Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Diante do avanço dos agrocombustíveis e do agronegócio, como garantir o direito à terra, ao território e a um modelo de agricultura sustentável ao povo camponês? Este desafio foi debatido por diversas organizações durante a oficina “Agrocombustíveis, segurança alimentar e sustentabilidade: construindo estratégias comuns de ação”, realizada no Rio de janeiro, nos dias 6 e 7 de dezembro de 2012. Como resultado da atividade, 16 movimentos e entidades participantes construíram uma carta apontando a conjuntura atual de avanço dos agrocombustíveis e suas consequências, além de pontos onde é necessária atuação prioritária das organizações.

 

A produção de agrocombustíveis, especialmente a cana-de-açúcar e milho, seguem a lógica do monocultivo extensivo e intensivo, baseada na superexploração do trabalho, da terra e dos recursos hídricos. Segundo o documento produzido a partir da atividade, o cultivo destas monuculturas para a produção de etanol e biodiesel resulta em inúmeros impactos ambientais e sociais: “desestrutura modos de vida, expulsando trabalhadores de suas terras, ou obrigando-os a convertê-las em monocultivos, contribuindo desse modo para sua insegurança alimentar; afeta a saúde da população pelo uso intensivo de agrotóxicos (intoxicações) e fertilizantes químicos; e ainda provoca o desequilíbrio ambiental e a emergência de novas pragas e enfermidades agrícolas”.

Para enfrentar os diversos problemas resultantes da produção de agrocombustíveis, as organizações afirmam a necessidade de lutar pela garantia de direitos de agricultores e agricultoras, e das comunidades tradicionais e indígenas. A disputa do projeto de agricultura e desenvolvimento rural está entre os fatores centrais para garantia destes direitos.

Outro fator considerado crucial é dialogar as conseqüências dos agrocombustíveis com a luta das mulheres camponesas. “As mulheres são impactadas de maneira mais severa pelo avanço dos agrocombustíveis em larga escala. Principais responsáveis pela segurança alimentar da família, seu acesso à terra é constrangido, bem como a possibilidade de acesso aos recursos naturais, e à produção agrícola sustentável”.

Entre as entidades presentes na atividade e que assinam a carta está a Terra de Direitos, movimentos sociais rurais (MST, CONTAG, FETRAF), do movimento de mulheres (MMM, MMTRNE), organizações não-governamentais (ActionAid, Fase, Ibase, Rede Social, Repórter Brasil), universidades (CPDA/ UFRRJ), além de outras organizações, redes e instituições (CPT, CAA, Tribunal Popular da Terra, Sucre Ethique, Conselho Aty-Guasu).

Leia abaixo a carta fruto da oficina:

Carta aos movimentos sociais e organizações da sociedade civil

Agrocombustíveis e o desenvolvimento social baseado na efetivação dos direitos humanos.

As organizações da sociedade civil reunidas na oficina “Agrocombustíveis, segurança alimentar e sustentabilidade: construindo estratégias comuns de ação”, realizada no Rio de janeiro, nos dias 6 e 7 de dezembro de 2012, debateram os desafios colocados pelo avanço dos agrocombustíveis e do agronegócio no País, em defesa de um modelo de agricultura sustentável, do direito à terra e ao território dos agricultores familiares e sem terras, dos povos tradicionais, indígenas e quilombolas.

A partir dos debates e reflexões conjuntas, foram identificados inúmeros desafios comuns:

- Estamos diante de uma conjuntura complexa e adversa em que o agronegócio está vencendo a disputa ideológica sobre quem produz os alimentos e sobre o modelo de desenvolvimento rural. Frente à permanência da fome e à crise dos preços dos alimentos no mundo, falsas soluções têm sido apresentadas, como a chamada “economia verde” e a necessidade de aumentar a produtividade utilizando transgênicos e biologia sintética, que reforçam o agronegócio, a exclusão e o monopólio. O problema da fome e da pobreza não está na falta de alimentos, mas, sim, em sua má distribuição de recursos, de terra, de créditos e financiamento para a agricultura de base familiar e camponesa.

- No Brasil, o processo de reforma agrária está parado e não tem sido uma prioridade, por parte do Governo Federal, na política de combate à pobreza. O País vive também uma ofensiva dos representantes políticos do agronegócio sobre os territórios indígenas e quilombolas, com projetos de lei e emendas que violam direitos garantidos constitucionalmente (Novo Código Florestal, PEC 215; Portaria 303 AGU). Da mesma forma, o agronegócio tem utilizado o Poder Judiciário para barrar avanços populares, como no caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3239 que trata do direito ao território das comunidades quilombolas e as condicionantes impostas no caso do julgamento da Raposa Serra do Sol.

- No contexto de crise econômica internacional, verifica-se a tendência de acumulação do capital em países do hemisfério sul, e o agravamento da disputa por terra e por matérias-primas. O Brasil, por sua vez, se insere no mercado internacional como um produtor de matérias-primas (commodities como minérios, soja, açúcar), num processo de re-primarização de suas exportações.

- Para o setor sucroenergético, a crise contribuiu para o processo de concentração e monopólio, a partir de fusões de empresas e da entrada de multinacionais no país. O alto grau de endividamento das empresas, bem como a queda de produtividade das lavouras de cana, tem levado o setor a avançar territorialmente sobre os recursos naturais, bem como intensificar a exploração do trabalho, avançando a fronteira agrícola no Centro Sul do país, sobre terras indígenas, áreas de preservação, pressionando o preço da terra e deslocando outras atividades produtivas.

- O setor sucroenergético é altamente dependente do financiamento público (sobretudo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES) e da rolagem de suas dívidas. Entretanto, são ausentes normas específicas para regular esse financiamento ao setor, bem como mecanismos de fiscalização e responsabilização.

- A produção de agrocombustíveis, por meio do sistema de monocultivos extensivos e intensivos, é incompatível com um padrão de desenvolvimento social baseado na efetivação dos direitos humanos. Já é sabido que o setor do etanol se mantém e se reproduz por meio da superexploração do trabalho (inclusive com trabalho escravo), das terras e dos recursos hídricos, e tem causado sérios impactos ambientais e sociais nas comunidades rurais de seu entorno: desestrutura modos de vida, expulsando trabalhadores de suas terras, ou obrigando-os a convertê-las em monocultivos, contribuindo desse modo para sua insegurança alimentar; afeta a saúde da população pelo uso intensivo de agrotóxicos (intoxicações) e fertilizantes químicos; e ainda provoca o desequilíbrio ambiental e a emergência de novas pragas e enfermidades agrícolas. O caso dos Guarani Kaiowá, em Mato Grosso do Sul, é um exemplo dramático das múltiplas formas de violação dos direitos com a entrada do monocultivo da cana-de-açúcar nas terras indígenas.

- Internacionalmente é reconhecida a pressão da produção de agrocombustíveis nos preços dos alimentos e sua contribuição na atual crise, como o caso do etanol de milho dos Estados Unidos e a possibilidade de implantação de usinas flex no Brasil, capazes de produzir etanol a partir da cana-de-açúcar e do milho. Além da utilização dos grãos para produção de etanol ou biodiesel, a expansão das lavouras voltadas para agrocombustíveis compete também com a produção de alimentos, deslocando outros cultivos para regiões mais longínquas, ocasionando a perda da capacidade de municípios de abastecerem sua população, tornando-os mais vulneráveis às oscilações de mercado e a custos elevados de transporte.

- Apesar de alguns avanços no âmbito das relações trabalhistas, como o compromisso social no setor sucroalcooleiro entre governo, usineiros e representação dos trabalhadores, há ainda muitas violações dos direitos dos trabalhadores, desde alimentação inapropriada, contratações ilegais, manutenção do trabalho por produtividade, trabalho análogo à escravidão. Além disso, o processo de mecanização do corte da cana-de-açúcar tem provocado o desemprego em massa de trabalhadores com poucas alternativas de inserção produtiva. Não há, por parte do governo e das empresas, medidas concretas para reinserir esses trabalhadores no mercado de trabalho, ou dar-lhes acesso ao programa de reforma agrária e outros programas sociais.

- No plano internacional, empresas e o governo brasileiro estão envolvidos em acordos de cooperação e projetos de investimento que visam à promoção da agricultura em larga escala em países em desenvolvimento, sobretudo no continente africano. Como é o caso da Odebrecht em Angola, para a produção de etanol, e do Programa Pró Savana (cooperação Brasil, Japão e Moçambique) em Moçambique. Há pouca transparência e informação sobre esses acordos. Contudo, organizações da sociedade civil brasileira já começam a olhar para essa questão e identificar a necessidade de monitorar e estabelecer parcerias estratégicas nos países receptores.

- No que diz respeito ao Programa Nacional de Produção de Biodiesel (PNPB) e a inserção da agricultura familiar nele, há uma percepção comum acerca dos seus limites. O programa não tem sido a política inclusiva que foi proposta, mas tem fortalecido a cadeia produtiva da soja, principal matéria-prima de produção do biodiesel. A agricultura familiar tem participado do programa apenas como fornecedora de matéria prima; o diálogo com o governo tem sido insuficiente, não havendo avanços para estruturar a cadeia produtiva para agricultores familiares, que não dispõem de investimentos para o beneficiamento das oleaginosas, diversificação da produção e adequação regional do programa.

- As mulheres são impactadas de maneira mais severa pelo avanço dos agrocombustíveis em larga escala. Principais responsáveis pela segurança alimentar da família, seu acesso à terra é constrangido, bem como a possibilidade de acesso aos recursos naturais, e à produção agrícola sustentável. No caso do PNPB não há nenhuma política que trate de forma diferenciada a participação das mulheres no programa.

Para avançar frente a esses desafios, apontamos que:

- A principal forma de enfrentamento do tema dos agrocombustíveis é a garantia de direitos de agricultores e agricultoras, e das comunidades tradicionais e indígenas. O reconhecimento efetivo desses direitos – direitos relacionados à terra, identidade, alimentação, uso dos recursos naturais – e o fortalecimento de modelos alternativos/diferenciados de produção são importantes estratégias de combate ao avanço dos agrocombustíveis e do agronegócio.

- Nesse sentido, considera-se essencial disputar o projeto de agricultura e desenvolvimento rural com a sociedade. Mostrar as contradições do modelo de agronegócio, o intenso uso de agrotóxico e seus malefícios, o trabalho escravo, impactos ambientais, grilagem de terras e pressão sobre o preço dos alimentos. Mostrar quem produz o alimento saudável na mesa da população. Acreditamos que o momento de crise do setor do etanol pode ser um momento de oportunidade para incidência e promoção de contra-discursos.

- Devem ser fornecidas informações sobre os financiamentos concedidos (em especial pelo BNDES) e garantida a transparência nessas operações, estabelecendo-se salvaguardas, mecanismos de fiscalização e controle, bem como mecanismos de responsabilização do financiador por violações, quando estas ocorrem.

- Cabe avançar na inserção da agricultura familiar na cadeia produtiva do biodiesel, considerando as diferenças regionais, demandando capacitação, bem como o desenvolvimento de critérios de avaliação da sustentabilidade da matéria prima. Identifica-se, também, a necessidade de articulação de diversos segmentos para a elaboração de uma pauta conjunta em defesa dos interesses da agricultura familiar.

- No âmbito da atuação internacional, é preciso monitorar os acordos de cooperação ensejados pelo Brasil para evitar que os mesmos processos de violação de direitos se repitam em outros países. Há espaços internacionais de incidência como a Convenção sobre Diversidade Biológica, para monitorar a liberação comercial das variedades transgênicas, e o marco legal de patentes da cana.

- Consideramos crucial dialogar com a agenda das mulheres, entendendo a sua luta por reconhecimento como agricultoras e seu papel na garantia da segurança alimentar e na promoção da agroecologia, aprofundando o conhecimento e a reflexão sobre os impactos específicos dos avanços dos agrocombustíveis para a vida das mulheres.

Por fim, destaca-se a importância dos distintos atores da sociedade civil e movimentos sociais debaterem, trocarem informações e análises conjuntas sobre essa problemática dos agrocombustíveis, considerando que, atualmente, não há espaço para esse diálogo. Desse modo, conformar esse espaço de diálogo seria uma maneira de dar subsídios, por meio de pesquisa, produção de conhecimento e análises, para as lutas dos movimentos sociais. Nos colocamos à disposição para construir sinergias e para fortalecer as pautas dos movimentos sociais e suas agendas como Grito da Terra, Abril Vermelho, Mobilização Nacional dos Assalariados e encontros unitários dos movimentos do campo, estaduais e nacional.

ActionAid
CAA
Comissão Pastoral da Terra (CPT)
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG)
Conselho Aty- Guasu – Povo Guarani Kaiowa
FASE
Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (FETRAF)
Ibase
Marcha Mundial das Mulheres (MMM)
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste (MMTRNE)
Terra de Direitos
Tribunal Popular da Terra – MS
Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
Repórter Brasil
Sucre-Ethic

 

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