proposta pelo partido DEM (Democratas), votou pela anulação do Decreto nº 4.887/2003, que regulamenta e viabiliza a demarcação e titulação dos territórios quilombolas. Fez no entanto uma ressalva: os títulos expedidos antes do fim do julgamento devem ser considerados válidos.
Peluso acolheu a tese defendida pelo DEM e afirmou que o decreto padece de uma série de inconstitucionalidades. Considerou que o artigo 68 do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), que determina o reconhecimento da propriedade definitiva e a emissão dos títulos respectivos aos remanescentes das comunidades quilombolas, não pode ser regulamentado por decreto presidencial, mas apenas por lei.
Contrariando manifestação anterior o relator também considerou inconstitucional o critério da “autoidentificação” para o reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos. Para Peluso, caberia a lei específica oferecer parâmetros históricos e antropológicos para a identificação dessas comunidades.
A autoidentificação
O critério da autoidentificação está previsto no artigo 2º do Decreto 4.887/2003 e no artigo 1º da Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho),que estabelece tal critério como fundamental para identificar os sujeitos de sua aplicação (povos indígenas e tribais, dentre os quais os quilombos).
Segundo esse critério, entende-se pertencente a determinado grupo étnico todos aqueles que esse mesmo grupo reconheça como dele fazendo parte, independentemente, por exemplo, de critérios genéticos ou de antiguidade. Faz parte de uma comunidade quilombola todos que nela vivam e por ela sejam aceito como tal, independentemente de, por exemplo, ser descendente direto da família que a fundou séculos atrás.Nas palavras de Manuela Carneiro da Cunha (Os Direitos do Índio: Ensaios e Documentos. Brasiliense, São Paulo. 1987, p. 111):
“A antropologia social chegou à conclusão que os grupos étnicos só podem sercaracterizados pela própria distinção que eles percebem entre eles próprios e os outros grupos com os quais interagem. (...) E, quanto ao critério individual de pertinência a tais grupos, ele depende tão-somente de uma autoidentificação e do reconhecimento pelo grupo de que determinado indivíduo lhe pertence.”
Argumentações contraditórias
O voto do relator foi precedido de diversas falas de advogados das partes, incluindo aí diversas organizações sociais que entraram na causa para defender um ou outro lado.
Um dos pontos centrais levantados pelos que defendem a inconstitucionalidade do decreto diz respeito à necessidade de desapropriação. Para o advogado do DEM, Carlos Bastide Horbach, não poderia haver desapropriação, pois a própria Constituição já teria outorgado às comunidades quilombolas a propriedade das terras que ocupavam em 05/10/1988, data de promulgação do texto constitucional. Peluso reforçou essa tese, dizendo que haveria, no caso, uma espécie de “usucapião presumido”, o que dispensaria a desapropriação.
Essa argumentação, que contraria as bandeiras históricas do próprio DEM – defensor árduo da propriedade privada – e dos demais interessados na queda do decreto, foi levantada na ação para inviabilizar a demarcação de novas terras, ao impedir que, por meio do pagamento pelo valor da terra, o Estado possa pacificar uma situação de conflito social surgida com a titulação de uma área quilombola sobre uma fazenda reivindicada por um terceiro.
Outro ponto central da tese dos que defendem a derrubada do decreto diz respeito à temporalidade da ocupação. Para o advogado da Associação Brasileira de Celulose e Papel – BRACELPA não se poderia abrir a possibilidade de titulação de terras que, em 1988, não estivessem ocupadas efetivamente. Para Horbach, admitir que aqueles que não ocupavam as áreas em outubro de 1988 têm direito à terra, contraria o art. 68 do ADCT. São muitos os casos, no entanto, de comunidades que, antes dessa data, foram expulsas de todo ou parte de seus respectivos territórios. Justamente por isso foi incluso na Constituição o texto que determina ao Estado garantir a titulação das terras. O uso do marco temporal de 1988 significaria, portanto, congelar inúmeras situações de injustiça fundiária.
O advogado da SRB (Sociedade Rural Brasileira) chegou a defender que a figura da propriedade coletiva, prevista no decreto, é inconstitucional, por não se tratar nem de propriedade privada, nem pública.
Auto-identificação é constitucional
Em contraponto, o Advogado-Geral da União, Luiz Inácio Adams, defendeu que não é necessária a aprovação de uma lei pelo Congresso para que o Estado brasileiro possa fazer a regularização fundiária das terras quilombolas, já que a Constituição é auto-aplicável. Além disso, ressaltou que a autoidentificação não é o único critério para a caracterização e titulação das comunidades remanescentes de quilombos, havendo vários outros, razão pela qual 238 pedidos de reconhecimento já foram rejeitados pela Fundação Palmares. Adams lembrou, ainda, que com base no decreto, 110 títulos definitivos de propriedade foram emitidos e beneficiaram 11.289 famílias de quilombolas.
O Procurador do Estado do Paraná, que figura como amicus curiae na ação, Carlos Frederico Marés de Souza Filho, explicou que o estado do Paraná tem interesse no tema porque transformou o reconhecimento do direito dos seus quilombolas em política de Estado, não de governo. O procurador ressaltou a importância da terra para as comunidades quilombolas e que é essencial sua ocupação para a preservação das práticas, usos e costumes dessas comunidades, que têm na terra o fundamento de sua vida. Segundo ele, a terra não significa mera propriedade para essas comunidades, representa um conceito anterior à noção de propriedade. Para Marés, os quilombolas são os “povos invisíveis” que tiveram que se esconder dos olhares do Estado e da sociedade para garantir sua sobrevivência.
A Vice Procuradora-Geral da República, Deborah Duprat, também defendeu a aplicação do critério da auto-identificação, pois apenas os próprios quilombolas podem dizer que é ou não remanescente de quilombos e afirmou que outro critério, como por exemplo, o genético, seria inviável para o reconhecimento dessas comunidades. Duprat destacou os tratados internacionais que regulamentam o tema, dos quais o Brasil é signatário, como o Pacto de San José da Costa Rica e a Convenção 169 da OIT, que garantem o direito dos quilombolas ao seu território e o direito de auto-identificação como critério fundamental no reconhecimento dessas comunidades.
Audiências públicas negadas
Diversas organizações quilombolas e da sociedade civil, admitidas no processo na condição de amici curiae também se manifestaram em defesa do decreto na tribuna.
O relator se manifestou, ainda, quanto aos diversos pedidos de realização de audiências públicas feitos ao longo do processo e afirmou que considerou desnecessária a realização das audiências, tendo em vista que os autos estão suficientemente instruídos.
Após o voto do relator, a ministra Rosa Weber pediu vista do processo para poder examinar com mais profundidade os autos e o julgamento foi suspenso. Não há previsão para que o julgamento seja retomado.
Não estavam presentes na sessão de julgamento os ministros Joaquim Barbosa, Celso de Mello e a ministra Cármen Lúcia.
Mais de 500 quilombolas de varias partes do Brasil vieram ao STF ontem para reivindicar seus direitos e defender a manutenção integral do decreto. Os quilombolas assistiram à sessão de julgamento e participaram de uma manifestação em frente ao tribunal.
A CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) e a Associação Brasileira de Antropologia divulgaram notas em defesa do decreto (Veja aqui e aqui).
A Comissão Pró-Índio do Brasil divulgou nota pública após o julgamento de ontem em razão de o ministro Cezar Peluso ter citado dados do monitoramento da organização em seu voto.
ISA, Barbara Fontoura e Raul Telles do Valle.
fonte:http://www.socioambiental.org/