7 de julho de 2010
Por Guilherme C. Delgado
Economista do IPEA
A primeira iniciativa reforça o conceito da terra e dos recursos naturais em geral, regidos pelo direito constitucional à categoria de um bem social. Já a segunda iniciativa contraria todo o sentido de bem público que o constituinte, e antes dele a própria legislação ordinária, pretenderam estabelecer.
Não obstante a letra da Lei, o Brasil sofre hoje, de Norte a Sul do País, conseqüências devastadoras da incúria com que vem se tratando as questões do meio ambiente e da propriedade fundiária. .E cada vez mais cresce a consciência de que enchentes e inundações freqüentes e calamitosas não são obras da mão do acaso.
Muito disto se deve a matas ciliares rurais degradadas, espaços urbanos desprovidos de equilibrada coabitação com áreas preservadas, sistemas hídricos danificados pelo lixo e outras tantas formas de degradação ambiental, que em certo sentido refletem uma cultura de socialização das perdas e privatização dos lucros no que se refere à apropriação dos recursos naturais.
Por tudo isso cresce a percepção à necessidade de tratar o meio ambiente e o seus sistemas florestal e hídrico em particular com critérios e métodos de respeito às leis naturais, sob risco de sermos todos levados de roldão na esteira das catástrofes ecológicas.
O atual Código Florestal com o seu conceito de floresta como "bem público" presta-se a cumprir um dos aspectos da função social da propriedade (Art. 184 da Const. Federal) - a função ambiental das florestas. Mas é exatamente contra isto que conspira o Relatório Aldo Rebelo, que retira essa definição de floresta, para tratá-la apenas com a noção de "matéria-prima florestal", seguindo uma visão esdrúxula de "mercadoria como outra qualquer" que se pretenderia impor aos recursos naturais.
Este passe de mágica do Relatório Rebelo, bem como tantas outras concessões à desregulamentação e privatização das florestas, conforme o denunciam inúmeras entidades signatárias do manifesto "EM DEFESA DO MEIO AMBIENTE BRASILEIRO E DA PRODUÇÃO DE ALIMENTOS SAUDÁVEIS: NÃO AO SUBSTITUTIVO ALDO REBELO", representa na agenda política o movimento inverso à imposição de limites sociais às estratégias privadas de acumulação de capital na agricultura.
Por outro lado, o Fórum Nacional pela Reforma Agrária retoma a bandeira histórica da função social da propriedade, consultando a opinião pública sobre a necessidade de recuperar o conceito de "latifúndio por dimensão", previsto no Estatuto da Terra e esvaziada depois da Constituição de 1988.
Segundo o entendimento do Estatuto, o caráter do empreendimento capitalista na agricultura deveria cingir-se a dois limites essenciais - à noção de utilização adequada (produtiva, ambiental e de relações de trabalho); e a outra noção de tamanho físico. Conquanto estes limites tenham permanecido "letra morta" na execução da política agrária dos governos militares, sua conceituação legal implicava na desqualificação do imóvel rural que desrespeitasse tais limites, classificando-o para a condição de latifúndio, legalmente susceptível de desapropriação, alta taxação ou às duas penalidades.
A Constituição de 1988, sob pressão dos ruralistas não recebeu o conceito de "latifúndio por dimensão", mas recebeu o conceito de "latifúndio por exploração", qual seja àquele que não cumpre os critérios de "utilização racional e adequada" em sua tríplice explicitação: 1 - a utilização física, 2- a preservação ambiental e 3 - o respeito à relações de trabalho legítimas.
A função social da propriedade, prevista no Estatuto da Terra foi solenemente ignorada na época do regime militar. Por sua vez, a função social da propriedade na Constituição de 1988 tem sido ignorada por outros meios - não atualização dos índices de produtividade da terra, grilagem das terras tolerada e legalizada pelo política oficial e agora a tentativa de revisão do Código Florestal, cujas regras vinham sendo sistematicamente violadas
Mas como agora existe um Ministério Público com missão constitucional de fazer cumprir os direitos sociais e ambientais, é certamente este um novo ator estatal que tem pressionado os ruralistas a cumprir normas de direito social e ambiental bem explicitadas no direito constitucional e na legislação regulamentar, \'judicializando\' em parte a política agrária. Daí provavelmente a pressa com que determinados setores do agronegócio demandam alteração imediata de regras do Código Florestal.
Aparentemente o discurso anti-social do novo Código Florestal não vingou no sentido de sensibilizar a opinião pública urbana para essa nova empreitada Por sua vez, a discussão sobre o plebiscito a respeito do tamanho de propriedade é solenemente ignorada pelos meios de comunicação de massa.
No fundo às mesmas razões que provocam reação política negativa à empreitada CNA-Aldo Rebelo, provocariam similar reação se a opinião pública pudesse entender o que significa concentração absoluta da propriedade fundiária e da riqueza social que o atual processo de acumulação de capital na agricultura provoca, precisamente pela inexistência ou ineficácia dos limites sociais, econômico e ambientais ao direito de propriedade fundiária.
Em síntese a idéia do Plebiscito como consulta popular autônoma, independente das instituições do Estado é boa como ponto de partida. Mas precisaria evoluir para influenciar a agenda de ações políticas do Estado. Para tal é preciso ganhar a opinião pública, que por ora é objeto de certa anestesia para alguns temas que são muito caros ao agronegócio, na acepção de um pacto de acumulação do grande capital na agricultura.
Guilherme C. Delgado é economista pelo IPEA, doutor em Economia pela Unicamp e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz